A (tel)escola ainda não é para todos

 A (tel)escola ainda não é para todos

André.

André e Tiago são duas crianças com 13 anos. Em comum, além da idade, o facto de serem crianças com deficiência. Com o advento da pandemia, a sua situação escolar, que ainda não era a ideal, agravou-se. Alunos que rejeitaram aulas através do ecrã de um computador ou casos de crianças que se revoltaram, porque não percebiam a situação, nem os pais a conseguiam explicar. No dia a dia, além da Covid-19, são ainda mais os desafios que estas crianças têm de enfrentar.

Tiago.

Helena Albuquerque, presidente da Humanitas – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, adianta que, “se esta população já era prejudicada antes, neste momento, é muito mais prejudicada. É muito tempo”, acrescenta. Afinal de contas, crianças como o André e o Tiago não são apenas sujeitas ao “novo” modelo de ensino à distância, como milhares de outros jovens, mas também a terapias que têm de ser reformuladas ou, até, suspensas por tempo indeterminado.

Tiago frequenta o sétimo ano de escolaridade em Montemor-o-Velho. Marta Monteiro refere que o filho procurou adaptar-se ao ensino, em casa, desde o encerramento obrigatório das escolas a 16 de março. Contudo, com o início da telescola (#EstudoemCasa) a 20 de abril, Tiago ficou revoltado. Ao assistir às aulas de educação física, através do ecrã da “caixa mágica”, reclamou que “também deveriam ter alguns exercícios para as pessoas com algumas dificuldades, que não podem fazer as mesmas atividades”, assinala a mãe.

André.

Aos 12 anos, Tiago foi diagnosticado com Distrofia Muscular de Duchenne. Uma forma de doença muscular que resulta da incapacidade do organismo produzir uma proteína fundamental (distrofina) para o funcionamento do músculo.  Apesar de assistir às restantes aulas, “a partir desse momento, nunca mais quis ver as de educação física”. Tiago jogava Boccia (um jogo misto, que pode ser jogado por pessoas com ou sem dificuldades motoras) e ping pong na escola. Em casa, essas oportunidades foram-lhe negadas e não houve alternativa no ensino à distância.

Apesar de também frequentar o sétimo ano de escolaridade, André não sabe ler, nem escrever. O filho de Alexandra, que vive em Cantanhede, foi diagnosticado com Síndrome de Down (Trissomia 21), uma doença cromossómica provocada por um cromossoma 21 a mais, que resulta em deficiência intelectual e anomalias físicas. Alexandra Carreira adianta que “o André tem 0% de autonomia para qualquer tipo de atividade.” Assim, necessita de ajuda permanente de alguém que faça com ele as fichas e as atividades. “Um apoio que, agora, ele não tem”. Uma vez que Alexandra nunca parou de trabalhar, são as duas irmãs de 15 e 11 anos que ajudam o irmão, ao mesmo tempo que continuam os seus trabalhos para a escola. Indignada, a mãe recorda as palavras dos colegas, que lhe diziam que deveria estar em casa com o filho, embora Alexandra, viúva e sem família por perto, não tivesse alternativa a deixá-los sozinhos em casa.

“Grande parte destes alunos com incapacidade e défice cognitivo tem baixos níveis de atenção”, adianta Helena Albuquerque, também presidente da Associação Portuguesa dos Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Coimbra (APPACDM Coimbra), o que agrava com a ausência de um acompanhamento presencial e personalizado.

No caso de André, a atenção à telescola é diminuta. “Se não for obrigado, ele rapidamente muda de canal ou se vai embora”, confessa Alexandra. O filho, apesar de frequentar o sétimo ano, assiste às aulas de primeiro ciclo, pois são aquelas que equivalem ao seu desenvolvimento cognitivo. “Mas, mesmo assim, ele não consegue acompanhar”. Com um tempo de atenção “máximo” de 10/15 minutos, “a telescola serve para o entreter um bocado, mas duvido que o consiga ensinar”, acrescenta.

As barreiras do quotidiano

Antes da pandemia, André e Tiago eram acompanhados na escola. Tiago usufruía de fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e psicóloga. Na sala de aula, Alexandra recorda que André assistia “a cerca de 50%” das aulas com os restantes colegas, em coordenação entre a professora de ensino especial e a professora da turma. As restantes, eram lecionadas pela professora de ensino especial, como português e matemática. Tal como Tiago, André usufruía de terapia ocupacional, terapia da fala e psicologia. Apoios esses que são dados pelos Centros de Recursos para a Inclusão (CRI). São serviços especializados na comunidade, acreditados pelo Ministério da Educação, que visam apoiar as escolas no apoio a todos os alunos, sem exceção.

