A mulher azul e o galo de mil cores

 A mulher azul e o galo de mil cores

The boy had already become serious.To think that you can laugh; you, who have met with the most terrible misfortune that can possibly happen to a human being!” thought he. And for a moment he was pretty serious; but it wasn’t long before he was laughing again.

SELMA LAGERLÖF
The wonderful adventures of Nils
(Project Gutenberg)

Ryan Watson não conseguia perceber bem o que é que a irmã queria desta vez.

Tinha acabado de vir de Basel e já começava a fazer propostas. Que se deviam encontrar ao jantar, já esta noite. Que gostaria de mostrar fotos da escultura gigante que a sua amiga tinha exibido na bienal de arte sapiental nos Alpes Suíços, dois dias atrás. Pareceu-lhe que disse sapiental, deve vir do Homo sapiens, que se bem se recorda, vivia em grutas há uns 300.000 anos atrás.

Uma mulher gigante pintada a azul, reclinada na encosta de uma montanha. O que é que o azul tem a ver com o verde? Não fazia sentido.

Jairo Alzate (Unsplash)

Viu há um mês na TV uma reportagem sobre uma senhora, como é que se chamava, parece que era Vasconcelos, isso, Diana Vasconcelos, um nome impossível, já não sabia donde, um galo gigante com uma crista que parecia um cutelo, vermelho escarlate, e um rabo às cores em forma de gancho, para que servia aquilo, à mistura com sapatos gigantes de salto alto que pareciam escorregas, e bules gigantes prateados no meio da erva, diabos.

Fechou os olhos e viu uma supermulher às cores montada por um agitado galo de crista azul. Bolas.

Thea entrou na casa dos pais às 8.17 pm e o pai resmungou qualquer coisa entre duas garfadas.

«Olá Thea, um beijinho aqui», disse a mãe, e ofereceu-lhe a maçã vermelha-azulada do rosto. Já tinha aquele rubor há uns anos mas não queria ver o que era. «Senta-te e conta coisas. Como está a Kathie?»

Bem, mãe, muito bem mesmo. A Kathie estava feliz, nunca a viu tão feliz. A exposição tinha sido um sucesso. Centenas e centenas de pessoas, e as entrevistas. Passou nos três principais canais suíços. Kathie falou mesmo para o micro de uma cadeia escocesa, mas é quase certo que o pai e Ryan não a tenham visto. Estavam sempre colados ao wrestling e apreciavam touradas, que viam em canais espanhóis sempre que podiam. Um tique que veio de um passeio a Palma de Maiorca. Muita gente e praias demasiado nítidas, pareciam os recantos ricos e falsos de Hollywood. Oh, ainda bem.   

Thomas Schaefer (Unsplash)

Pensou carinhosamente em Kathie e nos animais que tinham no seu apartamento, dois gatinhos e um cão muito meigo e já velhote, Freddie. Viviam em harmonia e até brincavam juntos, com bolas e novelos de lã.

«A mulher azul foi um sucesso, mãe», suspirou.

A mãe passava metade do tempo a tricotar mas lia, lia muito. Fazia questão de pegar num livro quando apareciam as imagens de homens brutos e de farpas. E depois evadia-se, sonhava. Pensava que era assim que ela viajava, sem sair do sofá. Nunca lhe falou num sítio que ela não soubesse. Mãe, o que é que há para ver em Basel?

Depois passou a sair com amigas, em pequenas viagens baratas. Deixavam tudo para trás e iam. Deixavam comida feita e roupa lavada e eles não davam por elas. Era um grupo pequeno e unido. Museus, galerias e ópera, mas também vinho, chocolates e flores. Tinha saudades. Mãe, onde estás tu? Acabei de sair de Koblenz e estou a atravessar o Reno, Thea. Via-a no comboio com as amigas, a bebericar um branco, talvez um Gewürztraminer. Ai o castelo ali à direita, Thea. Trepa a torre e respira, mãe. Mãe.

