A revolta contra o L. do D.

 A revolta contra o L. do D.

Vladimir Rodrigues (sem título, s/ papel, aguarela e tinta-da china).

… e porque hoje é quinta, sinalAberto continua a apresentar as criações de “um jovem poeta e pintor, postumamente descoberto”, na expressão que Cristina Nobre, uma das coordenadores desta rubrica “O Jazz de Vladimir”, utilizará mais adiante, a propósito das relações e leituras possíveis entre a escrita e os desenhos do autor, com José Régio e Bernardo Soares. Eis, pois, a segunda edição de uma rubrica iniciada a semana passada e cujos textos e pinturas podem ser desfrutados aqui em sinalAberto.

O grito de revolta

Não é por acaso que este número começa com a figura macilenta mas composta de Fernando Pessoa – uma extraordinária aguarela pintada por Vladimir em 2010 – e termina com um Fernando Pessoa em esquisso rápido, um tanto amachucado. E que se entretém longamente com o “Cântico Selvagem”, poetizado em data incerta a pretexto de um fragmento do Livro do Desassossego*, que fizemos acompanhar de aguarelas e desenhos traçados pelo punho do artista, uma fotoviagem da nossa visão descomprometida.

Vladimir já era, então, suficientemente maduro e complexo para lidar com as subtilezas, contradições e complexidades fragmentárias de Bernardo Soares e do seu perpetuamente inacabado L. do D.

Vladimir Rodrigues – sem título, aguarela e tinta-da-china.

No início do poema Vladimir ainda parece entreter-se com a ideia de B. Soares, esse mago da solidão ansiosa e da melancolia auto-justificada a que chama desassossego. «E eu aqui às voltas com o CÂNTICO SELVAGEM, estou satisfeito, lírico com as palavras», diz ele.

Mas depressa o “Cântico Selvagem” se converte num poderoso grito de revolta contra o torpor auto-centrado de B. Soares, ou seja, num vasto programa ideológico e de ação contra o que verdadeiramente está no fulcro do L. do D. Por outras palavras, o “Cântico Selvagem” é uma espécie de anti-L. do D.

Não no sentido pejorativo mas no plano da dialética, reforçada pelo instinto e pelo reflexo biológico, quase visceral. Vladimir serve-se de B. Soares para escapar à solidão e à prisão, nem que seja por uns instantes, a prisão de estar encarcerado em si. Creio que se pode dizer que B. Soares lhe dá, por contraste, o argumentário para a sua revolta.

Pensámos, pois, que este segundo número se deveria chamar “A revolta contra o L. do D.” Parecia justo.

O “desejo da sorte” – B. Soares não procura a sorte; O poderoso grito da “City Light” – B. Soares não foge através da alucinação, compraz-se na dor melancólica; As “rixas populares” e a resistência à repressão do governo-polícia – B. Soares não luta, esconde-se.

Os vários episódios da trama serão descobertos pelo leitor.

Boa leitura. Bom sonho.

Luís Martinho do Rosário
Coimbra, julho de 2020

*Trata-se de “Paisagem da Chuva”, que se pode encontrar em versão integral no Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. – 82.

CÂNTIGO SELVAGEM
Em cada pingo de chuva a minha vida falhada chora na natureza. Há qualquer coisa do meu desassossego no gota a gota, na bátega a bátega com que a tristeza do dia se destorna inutilmente/por/sobre a terra.
Fernando Pessoa, “Livro do desassossego”, Vol. I.

 – Nos arredores da nossa consciência está a nossa vontade.
A batalha trava-se entre o inconsciente e a realidade objetiva,
originando às vezes equívocos na nossa personalidade.
Quando isso acontece o melhor é:
– Beber uma Coca Cola e fumar um cigarrinho…

– Não sou deste mundo. “O vosso”.
Sou daquele onde nos deixaram medrar na vida.
Tornando o olhar em. Sonho.
Olho para ti, não este olhar não é o teu.
Dêem-me beijos de loucura,
desses que nos embebedam solenemente
e na selvajaria sou “o vosso” irmão humano…

– Não sou deste mundo. “O vosso”.
Sou daquele onde nos deixaram medrar na vida.
Tornando o olhar em. Sonho.
Olho para ti, não este olhar não é o teu.
Dêem-me beijos de loucura,
desses que nos embebedam solenemente
e na selvajaria sou “o vosso” irmão humano…

Vladimir Rodrigues, técnica mista, aguarela e tinta-da-china.

