27 de Março: Dia Mundial do Teatro

 27 de Março: Dia Mundial do Teatro

Dia Mundial do Teatro celebrado a bordo dos elétricos históricos do Porto. (Créditos fotográficos: DR / Museu do Carro Elétrico – portosecreto.co)

I am speaking to you today, not just to speak, or even to celebrate the father of all arts, “theatre,” on his world day. Rather, I invite you to stand together, all of us, hand in hand and shoulder to shoulder, to call out at the top of our voices, as we are accustomed to on the stages of our theatres, and to let our words come out to awaken the conscience of the entire world, to search within you for the lost essence of humanity.1

O dia 27 de Março assinala o Dia Mundial do Teatro, estabelecido, desde 1962, pelo Instituto Internacional de Teatro (ITI), a instituição ligada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que convida, em cada ano, uma personalidade ligada ao teatro para escrever uma mensagem divulgada mundialmente.

(Direitos reservados)

A primeira mensagem foi escrita, em 1962, por Jean Cocteau, figura ímpar da cultura teatral francesa, dramaturgo, poeta, cineasta, artista plástico… Ninguém como ele interpretou tão bem, poeticamente, o tema do mito de Orfeu. Ninguém como ele imortalizou o rosto do grande actor francês Jean Marais, o grande amor da sua vida.

 Jean Marais e Jean Cocteau, em 1947. (criterion.com)

[…] disseram que a máquina daria o golpe de misericórdia ao teatro. Não acredito e, uma vez que o Instituto Internacional do Teatro me encarrega de falar em seu nome, grito, como antigamente se gritava para os nossos reis (alterando um pouco a fórmula): «Se o teatro morreu, viva o teatro (Jean Cocteau, 27 de Março de 1962)

Victor Jara (1932-1973). (Direitos reservados)

No ano de 2023), enquanto espero pela mensagem2, aproveito a oportunidade para lembrar o músico e cantor Victor Jara, também ele, homem de teatro.

A Brigada Victor Jara homenageou este músico chileno, uma das primeiras vítimas da ditadura militar do general Augusto Pinochet, tendo sido assassinado no dia 16 de Setembro de 1973, quando tinha 40 anos!

Brigada Victor Jara (sabado.pt)

A Brigada Victor Jara é uma banda portuguesa criada em 1975. Como regista a Wikipédia, começou como um grupo informal de jovens de Coimbra e tornou-se um dos mais duradouros e importantes grupos de música tradicional portuguesa. O grupo mantém-se em actividade, tendo lançado o seu mais recente disco, a colectânea “Ó Brigada”, em 2015, comemorativo dos seus 40 anos de actividade.

Victor Jara, tal como Federico García Lorca (este foi uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola, a 18 de Agosto de 1936, em Víznar), simboliza, no seu sacrifício histórico, a morte por escassos instantes da arte, da poesia, da música e do teatro, mesmo quando essas circunstâncias de escuridão sejam breves, pois é impossível matar a cultura e as artes.

“Macbeth”, obra de William Shakespeare, esteve em exibição no Teatro Nacional São João, no Porto, entre 1 e 22 de junho de 2017. (comunidadeculturaearte.com) 

[…] Criai coragem; não há noite fria, por mais longa que seja, sem seu dia.
(William Shakespeare, no livro “Macbeth”. (Acto IV, Cena III)

.

Conheci o Victor Jara como espectador, tal como os meus compatriotas, nas suas diferentes actuações em Santiago e na minha cidade (em Concepción). Estive com ele em dois momentos particulares, que agora narro. Num primeiro momento, quando assisti ao espectáculo “Viet Rock”3, encenado por ele. E, mais tarde, num congresso de teatro realizado na Universidade de Chile, julgo que no ano de 1972.

Nesse primeiro encontro, ele contou aos espectadores como esta peça foi desenvolvida, inicialmente em 1965/1966 durante “workshops” e “ateliers” no The Open Theatre,de Nova Iorque, sob orientação de Joseph Chaikin (que tinha deixado o Living Theatre) e de Peter Feldman, num processo que hoje identificamos como de criação colectiva. Processo no qual o material resultante da participação da equipa de artistas é fundamental para a criação final. 

