Armando Nhantumbo: Cabo Delgado enfrenta “grave crise humanitária” por causa da guerra e da Covid-19

 Armando Nhantumbo: Cabo Delgado enfrenta “grave crise humanitária” por causa da guerra e da Covid-19

Cabo Delgado, Moçambique (Créditos: Armando Nhantumbo)

Na Província de Cabo Delgado, em Moçambique, cerca de dois mil quilómetros a norte da capital Maputo, as populações sofrem duplamente. Sofrem pela violência armada de grupos jihadistas pertencentes ao autodenominado estado islâmico Daesh, que já mataram mais de mil civis, e sofrem pela Covid-19 que entrou em força naquela região pobre, apesar das riquezas do seu subsolo.

Visto ao pormenor, esse sofrimento está longe de ser apenas fruto da doença ou do acaso das balas das armas. É por esses motivos, claro, mas mais ainda porque por ali passa um corredor de tráfico de droga proveniente do Afeganistão, há contrabando de ouro, madeiras e rubis e, quando tantos interesses se juntam face a um poder frágil e longínquo, quem sofre é o mexilhão.

Armando Nhantumbo

Regressado de Cabo Delgado, o repórter Armando Nhantumbo, do semanário moçambicano Savana, afirma, no seu jornal, que aquela zona do país vive dias “simplesmnente dramáticos”,  em consequência dos deslocados da guerra, a que acrescem os efeitos da pandemia que também se faz por lá sentir. 

A situação é de tal modo grave, que o bispo de Pemba, D. Luiz Fernandes Lisboa, não só denunciou já publicamente aquele cenário de completo martírio, como já apelou ao representante, em Maputo, das Nações Unidas, para que esta organização tomasse medidas de apoio.

Mas afinal, o que se sabe e pode dizer de uma situação tão complexa, quanto violenta? Qual a dimensão do drama humano escondido e longe dos holofotes mediáticos, ao qual só através de poucas vozes vamos tendo um acesso distante e diferido? Com o objetivo de obter algumas respostas para tantas dúvidas, sinalAberto colocou, por email, algumas perguntas a Armando Nhantumbo, pouco depois do seu regresso a Maputo. Na bagagem e nos sentidos traz estórias doridas de gente habituada a sofrer, a viver à míngua, mas a quem agora, segundo refere, “falta tudo”. E se o presente é feito de sofrimento, o futuro a breve prazo não deverá ser melhor, segundo o jornalista. Em seu entender, aliás, “uma mudança radical da situação” só será possível no dia em que o “Estado perceber que a resposta não deve ser apenas militar”. Oiçamos, então, o que Armando Nhantumbo tem para nos contar.

SinalAberto — Acaba de regressar de Cabo Delgado, não sei se do coração do conflito.  Quais as impressões mais fortes que guarda dos dias que lá passou?

Armando Nhantumbo — Não estive, propriamente, no coração do conflito. Como deve saber, o coração do conflito tornou-se numa zona proibida para jornalistas. Há, do lado dos militares, uma verdadeira “caça ao homem” contra jornalistas, usados como bodes expiatórios na missão nem sempre bem-sucedida contra os ataques. Lembro-me, inclusivamente, de um deslocado de guerra me dizer, citando militares, que “nós fazemos desaparecer pessoas”. Pelo sim, pelo não, um repórter de uma rádio comunitária local, Ibraimo Mbaruco, continua desaparecido, há mais de 2 meses, depois de ter enviado mensagens para colegas a informar que estava cercado por militares.

Mas voltando à pergunta, também não cheguei ao coração do conflito pela natureza do trabalho que ia fazer, desta vez. Tratava-se, pois, de um trabalho sobre a crise humanitária causada pelos ataques, nomeadamente, nos locais de chegada dos deslocados de guerra. Aí, a situação é terrível. Cada deslocado tem uma história assustadora para contar. Desde aqueles que perderam casas e todos os bens, até aqueles que perderam ente-queridos, passando por casos de mulheres que deram parto nas matas enquanto fugiam dos ataques.