Que fazem eles, os homens normais? Tudo é doce.
– E eu aqui às voltas com o CÂNTICO SELVAGEM,
estou satisfeito, lírico com as palavras.

O “desejo de sorte” é sublime quando puro.
O cálice de vinho rubro tinge as entranhas
do condenado que não o vê (“o desejo de sorte”)
quando é conduzido ao cadafalso.
Livre é o espírito de se atormentar
nas ruelas do desespero.
A condição humana tem o infinito destino
de sobreviver às intempéries.

Vladimir Rodrigues – s/papel, aguarela.

TRANSFORMAÇÃO

Solidão onírica.
É neste breve espaço
cingindo o teu corpo
ao desejo de liberdade das esporas
que o estraçalham
que renasceo sangue
em vão derramado,
com lágrimas lavado.
Vive-se o passar dos dias
com esta ferida na carne lavrada.
O serenar dos risos e da chacota
corresponde à alvorada de uma solidão perpétua.
As horas passadas com a mulher de O
não compensam as marcas
infligidas pelo opressor.

Vladimir Rodrigues – s/papel, aguarela.

Cobras e lagartos,
rabiscos e conversas telefónicas
entrecortadas por gemidos de amor.
– “Welcome” à grande metrópole.
Cidades com iluminação permanente
“City Lights”
casas de ópio onde o amor selvagem
corre nas veias dos alucinados
que julgam ver Jesus Cristo
possuindo a virgem Maria
num final de mundo apoteótico.


Teus gemidos ecoam no meu cérebro
trasladados da tua animalidade perpétua
para a minha dor concreta.
Nas noites bafejadas pela intempérie
dos nossos espectros que tal Mar alto
te arrastam desfigurando a paisagem,
surgem as rixas populares
enaltecendo o poder do sangue.
A estátua decepada que tu és,
flagelada, petrificada,
espera a minha ausência.
Pedra mármore de transformação secular
na qual tu te impregnaste
deixando a carne podre e fétida
aos cães esconjurados e selvagens,
corrompendo o ideal estético.
Sons cabeça de dinossauro esmagando
a tristeza do Minotauro helénico
no século XX tornado vigoroso prostituto.

Alarmados pela decadência interplanetária
da sociedade vigente
altas instâncias do nosso governo
decidiram encerrar as casas de prostituição
mandando desinfetar com creolina
tais lugares de amor “fácil”.
Nominal deceção da massa popular
manifestando-se por todas as cidades
ostentando símbolos fálicos fabricados
em barro nas Caldas da Rainha.
O ritmo alucinante da polícia fez vários feridos.

Coerência nas atitudes, peles esfoladas,
rostos divagando na atmosfera celeste
a guilhotina esperando impávida e serena
pelas cabeças mais tarde rolantes
no asfalto ensanguentado.
Robespierre pega agora na cabeça de Danton
que exibe à multidão de há dezenas de anos atrás.

Necessidade de uma introspecção absoluta.
Silêncio dos audazes. O cinzento do nevoeiro
beatas e freiras a darem sermões em recital
à porta das igrejas
sensibilizando os transeuntes ao amor
de Jesus Cristo pelas ovelhas.

O mel das colmeias entrança teus cabelos
deixando no ar um odor
que excita os amplexos dos camionistas.
A História desfez-se em tiras de papel
ornamentando as ruas
onde desfilava o general K,
que saudava os cadáveres
expectantes por ali amontoados.

– MATA O PAI FODE A MÃE. Dizia James Douglas Morrison.