Então, Victor Jara lembrou que o “US”4, espectáculo de Peter Brook sobre este tema foi elaborado de forma similar. A companhia realizou improvisações inspiradas em relatos da Guerra do Vietname e o autor escreveu e dirigiu um espectáculo completamente baseado nesse material performativo.  A música foi composta por Marianne de Pury5, que desenvolveu e aperfeiçoou as canções durante o processo actualmente denominado “work in progres”. A estreia aconteceu no La MaMa Experimental Theatre Club, em Nova Iorque, a 18 de Maio de 1966. Neste espectáculo, Jara utilizou o material original, mas também havia referências ao processo chileno e ao momento histórico que vivíamos.

Em 1950, foi fundado o grupo Los Mimos de Noisvander, companhia criada por um dos precursores da arte da pantomima no Chile: Enrique Noisvander. (teatro-nescafe-delasartes.cl)

Na sua formação como homem de teatro, Víctor Jara ingressou na Compañía de Mimo/Pantomima de Enrique Noisvander6, no ano 1954, quando iniciou uma frutífera carreira teatral, prosseguindo no curso de interpretação na Escuela de Teatro da Universidad de Chile, entre 1956 e 1959. Nesse ano, encenou o seu primeiro trabalho, a peça intitulada “Parecido a la felicidad”, da autoria do dramaturgo, director de teatro e actor, seu amigo, Alejandro Sieveking Campano (1934-2020), experiência que o motivou a estudar encenação teatral na mesma universidade, entre 1960 e 1961.

Alejandro Sieveking Campano. (academiachilenadebellasartes.cl)

Mais tarde, é membro permanente na equipa da direcção do Instituto de Teatro de la Universidad de Chile (ITUCH) e trabalhou como professor convidado, no ano de 1969, na Escola de Teatro de la Universidad Católica.

Entre as numerosas peças que encenou, menciono “Los invasores”, de Egon Wolff (em 1963); “Animas de día claro”, de Alejandro Sieveking (em 1964); “La remolienda”, do mesmo autor (em 1965); “La casa vieja”, do cubano Abelardo Esterino (em 1966); “Entreteniendo a Mr. Sloane”, de Joe Orton (em 1968), com a companhia de teatro (Compañía de los Cuatro) de Orietta Escamez e Humberto Duvachelle (texto que eu voltaria a encenar nos anos 90 com a mesma actriz); e a peça vanguardista, já aludida, “Viet Rock”, de Megan Terry.

Orietta Escamez e a Compañía de los
Cuatro. (cultura.fundacionneruda.org)

Atahualpa del Cioppo7 e o seu teatro El Galpón, em Montevideo, no Uruguay.

Entre os muitos reconhecimentos e prémios que recebeu, destacam-se o “Laurel de Oro”, como melhor encenador do ano (em 1965), e o Prémio Anual da Crítica do Círculo de Periodistas, em 1965 e em 1968.

No ano de 1963, foi ajudante de encenação na peça de Bertolt Brecht encenada pelo mestre uruguaio Atahualpa del Cioppo, encenador que, nos anos de 1970 a 1973, se exiliou na minha cidade, Concepción, e que foi o meu grande amigo e mestre nesse período.

(Direitos reservados)

A forte experiência teatral de Victor Jara, determinou, em grande parte, as suas propostas cénicas, musicalmente, a par da sua particular e perfeita dicção, além da sua atitude perante o público.

.

Notas:

1 – “Falo convosco hoje, não apenas para falar, ou mesmo para celebrar o pai de todas as artes, “teatro”, em seu dia mundial. Em vez disso, convido-os a ficar juntos, todos nós, de mãos dadas e ombro a ombro, para gritar a plenos pulmões, como estamos acostumados a fazer nos palcos dos nossos teatros, e deixar as nossas palavras saírem para despertar a consciência do mundo inteiro, buscar dentro de cada um de nós a essência perdida da humanidade.”

