As lesões da memória que o tempo não sarou
- A Guerra Colonial Portuguesa terminou há 45 anos

 As lesões da memória que o tempo não sarou - A Guerra Colonial Portuguesa terminou há 45 anos

“Guerra Colonial: exército português em operações.”(1964) – Fundação Mário Soares

Há 31 anos que um presidente português não visitava Guiné-Bissau, país que constituiu o cenário mais duro da guerra que opôs o Portugal colonial aos movimentos africanos de libertação. A questão colonial, ligada à construção da memória histórica constitui, de resto, a par das questões ligadas ao racismo, um tema do nosso tempo presente. O que significa que importa debater, analisar e conhecer melhor os múltiplos contornos dos caminhos que coletivamente trilhámos. Neste contexto, sinalAberto visita uma das feridas abertas do passado colonial português e que só, muitos anos depois de terminados os conflitos em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau, foi reconhecida como doença: stress pós-traumático de guerra. 

No início do ano de 1961, os movimentos de libertação das ‘colónias portuguesas’ iniciaram lutas armadas. Portugal respondeu com o envio de tropas para combater os guerrilheiros, iniciando então a Guerra Colonial. O arrastamento desta guerra e o elevado número de vítimas (consultar infografia) foram factos que exigiram uma resposta que Salazar não queria dar, apesar da pressão endurecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e da hostilidade por parte das novas nações livres. A única resposta desse governante foi substituir o termo “colónia” por “territórios sob dominação portuguesa”, tática verbal para branquear a guerra.

Eis a história de protagonistas que, entre 61 e 74, perderam para que Salazar ganhasse. Alguns deles, hoje, desfardados e desarmados, não combatem com uma G3, mas contra si mesmos: contra o stress pós-traumático marcado por reminiscências que a memória evoca dos anos em guerra. Outros contam histórias que foram ocultas da própria História, a face da moeda que a Imprensa censuraria na altura, mas que, hoje e sem lápis azul, se cristalizam porque ficam escritas.

Aljezur é a vila da Costa Vicentina onde reside Vitorino Carvalho, de 67 anos e natural de Monchique. Foi aí que, aos 21 anos, recebeu a carta a chamá-lo para o serviço militar, após o qual trocou os campos que aí cultiva pelo campo de batalha da Guiné, onde foi atirador.

O dia em que o capitão Lourenço ordenou que carregasse a bazuca foi também o dia em que Vitorino voltou ao quartel com “o corpo todo mordido”, primeiro episódio que recorda: “caí ao pé de um tronco cuja grossura equivalia a quase dois bidões e que já estava estragado. Saíram de lá formigas aos montes e maiores do que abelhas. Julguei não aguentar. Morderam-me de rajada, causando-me uma dor que nunca pensei ser possível sentir até sentir. Parece que ainda a sinto, só de pensar.”

Apesar de o corpo estar todo mordido, Vitorino continuou o percurso, a rastejar, com as feridas a raspar na terra e com dois mercenários atrás a carregar granadas elétricas (ao jeito de quem sabe de cor as propriedades da artilharia que o corpo carregava e ainda tivesse as granadas em sua posse, Vitorino gesticula com as mãos o seu tamanho e formato). Como se não bastasse o desgaste físico, acresceu o psicológico, atiçado pela sova do capitão- “quando aquilo acabou, o capitão começou a mandar vir comigo porque, quando caí, despistei os mercenários. Ameaçou que me partia a cabeça e me metia na prisão. Vá lá que andava lá na guerra comigo um grande amigo meu de Lisboa (quando andamos em guerra, há que arranjar sempre um confidente) e tentou meter juízo no capitão.” Resultou? Pergunto. “Ficou demovido, sim. Pediu-me desculpa e até me deu 10 dias de férias, quando me voluntariei para dar sangue a um moço que, se não levasse uma transfusão, morria.”

Aproveitando a referência às férias que Vitorino recorda, foi precisamente numa vinda a Portugal que sentiu o peso da inércia que os tiques de quem combate exerce: “vim cá de férias, em 73, e fui a Lagos, de motorizada. Nesse dia, havia festa na Avenida dos Descobrimentos. Assim que eu ouvi os foguetes (fogo de artifício), larguei a mota e joguei-me ao alcatrão, como se estivesse em campo de combate. Afinal, ’távamos habituados e fomos treinados para saltar dos carros sempre que houvesse bombardeamentos. Digo isto de forma pura: não há ninguém que tenha saído lá normal. Ninguém!”

“Será que vou voltar a ver aquela?” (aponta para a esposa) era a indagação sôfrega, porque exigente de resposta impossível, antes de findar as férias e retornar às armas.

Tomar banho no rio que corria junto ao quartel funcionava como escapatória para resistir a temperaturas que chegavam a rondar os 40 graus. “Às vezes, até se aproveitava para apanhar camarão, que havia lá e do bom!” Um dia, Vitorino cedeu à vontade súbita de “ir ao rio com os camaradas para ver quem é que aguentava mais tempo dentro de água. Brincadeiras malucas de quem, aos 22 anos, ainda não tem assentamento na ideia”, reflete Vitorino. Acontece que “um moço açoriano bateu com a cabeça numa pedra, mas outro deu-lhe uma sapatada e ele veio acima”. A visão ou omnisciência raio-X do capitão Lourenço mostrou-se, mais uma vez, infalível e implacável- “deu-lhe umas cinturadas tão valentes, que o moço ficou todo marcado. Acho que ainda as vejo, se fechar os olhos.”