Quando, por exemplo, um dos slogans das autoridades é “ficar em casa”, lembro-me de um dos deslocados me questionar: “como ficar em casa se nem casa temos?”. E não têm mesmo porque as casas foram queimadas

São pessoas que deixaram tudo para trás, percorreram longas distâncias a pé e pernoitaram nas matas, sem nada para comer nem para beber, a fugir da guerra. São pessoas que, de repente, viram suas vidas destruídas por um conflito que desconhecem. São pessoas que, do nada, tentam hoje recomeçar a vida. Alguns em centros de acolhimento e outros em casas de familiares ou mesmo de pessoas desconhecidas. Estão a passar por todo o tipo de privações. Falta-lhes tudo. Desde comida até teto para dormir.

É uma verdadeira crise humanitária. Infelizmente, veio a coincidir com um momento em que o mundo atravessa um inimigo invisível, a covid-19. É triste dizê-lo, mas é isso mesmo: a covid ficou para o segundo plano para quem está a fugir da guerra. Não foi só o que observei. Eles próprios o confirmaram. Quando, por exemplo, um dos slogans das autoridades é “ficar em casa”, lembro-me de um dos deslocados me questionar: “como ficar em casa se nem casa temos?”. E não têm mesmo porque as casas foram queimadas.

Sucede, porém, que Cabo Delgado é um dos epicentros de casos de covid-19 em Moçambique. Com pessoas a fugirem da guerra e aglomeradas em centros de acolhimento ou em casas; com fraca observância de medidas de prevenção contra a covid-19, Cabo Delgado poder ser um barril de pólvora que poderá explodir a qualquer momento.

SA — O que mais o surpreendeu, face às informações que dispunha, quando saiu de Maputo?

AN — Foi, justamente, ver esse lado oculto da guerra. O lado que, habitualmente, não aparece nos noticiários da comunicação social. Um verdadeiro drama humano que, muitas vezes, se esconde por detrás das notícias e da propaganda sobre e guerra em si.

Governo muda de estratégia face ao conflito

SA — Por que é só nos últimos meses o governo moçambicano decidiu enfrentar militarmente as posições dos jihadistas, quando o conflito remonta a outubro de 2017?

AN — Em rigor, o governo sempre enfrentou, militarmente, o grupo atacante. A única coisa que aconteceu foi uma mudança de abordagem nos últimos tempos. No início, o Governo tratou o assunto como uma situação fortuita de perturbação de ordem por malfeitores. Mas mesmo assim, estavam lá os militares, ainda que quem desse a cara fosse a Polícia da República de Moçambique, talvez para não se dar a ideia de uma agressão externa ao país, quando se impõe a intervenção das Forças Armadas.

Só mais tarde, sobretudo, a partir de 2019, é que o Governo se apercebeu ou, no mínimo, assumiu a gravidade da situação, até que, a 23 de Abril deste ano, o Conselho Nacional de Defesa e Segurança, um órgão de consulta do chefe de Estado para assuntos de soberania e integridade territorial, admitiu, publicamente, que “estamos em presença de uma agressão externa perpetrada por terroristas”.

Foi, portanto, a partir do ano passado, mas com maior robustez este ano, que o Governo muda de abordagem na resposta ao conflito, saindo da narrativa de simples “malfeitores” para “terroristas”; uma mudança que incluiu a entrada, no teatro operacional norte, de empresas privadas de segurança.

Créditos: zambeze.info

SA — Sem o apoio de mercenários sul-africanos e russos, como tem sucedido desde maio, as forças militares moçambicanas conseguiriam enfrentar os grupos jihadistas?

AN — Com muitas dificuldades, como, aliás, vinha fazendo desde 2017. Mas é preciso compreender que este não é só problema de Moçambique. Ainda que o conflito se nutra ou, pelo menos, capitalize fatores internos, trata-se, no final, de um problema global que requere sinergias ao nível da região e do mundo. É com tristeza que noto haver timidez nessa colaboração.