Uma das características destes alunos é que eles privilegiam muito a parte sensorial. O toque, o abraço, a relação afetiva. Isso é impossível de fazer através de um computador

Para além do ensino à distância, estas crianças tiveram de lidar com o cancelamento ou adiamento das diversas terapias que são fundamentais para o seu desenvolvimento. Helena Albuquerque salienta dois tipos de casos, embora na “deficiência intelectual”, a área de atuação da Humanitas, “não existam padrões”. Destaca o caso dos alunos que aderiram bem ao ensino à distância, que até “acharam graça a ver alguém que conheciam na televisão” e aqueles que, por outro lado, “recusaram completamente qualquer tipo de contacto”.

Além disso, as próprias carências económicas podem ser, a priori, uma barreira de acesso aos meios digitais, que vieram colmatar (ainda que, somente, para alguns) a ausência de aulas presenciais. Uma questão que lhe é “sensível”, dado que Helena é também professora universitária no Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. “No ensino superior, também se notam estas desigualdades”, aponta.

Helena Albuquerque.

Marta Monteiro, mãe de Tiago, confessa que, “no início, não foi muito fácil”, uma vez que não tem “muitos conhecimentos informáticos”. Pela campainha da porta, chegavam as fichas para Tiago fazer. O filho, confinado a uma cadeira de rodas, “não é um menino de falar muito”. Apenas ia respondendo aos professores pelo chat. Mas, agora, “já está mais participativo e os professores ficaram muito contentes com ele”.

A família de André possui dois computadores em casa. Com três filhos em idade escolar, Alexandra Carreira tinha de fazer a gestão dos computadores, tendo em conta os horários e as necessidades dos filhos. Critica que toda a situação “foi planeada, tendo em conta que os pais com meninos com necessidades especiais têm direito a ficar com eles. Mas, entre ter direito e ficar, vai uma grande distância”. Apesar de reconhecer ser complicado adaptar o contexto à distância “a um fenótipo tão dependente como ele tem”, a quantidade de fichas para fazer semanalmente dificulta a tarefa. “Ele chegou a ter 25 páginas de fichas, quando, na escola, deve fazer 10”, adianta. Além disso, André foi também “desligado da turma”, pelo que o contacto se cinge apenas à professora de ensino especial. Os esforços de contacto foram, na visão da mãe, “insuficientes”, apenas “conversa de circunstância”, e não para ajudar o filho com as atividades da escola.

Créditos: APPACDM de Coimbra

A presidente da APPACDM de Coimbra destaca que “uma das características destes alunos é privilegiarem muito a parte sensorial. O toque, o abraço, a relação afetiva (…). Isso é completamente impossível de fazer através de um computador.” Assim, com o ensino à distância, o normal desenvolvimento destas crianças fica comprometido, embora as condições anteriores “ainda não fossem as desejáveis”.

A presidente da APPACDM de Coimbra destaca que “uma das características destes alunos é privilegiarem muito a parte sensorial. O toque, o abraço, a relação afetiva (…). Isso é completamente impossível de fazer através de um computador.” Assim, com o ensino à distância, o normal desenvolvimento destas crianças fica comprometido, embora as condições anteriores “ainda não fossem as desejáveis”.

Nas terapias, algumas perdas são irreparáveis

Quando o coronavírus chegou a Portugal, tudo mudou. Além do modelo de ensino, as terapias que estas crianças frequentavam também tiveram de ser adaptadas. Em casos mais extremos, canceladas. Alexandra e Marta salientam que março foi um mês complicado, marcado pela incerteza. No caso de Tiago, só em abril é que a escola reuniu para ele começar a usufruir das terapias. “A fisioterapeuta manda vídeos, que repetimos” e as restantes terapias, além das consultas de psicologia, ocorrem através de videoconferência, refere Marta Monteiro.

Alexandra Carreira.

Helena Albuquerque destacou a importância, durante a pandemia, da reunião com os CRI filiados na federação, “uma vez que, antes da pandemia, as coisas já estavam mal e precisavam de ser revistas”. Concluíram que, mesmo que algumas crianças tolerem as tecnologias, a maior parte das terapias não pode ser feita à distância. “Foi reforçado que se notava que algumas perdas são irreparáveis”.

A presidente da Humanitas recordou o caso do seu filho, 35 anos, com Trissomia 21, e que não pode fazer uma das terapias fundamentais para o seu desenvolvimento: a hipoterapia, dado que “todas as piscinas públicas se encontram com acesso vedado”. “Há muitas terapias fundamentais que, agora, não são feitas”, acrescenta.

