A cidade sem turistas

 A cidade sem turistas

Barcelona

Quando se viaja a Barcelona, em particular no verão, a mala pode vir ligeira porque o tempo é ameno e, quando menos se traz, menos podem os carteiristas levar. Contudo, há um artigo em particular que ninguém pensaria trazer, mas que se vê bastante pela cidade: um chapéu de chuva.

Estes chapéus de chuva não servem de proteção contra possíveis tormentas estivais. Na verdade, são o instrumento utilizado pelos incansáveis guias turísticos para passear os seus rebanhos pela cidade e evitar que alguma ovelha perca o seu caminho.

Numa cidade como Barcelona, é impossível evitar turistas. Sagrada Família, La Pedrera, La Boqueria? Impossível não os encontrar e, considerando o acervo arquitetónico da cidade, fácil de entender. Mas até ao fundo da minha rua, onde, há menos de dois anos, se substituiu uma rotunda por um parque, eles aparecem. Com guias e chapéus de chuva amarelos!

Nem o atentado terrorista de 2017 — 13 mortos, 100 feridos no centro da cidade, nas Ramblas a meio caminho entre praça de Catalunha e o mar — conseguiu deter a maré. Nos dias que se seguiram a rua voltou a encher. Engraçado como uma epidemia pode mudar tudo.

Com as restrições associados à Covid-19, Barcelona esvaziou-se. Onde antes mal se podia caminhar, agora há espaço para respirar. Os cidadãos, que veem a sua vida limitada por pessoas vindas de fora, sentem que a cidade volta a ser sua e é fácil encontrar artigos e opiniões de júbilo. “Os meninos já podem voltar a brincar nas praças”. “Os residentes podem recuperar os seus bairros”. A cidade é devolvida a quem nela vive.

Barcelona.

Eu também comungo desta sensação de alívio. A quantidade de guiris (i.e., turistas, embora o significado aponte mais para os que chegam do norte da Europa) cria um ambiente opressivo na cidade e complica a vida dos residentes (preços sobem, há mais barulho, especulação imobiliária dispara). Antes de tudo isto, o ‘slogan’ “Guiris go home!” estava em voga. Se lhes dissessem “¡A casa, cabrones!”, não iam entender.

Apesar disso, é estranho passear por uma Barcelona sem turistas, tudo está mais vazio. No centro ressaltam muito mais os exemplos de miséria humana, com os sem-abrigo nas suas tristes ladainhas e os pedintes sem terem a quem pedir. Entrar num restaurante ao lado da Sagrada Família e encontrá-lo vazio não é normal. Até pontos fora de Barcelona, como Montserrat, parecem outra realidade. Um mundo mais livre, mas também mais despovoado. E continuo sem saber como é que os carteiristas se sustentaram durante os meses de confinamento.

Claro que por cada notícia que se alegra pela devolução da cidade aos cidadãos surge outra que fala do impacto económico da ausência de turistas. Um artigo, no Publico espanhol, fala de uma Barcelona sem turistas como sendo uma “miragem agridoce”, exemplo das fragilidades de render-se aos turistas, mas sem capacidade de mudar o sistema. O El Pais fala de um “verão desastroso”.

Este é o paradoxo do turismo. Quando existe demasiado, descaracteriza a cultura local. Uma pessoa na sua terra nem repara nas especificidades do lugar. Ninguém come um arroz de sarrabulho a pensar na sua identidade cultural até que alguém lhe diz “Eh lá! Isso é um pouco fora do comum”. Os turistas forçam a simplificação e a massificação da cultura e o que sobra é a imitação de algo que era único — mas, entretanto, trazem muito dinheiro.

Portugal, como Barcelona, está preso neste paradoxo. O dinheiro dá jeito e sempre foi fácil abdicar de cultura imaterial por ele. No contexto de uma epidemia, a ideia de “venham, venham, mas com máscara” pode acabar por ser mortal. Preso por ter cão e preso por não ter porque negócios a definhar também provocam situações dramáticas. Pelo bem das pessoas e da cultura, uma das grandes questões do próximos anos vai ser a de encontrar um equilíbrio entre estes dois pontos.

Pessoalmente, tenho saudades de viajar, mas, no fundo, somos todos guiris fora do nosso país. O turismo não tem por que ser mau — mas este é um momento único para fazer ajustes antes que os chapéus de chuva voltem a inundar cidades… ou deixem de aparecer de todo.

08/08/2020

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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