Amor frenético convergente na praia.
Derradeiras posses, cabeça na boca.
Dilatações palpitantes
no prazer que se afoga
nas carícias cegas.
Língua dentes investindo
na brancura do céu.

Flauta decadente aspergida
em fragmentações carnais.
Mamilos dolorosamente despertos.
Dedos crispados no corpo,
circulação no infinito.
Forças telúricas em esgares faciais.
Nas planícies, auroras boreais, ao poente do sol, rubras.

Vladimir Rodrigues – s/papel, aguarela.

No cinzeiro apago a ponta do cigarro firmemente.
Ergo a cabeça para te fitar, lentamente olhos nos olhos.
Vejo que és o fantasma a três dimensões,
da tipa morta de overdose na semana passada.
As ruas empoeiradas da cidade sufocam. Anoitece,
Mefistófeles espreguiça-se
confortavelmente à mesa do café.
As aragens noturnas limpam
as poeiras acumuladas durante o dia.
Romanticamente apanho no jardim um malmequer
oferecendo-o à puta provocante que está
de plantão ao virar da esquina.

És livre de me adular até à medula
com esse teu amor vicioso.

És livre de me adular até à medula
com esse teu amor vicioso.

Vladimir Rodrigues

Vladimir Rodrigues – s/papel, aguarela.

Luís Martinho do Rosário leu, como eu leio, o “Cântico Selvagem”, de Vladimir Rodrigues: uma dialéctica resposta/leitura/criação do jovem poeta e pintor – agora postumamente a ser descoberto no/pelo sinalAberto – ao Livro do Desassossego de Bernardo Soares.

Modelada na e com a literatura portuguesa do século XX, não pude deixar de o ler também como uma resposta íntima ao revoltado “Cântico Negro” de José Régio: a ‘normalidade’ dos outros, presente como um sinal no Cântico de Vladimir, gera a mesma exclusão-marginalização-repulsa e provoca a fuga na solidão do sangue-amor proibido-drogas leves ou potentes.

Nesta ligação de nós e redes literários encontro traços dispersos do antiquíssimo Tratado do Sublime* de Dionísio Longino. Segundo este Tratado, o princípio da discordância, no seu ponto máximo, gera o sublime (p. 73):

«[…] Não admiras como para um mesmo sujeito busca a alma, o corpo, os ouvidos, a língua, os olhos, a cor e tudo, como se fossem pessoas diferentes e próximas a expirar, e como por movimentos contrários, ao mesmo tempo se gela, arde, enlouquece, toma acordo? Porque ou teme, ou quase morre, de maneira que não se lhe vê uma só paixão, mas um cúmulo e amontoado de todas as paixões. Na verdade, assim tudo sucede nos que amam; mas a escolha dos grandes extremos e o saber ligá-los entre si para formar um só corpo, produziu tão excelente beleza. […]»

Cântico Selvagem é um grito de revolta: apenas amenizado pela tecelagem com as pinturas/desenhos/traços de Vladimir agora dados à luz por terceiros, atingindo um cume no sentido do sublime contido na crueza deste poema. Como o lemos transformou-se num poema gráfico: ut pictura poesis. Acredito que o autor – multifacetado – aprovaria a edição feita como a vão ler.

Cristina Nobre
S. Pedro de Moel, 27 de julho de 2020

*Obra publicada originalmente em 1771, traduzida do grego por Custódio José de Oliveira. Introdução e actualização do texto por Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.
Disponível online: Do Sublime por Dionísio Longino. (Tradução do grego, introdução e comentários por Marta Isabel de Oliveira Várzeas.) Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015.

Coordenação:

Luís Martinho do Rosário (conheceu e acompanhou a trajetória literária e artística de Vladimir. É professor de biofísica da UC e investigador do CNC)

Cristina Nobre (analisou a obra de Vladimir após a sua morte. É especialista em literatura portuguesa moderna e contemporânea. É professora do IPL e investigadora do CICS.NOVA)

Siga-nos:
fb-share-icon

sinalAberto

Outros artigos

Share
Instagram