Em Montemor-o-Velho, Marta Monteiro trabalha quatro horas por dia, para conseguir estar mais presente para ajudar o Tiago. “No mês que esteve parado, começou a ficar mais preso”, relembra. Agora, apresenta algumas melhoras, mas a situação ainda não é a ideal. André, por sua vez, “não regrediu um pouco, regrediu muito”, defende a mãe, diretora técnica numa fábrica.

Marta Monteiro.

A presidente da Humanitas recorda as palavras de uma das terapeutas dos CRI: “os pais não são terapeutas”. Assim, apesar da boa vontade, é, muitas vezes, “quase impossível, para a maior parte dos pais, fazer terapia aos jovens com deficiência, porque não têm formação”. A mãe de André reconhece a importância do trabalho destes profissionais, mas lamenta que “não haja condições para os próprios técnicos colocarem em prática o que aprenderam e para os quais foram formados”. Além disso, todos os anos os lugares dos técnicos vão a concurso público, o que implica uma mudança radical na vida destas crianças. “Perde-se tempo precioso num ano letivo que, ainda por cima, vai começar sempre com terapeutas novas que demoram meio ano para conhecer as necessidades e as particularidades de cada uma destas crianças”, defende a mãe.

Helena Albuquerque denuncia como agravante o facto de, desde há três anos, “as instituições receberem exatamente o mesmo montante, sem apreciação e sem levantamento de caso”. Assim, com o aumento do salário mínimo nacional, o número de profissionais a ser contratado diminui. Por sua vez, o número de crianças com necessidades educativas especiais e com deficiência tem vindo a aumentar nas escolas, com a implementação da escolaridade obrigatória para todos. Algo que não é tido em conta, até porque a verba que era atribuída chegava a ser “cortada para cerca de 50%”, critica a presidente da federação. Apesar das constantes notificações, “o Ministério da Educação não tem sido permeável às questões das federações”, destaca Helena Albuquerque.

Os princípios da escola inclusiva avançaram com a implementação do Decreto Lei nº3/2008. Uma das suas bandeiras baseia-se na pretensão da “equidade educativa, sendo que por esta se entende a garantia de igualdade, quer no acesso quer nos resultados”. Contudo, como assinala Marta Monteiro, essa equidade ainda não é efetiva, pois “tem sido uma batalha, na escola, para o Tiago conseguir ter as condições necessárias”. Mesmo assim, ainda “não possui um elevador”, o que representa uma dificuldade acrescida para o filho, que tem de se descolar numa cadeira de rodas. Por sua vez, Alexandra Carreira denuncia que o futuro se está a tornar “um bocado obscuro para estas crianças, que enfrentam cortes consecutivos, por uma política não muito específica e vocacionada para longo prazo”.

A importância das rotinas

Para as crianças com deficiência, o contacto, o toque e os abraços são essenciais. As sensações são um dos “materiais” necessários para a sua aprendizagem e desenvolvimento. Como tal, as rotinas possuem um caráter fundamental, pois estas crianças “têm uma perceção da realidade diferente” e “não se conseguem organizar temporalmente da mesma maneira”, assinala a presidente da APPACDM de Coimbra.

Créditos: APPACDM de Coimbra.

Tiago, no início, ficou revoltado e não conseguia perceber. “É complicado explicar-lhe as coisas, ficou muito assustado”, disse Marta Monteiro. Ao contrário da maioria das crianças, Tiago “queria ficar fechado em casa e não queria ir a lado nenhum”. Só recentemente é que os pais conseguiram ir dar uma volta, com ele, a pé.

Para André, estar em casa é sinónimo de férias. “Ele não associa o espaço da casa às aulas”, refere a mãe. Sabe da existência de “um vírus” que provoca uma doença e que, daí, não pode ir à escola. Alexandra confessa ser complicado criar novas rotinas, uma vez que a sua organização temporal é através das atividades. E, tudo reunido “equivale a uma manhã de trabalho, o que representa uma ínfima parte da semana”.

O Ministério tem de traçar esta área como prioritária

Mesmo antes da pandemia, o desinvestimento na área já era uma preocupação para as associações e para os pais. Desta forma, a inclusão, no “verdadeiro sentido da palavra, perdeu o seu significado”, critica Helena Albuquerque. “A inclusão para a deficiência representa a inclusão futura na sociedade” e a falta de financiamento põe em causa uma das suas condições a priori – a educação.

Apesar da existência do Decreto Lei nº54/2018, que reforça os objetivos da escola inclusiva, este “é muito feito para o modelo anterior e não de sensibilização da comunidade”. Com base nos pilares: educação universal, equidade, inclusão, personalização, flexibilidade, autodeterminação, envolvimento parental e interferência mínima, como assinala Helena Albuquerque, a sua “filosofia é perfeita”. Contudo, “na prática, não é aplicado, visto que as escolas continuam a exigir um financiamento que se revela desadequado”.