Dodji Djibom (Unsplash)

O pai levantou os olhos e fitou-a, embezerrado. Eram dois olhos pequenos e negros, metidos nos fundos de covas papudas. Para que serve a mulher azul gigante? A filha tinha perdido os trilhos. Essa Kathie…

Mas vinha de antes. Era brilhante na escola e podia ter sido engenheira informática. Falava com os números. Compreendia mesmo qualquer coisa antes que alguém perguntasse, o que muitas vezes o irritava, porque se esquecia entretanto da pergunta. O professor da primária tinha-lhe dito. Foi quase uma advertência. A sua filha irá longe. Percebe?

Não gostava muito dele. Era empertigado, magro e alto. Usava lunetas redondas. Gabava-se de conhecer melhor os alunos do que os pais. Este é bom e aquele é mau. Este é meu. A Thea era sua. Podia ter sido engenheira, o orgulho da família. 

Depois meteu-se em maluquices que ninguém percebia. A última foi uma coisa que fez em tamanho gigante, a que dava o nome irritante de “O sonho de Turing”. Era uma máquina que ela tratava como a minha bomba e que tinha forma de serpente, com vários enigmas na ponta, uma longa fita com uma conversa em código e, numa cabeça em forma de caixote, um enorme aparelho  com teclas que parecia uma caixa de música.

A fita era pintada com muitas cores próximas, em manchas retangulares, vermelho-carmim, cardeal, persa, coral, rubi, magenta, laranjas… E amarelos, muitos, desde o canário ao mostarda. O conjunto era indecifrável e tinha estranhas palavras como WW2, führer, enigma, den code entschlüsseln, bomb, verrat…  A Bomba, a sua bomba. Uma bomba?

De facto Thea via o pai como um homem assustado, mais do que um homem bruto. Mas magoava a sério, quando queria.

Ficou-lhe gravada a tareia que lhe deu quando ela, menina, chegou a casa um dia, enlameada dos pés à cabeça. Tinha-se afundado num pântano de argila próximo da sua casa, enquanto brincava com amiguinhos. Salvou-se agarrando-se às ervas rijas da borda. Hoje pensava nelas como um anjo da guarda e pintava-as muitas vezes nas suas esculturas, à frente das flores. O pai bateu-lhe com o cinto durante intermináveis minutos, até se cansar, soltando latidos incompreensíveis. Nunca lhe perdoou.

Pior só assistir às tareias que o seu professor da primária dava aos colegas, de régua em punho ou à chapada, principalmente aos meninos-operários, que assistiam às aulas pela terceira vez, nas filas de trás. Mas também batia em meninos ricos. Uma vez um menino-operário levantou-se da carteira, inchou até ao seu metro e oitenta em carne maciça e disse-lhe, sem tremer: nunca mais tocas em mim. As tareias acabaram aí. Infelizmente as suas não, no recato da casa.

Trish H-C (Unsplash)

O pai era um homem assustado, provavelmente porque não compreendia a maior parte das coisas, ou só as compreendia muito, muito lentamente, quase sempre da frente para trás.

Parece que era conhecido na adolescência como o cabeça-de-apito, não porque fosse magro, bem pelo contrário, mas porque passava a vida a cacarejar as coisas que lhe vinham à cabeça, silvando as palavras num tom estridente. Cabeça-de-apito, parecia, era também o nome que davam ao maluquinho da aldeia, aquele que passava a vida a correr atrás das crianças, pedindo bolos.

A mãe apaixonou-se pela bela figura do pai dos 24 anos, apesar do ar um tanto parado e preguiçoso, mas depressa compreendeu. A vinda de Ryan e Thea ajudaram a disfarçar. Mas Ryan sempre se pareceu muito com o pai, ao ponto de se tornar uma cópia. Incrível a força dos genes.

Ryan era normativo e castigador, como o pai. Tinha um prazer especial em esmagar carochas e caracóis com as botas. Troçava de tudo o que era diferente, desde o carteiro que mancava até às cores vivas dos seus vestidos, desenhados por si. E compreendia tudo muito, muito lentamente, como se estivesse mergulhado em seiva viscosa. Nunca teve um professor que dissesse que ele era dele. Ou que iria longe.