O contrabando e as expetativas frustradas do povo

SA — O presidente de Moçambique afirmou em março, que o conflito representava um ataque à soberania do país. Está em risco a soberania sobre Cabo Delgado?

AN — Quando grupos armados chegam a ocupar vilas distritais; ficam três dias e saem, não porque foram escorraçados, mas porque quiseram sair, aí é difícil reivindicar soberania.

Durante muito tempo, o Estado esteve, praticamente, ausente em Cabo Delgado, mas, nos últimos anos, ele apareceu com força, não como provedor de serviços para a população, mas como um Estado corrupto e protetor de uma elite do partido Frelimo, envolvida no saque das riquezas da província

SA — O representante das Nações Unidas, em Moçambique, para a Droga e Crime Organizado afirmou a semana passada que o tráfico de heroína, do Afeganistão para a Europa, é a causa principal do atual conflito na província de Cabo Delgado. Concorda com esta interpretação?

AN — O tráfico de drogas é importante, mas não é suficiente para explicar os acontecimentos de Cabo Delgado. Há vários interesses em jogo. Há a pobreza extrema. Moçambique é um país com grandes assimetrias regionais e Cabo Delgado, à semelhança de toda a região norte do país, apresenta os indicadores mais baixos em quase todos índices de pobreza multidimensional.

Depois, há as lutas das elites pelo controlo dos recursos naturais da província. Mas também há as expectativas do povo frustradas sobre os benefícios desses recursos. Há o contrabando de madeira, rubis, ouro, etc. Durante muito tempo, o Estado esteve, praticamente, ausente em Cabo Delgado, mas, nos últimos anos, ele apareceu com força, não como provedor de serviços para a população, mas como um Estado corrupto e protetor de uma elite do partido Frelimo, envolvida no saque das riquezas da província.

Depois, há as clivagens étnicas seculares entre os makondes e mwuanis. Estes são apenas alguns exemplos que mostram que a província é um terreno fértil para conflitos. Aliás, a própria historiografia de Cabo Delgado mostra, claramente, que a província foi sempre palco de conflitos de vária ordem.

Créditos: Armando Nhantumbo

Tudo indica que os ataques vão continuar

SA — Além das ações violentas dos jihadistas há relatos consistentes acerca de outros ataques, no centro de Moçambique, levados a cabo por forças da RENAMO?

AN — Infelizmente, essa é a realidade do país: ataques em Cabo Delgado, no norte, e ataques nas províncias de Manica e Sofala, no centro. Mas o mais grave é ver como o Governo e a Renamo preferem dar passos para frente no Desarmamento e Desmilitarização dos guerrilheiros deste movimento, quando há uma parte dissidente da própria Renamo que está a contestar esse processo. E essa parte, auto-intitulada Junta Militar da Renamo, não contesta só com palavras. O faz matando e destruindo na zona centro.

A situação de Cabo Delgado é complexa e exige conjugação de várias respostas, incluindo de natureza sociológica, antropológica a até histórica. E aí, infelizmente, sai a perder o Estado quando proíbe que jornalistas e pesquisadores entrem no terreno e ajudem a compreender as diversas nuances do problema

Créditos: Armando Nhantumbo

SA — Como entende que vai evoluir a atual situação, em Cabo Delgado?

AN —  É difícil prever o futuro em linha reta. Mas tudo indica que os ataques vão continuar. Até porque, com a mudança de estratégia por parte das Forças de Defesa e Segurança, os atacantes também mudaram de estratégia, dividindo-se em pequenos grupos e realizando vários ataques nas aldeias, alguns só para dispersar a tropa. Acho que uma mudança radical da situação vai acontecer quando o Estado perceber que a resposta não deve ser apenas militar. A situação de Cabo Delgado é complexa e exige conjugação de várias respostas, incluindo de natureza sociológica, antropológica a até histórica. E aí, infelizmente, sai a perder o Estado quando proíbe que jornalistas e pesquisadores entrem no terreno e ajudem a compreender as diversas nuances do problema.

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João Figueira

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