O Ministério da Educação deveria rever as situações destas crianças, que não se enquadram em instituições de ensino, porque não foram feitos, não têm programas, nem meios, para dar resposta às suas necessidades

O regime de ensino destas crianças possui duas modalidades. O caso de André e Tiago que frequentam as escolas públicas, integrados pelos princípios da escola inclusiva, através dos apoios dos CRI. Por outro lado, as crianças que frequentam as escolas especiais ligadas a instituições de apoio à deficiência. Salientando a fragilidade desta “população”, Helena Albuquerque critica a abertura das escolas “especiais”, a 18 de maio, quando apenas os alunos que tinham exames de secundário retomaram a atividade presencial.

André.

André tem 13 anos e não sabe ler, nem escrever. No entanto, como as restantes crianças, é obrigado a frequentar a escolaridade obrigatória. A ausência de contacto com a realidade da vida destas crianças é uma das falhas denunciadas pelos pais. Alexandra Carreira aponta que “ajudava muito que, quem tomasse as decisões, não estivesse sentado num gabinete”. O Ministério da Educação “deveria rever as situações destas crianças, que não se enquadram em instituições de ensino, porque não foram feitos, não têm programas, nem meios, para dar resposta às suas necessidades”, destaca a mãe. As condições têm de ser criadas nas escolas, pelo que “o Ministério tem que traçar esta área como prioritária”, assinala a presidente da federação.

Uma inclusão com discriminação

A mãe de André assume-se a favor da teoria da inclusão, pois “não se devem criar os guetos dos deficientes”. Contudo, considera que o atual sistema não é o adequado, uma vez que não permite uma “inclusão plena”, devido à ausência de meios adequados. “Na prática, o meu filho é excluído dos colegas, porque não os consegue acompanhar nas conversas, nem nas aulas”. Helena Albuquerque alerta para a urgência de “trabalhar a questão da deficiência das escolas”.

Num sétimo ano, o fosso cognitivo é muito grande e não há nada em comum entre eles

No caso da deficiência mental, a situação agrava-se. “Enquanto nas outras deficiências pode haver uma representação na primeira pessoa”, na deficiência intelectual isso não acontece. A “federação é a voz daqueles que não conseguem, nem têm capacidade para ter voz”.

Créditos: APPACDM de Coimbra.

Este “fosso cognitivo” repercute-se no quotidiano de André. “O meu filho passa os intervalos com as auxiliares ou então sozinho”, relata Alexandra Carreira. Como não chumba, é obrigado a frequentar o ano de escolaridade correspondente à sua idade. Mas, como adianta a mãe, com colegas com os quais não se identifica, nem se identificam com ele. “Acaba por ser uma inclusão com discriminação”, critica.

Marta Monteiro assinala que “nem todas as crianças são iguais e muitas têm dificuldades”. No caso de Tiago, a revolta foi maior devido à desadequação das aulas de educação física da telescola, “que não foi pensada para as exceções”, acredita Alexandra Carreira. “A telescola não foi feita a pensar em meninos com necessidades educativas especiais. Não tem encaixe possível”, remata.

Com o escalar da pandemia a nível mundial, muitos setores ficaram parados. Mas, na retaguarda desses setores estão milhares de pessoas que, todos os dias, veem a situação do seu agregado familiar a complicar-se. No caso das crianças com deficiência, apesar dos avanços da escola inclusiva, o resultado está longe de ser o esperado. As associações apelam a mais um esforço que, em nome da inclusão, tem de andar de mãos dadas com as necessidades destas crianças.

Perguntas sem resposta do Ministério

Antes da publicação da reportagem, na sexta feira de manhã, foi dada oportunidade ao Ministério da Educação para responder a algumas questões. O prazo foi estabelecido, na terça, até ao final do dia de quinta feira. De seguida, as perguntas que foram enviadas:

Com o início da pandemia, que medidas tomou o Ministério relativamente ao ensino das crianças com deficiência e necessidades educativas especiais?

Quais os feedbacks que receberam, face às medidas adotadas?

Tem havido contacto permanente entre o Ministério e os Centros de Recursos para a Inclusão?

Antes da pandemia, os princípios da escola inclusiva funcionavam como previsto na lei?

Os pais de crianças com deficiência e/ou necessidades educativas especiais queixam-se de que os conteúdos na telescola não foram devidamente  adaptados. Quais as razões dessa não adaptação dos conteúdos?

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Catarina Magalhães

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