Um dia, quando caminhava da escola para casa, parou em frente à montra da mercearia, como de costume. Era uma loja diferente, porque tinha sempre enormes blocos de selos postais coloridos bem à vista. Novos e usados. O dono devia ser filatelista. Entrava sempre, nem que fosse para cheirar.

A mercearia cheirava a canela, a cominhos e a chouriço, mas também às tintas dos selos e ao papel novo dos álbuns. O conjunto transportava-a para um mundo de beleza e magia, para o encantado mundo de  Selma Lagerlöf, que a mãe lhe trouxera e que escondia cuidadosamente do pai e do irmão. Assim fazia a maravilhosa viagem de Nils Holgersson às costas de possantes gansos brancos, através das florestas e dos lagos da Suécia.

Procurou-o há dias na sua biblioteca, mas não o encontrou. Também procurou a mercearia e os selos, mas já lá não estavam. Compreendeu então o que uma grande escritora alemã queria dizer quando regressou a casa, depois de um longo exílio : “Tentei voltar a casa. Estive à porta da minha infância, mas estava fechada ao público.”

Mas existiram mesmo e o público estava lá. Nesse dia, comprou uma dúzia de selos usados com o dinheiro que tinha poupado do almoço. Eram grandes e luminosos, com cores vivas de riso escancarado, talvez uma série de exóticas flores da Malásia. Iria colá-los com charneirinhas translúcidas no seu álbum, no seu quarto. Mas Ryan estava à espera e tirou-lhos. Atirou-os ao ar e calcou-os um a um, com precisos e lentos movimentos rotativos, como costumava esborrachar os caracóis.

Engoliu em seco e não disse uma palavra, mas não lhe perdoou.

A postura do pai e do irmão suavizaram-se no entanto um pouco, durante os últimos dois anos. Continuavam brutos e lentos, mas pareciam ter feito algum esforço para sublimar os maus instintos, essencialmente à custa de doses maciças de padres e hóstias.

Não mudaram no essencial, mas adotaram uma atitude condescendente perante a diferença, como as beatas resignadas frente a um crente que fala alto e cospe na igreja.

Thea e a mãe continuaram a navegar na vida, felizes com os seus amigos, os seus animais, a sua arte, as suas viagens, as suas flores e os seus gewürztraminers.

Um dia, estranhamente, o pai faleceu no sofá a ver uma partida de wrestling. Ficou com a boca torcida, como se tivesse mastigado um parafuso.

Passados dois dias, ainda mais estranhamente, a mãe fez a sua viagem final sem direito a despedidas. Thea encontrou-a de manhã bem cedo na cama, com a maçã do rosto um pouco mais flácida e azulada. Tinha passado por lá para se despedir, pois estava de partida para mais uma exposição, desta vez mais perto, em Yorkshire.

Estava serena e bonita. Deu-lhe um longo beijinho, pegou-lhe suavemente na mão e disse-lhe ao ouvido que lhe traria netinhos para lhe pregarem partidas. Não seriam do seu sangue, mas seriam doces e carinhosos.

Ryan empalideceu e deixou de comer. Perdeu 12 quilos numa semana. Passava o tempo a olhar pela janela, olhando as ramadas ondulantes das árvores da rua, sem TV e em silêncio.

Aos doze dias Thea teve que o levar para casa. Abandonou-se na cama durante três longas semanas. Foi alimentado e cuidado por Thea e Kathie, que se revezavam. Todos os dias lhe sussurravam suavemente ao ouvido que melhoraria e ficaria mais forte.

Nunca ninguém o procurou durante esse período, nem mesmo um padre.

Freddie e os gatinhos passaram longas horas a brincar com os novelinhos de lã no seu quarto.

Ao 36.º dia Ryan começou a murmurar e a sorrir.

O primeiro sorriso foi para Thea.

O primeiro murmúrio foi para Freddie.

O segundo sorriso foi para Kathie.

Pode contactar o autor do conto através de: pratas-young@theyeofhorus.net

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José Pratas-Young

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