(redescena.net)

2 – A mensagem de 2023 é da autoria de Samiha Ayoub, actriz natural do Egipto. A autora licenciou-se no Instituto Superior de Artes Dramáticas, em 1953, e destaca-se com uma carreira artística que inclui mais de 170 peças, incluindo “Raba’a Al-Adawiya”, “Sekkat Al-Salamah”, “Blood on the Curtains of the Kaaba”, “Agha”, Pode aceder, aqui, à mensagem de Samiha Ayoub.

3 – Como lemos na Wikipédia, “Viet Rock” é um musical de “rock”, da autoria de Megan Terry, que serviu de inspiração para o musical “Hair”. Consistiu numa denúncia violenta do envolvimento americano na Guerra do Vietname. A peça foi descrita pelo seu autor como um “filme de guerra popular” com cenas de desilusão e de protesto relativamente à presença militar americana no Sudeste Asiático. Este musical é amplamente considerado o primeiro musical de “rock” escrito e apresentado nos Estados Unidos da América (EUA), bem como a primeira peça de protesto sobre o Vietname. A sua estreia também marca a primeira grande produção teatral nos EUA em que os actores abriram o palco para interagir directamente com o público.

4 – “US” foi uma peça de teatro experimental realizada 1966 para a Royal Shakespeare Company, criada por um grupo que incluía Denis Cannan, Michael Kustow, Sally Jacobs, Richard Peaslee, Adrian Mitchell, Geoffrey Reeves, Albert Hunt, Michael Stott e o director Peter Brook. 

5 – Artista de teatro e compositora suíça nascida em St. Gallen.

6 – A propósito, leia-se, no artigo “Los Mimos de Noisvander: rescatando el arte del silencio”, de Junior Palacios: “Cada artista es un milagro”, dicen casi al unísono Rocío Rovira, Óscar Figueroa y Eduardo Stagnaro, tres de los artistas insignes de la compañía de la cual también fueron parte Víctor Jara, Jaime Schneider, Silvia Santelices, Mauricio Celedón, Delfina Guzmán, María Izquierdo y Claudia Di Girólamo, entre muchos otros.

7 – Seguindo a Wikipédia, sabemos que Américo Celestino del Cioppo Fogliacco – conhecido como Atahualpa del Cioppo (1904-1993) – é poeta, director de teatro e escritor uruguaio. Em 1936, criou o grupo de teatro La Isla de los Niños, como forma de explorar, com respeito, a sensibilidade das crianças e, ao mesmo tempo, preparar a formação de futuros espectadores adultos, abrangendo todas as fases do desenvolvimento – infância, adolescência e alta idade escolar, juventude em nível universitário – política cultural que ainda hoje é aplicada, nos planos de extensão de El Galpón, famoso conjunto teatral do qual foi um dos fundadores em 1949. Em 1959, dirigiu a estreia, em Espanhol, de Bertolt Brecht, “O Círculo de Giz Caucasiano”. Brecht, autor do qual foi grande especialista, também se destacou como director de obras de Anton Tchecov, de Máximo Gorki, de Arthur Miller, de Luigi Pirandello, de Henrik Ibsen, de Shakespeare e de autores nacionais. Na década de 1970, foi forçado ao exílio no Chile, em Concepción, pela ditadura militar uruguaia. Em 1978, recebeu o Prémio Ollantay do Centro Latino-americano de Criação e Investigação Teatral (CELCIT), o Prémio Florencio (Sánchez) e o Prémio Nacional Cyro Scoseria, do Uruguai. Em 1984, recebeu a medalha Haydée Santamaría (Cuadrado), do governo cubano, e, em 1991, a medalha Gabriela Mistral, do governo chileno. Atualmente, um prémio do Festival Ibero-Americano de Teatro de Cádiz adoptou seu nome.

.

27/03/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

Outros artigos

Share
Instagram