É também do tempo precedente ao combate na Guiné que Vitorino extrai episódios bárbaros: “Quando estive na tropa, em Abrantes, colocaram-nos dentro dos canos da cidade para fazer um exercício. Saímos dos canos encharcados de merda. Digam-me lá se isto é coisa que se faça a um ser humano!?”

45 anos passaram; as formigas maiores do que abelhas são, hoje intangíveis; as ameaças de morte vindas do capitão Lourenço findaram; o metal das fivelas dos cintos usados para chicotear o camarada já está corroído; Vitorino não tem mais que percorrer canos subterrâneos. Todavia, toda esta miríade de atrocidades é a materialização de diretrizes políticas que despojaram a condição humana deste homem e que, por isso, ainda ressoam e segregam no seu imaginário e se refletem nos comportamentos presentes-ou não fossem as lágrimas, que apressadamente finge camuflar, expressão de uma sensibilidade que é inevitável e que, ao contrário do metal das fivelas do cinto, está longe de ficar corroída.

“Durante o vivenciar de acontecimentos trágicos enquanto situações que estão “além do limite das experiências com que a vida confronta qualquer cidadão comum, há uma situação de stress agudo com um impacto emocional forte que pode levar a uma fixação no acontecimento, cuja recordação constitui uma “tirania do passado”, pois o acontecimento já passou. mas a sua recordação não se esbate com o passar do tempo e perturba a vivência diária. Quando tal acontece, ocorre o trauma, designado internacionalmente como PTSD ou Post-traumatic Stress Disorder, e em português como distúrbio de stress pós-traumático” – esta é a explicação psicológica de Maria da Graça Alves, coordenadora da Unidade de Investigação em Saúde, Bem-Estar e Rendimento, do Centro de Investigação em Psicologia (CIPSI) da Universidade do Minho), e cuja investigação e trabalho se têm focado no impacto físico e psicológico do stress e trauma em pacientes. Como exemplo de sintomas, identifica “pensamentos intrusivos – reexperienciar do acontecimento de forma inesperada e involuntária, seja através de memórias frequentes, pesadelos ou flashbacks em que a pessoa pensa estar de novo no evento, podendo mesmo perder a noção da realidade como se estivesse a observar-se a ela própria). A mente está ocupada a processar constantemente o evento traumático e tem dificuldade em processar a informação do meio ambiente.”

Quando pergunto a Vitorino se nunca considerou a política de colonização e a necessidade da guerra como farsas criadas em prol dos interesses do Regime, responde-me que “aquilo só foi do pensamento de Salazar! Nunca foi nosso! A Guiné já estava habitada. Uns cruzados com portugueses, outros cruzados com americanos, aquilo era uma salada.” Como era “contra vontade e sem querer fazer mal nenhum” que Vitorino ali estava, por vezes até “dava um pedaço do pão de arroz aos gaiatos negros- que era tão ruim, que não conseguíamos comer”, chegando mesmo a criar “amizade com os africanos mais meigos e que viam que eu não era como os soldados atrozes”.

Manuel Correia | Angola | 1966

E a última coisa em que pensou antes de sair da Guiné e regressar definitivamente a Portugal? “Nunca olhar para trás até chegar ao avião. Só queria enfiar-me nele e voltar para junto dos pequenos” (aponta para os netos, que almoçam junto ao sofá onde decorre a entrevista). Apesar do anseio de vir, sentido desde o primeiro minuto em que pisou o chão da Guiné, regressar efetivamente-não ao país, mas à rotina normal e ao quotidiano, foi um processo quase tão árduo como partir: ” levantava-me da cama ainda a dormir, sobressaltado, como se estivesse a ouvir mandarem-me agarrar na arma e correr tenda fora”.

Continue-se por Aljezur, mas mude-se de casa. No Rogil, freguesia desse concelho, reside Manuel Vicente Correia, de 72 anos. Daí saiu rumo a Elvas e Estremoz para cumprir o serviço militar que o conduziu, aos 18 anos, para Angola. Aí, ficou “metido em arame farpado como se fôssemos vacas”. Da estante que existe na sala de estar, reluz um álbum de capa dura e fotografias que peço para rever comigo. Espreitemo-las.

Domina o álbum: sabe em que página está cada fotografia pela quantidade de vezes que o já percorreu. Os movimentos do bigode expressam o sentimento que cada uma produz: ora vai para cima, quando se alegra; ora cai, de melancolia.

Por falar em bigode…

Manuel conta que, todos os anos, há uma festa do Batalhão, realizada na altura do Natal e que visa o reencontro de ex-combatentes. Apesar de ser esse o objetivo, há muitos que a mutação dos anos tornou inidentificáveis: “mesmo os que eram mais chegados durante a guerra, hoje são irreconhecíveis. Uns têm o bigode mais comprido, outros já nem bigode têm.”

Manuel Correia.

À semelhança das reminiscências de Vitorino, a memória Incorrosível de Manuel impede a cama de voltar a assumir a função para a qual foi concebida: em vez de repouso, é o agravar dessas reminiscências, na forma de pesadelos, que essa cama estimula-“Ainda no outro dia acordei tão sobressaltado…parecia que estavam os tiros a passar por cima de mim, e eu impotente, sem conseguir evitá-los.”

Soma-se a alusão que faz dos campos algarvios aos angolanos, tão ilusoriamente real, que o leva a crer estar nos segundos: “Há uns dias, estava a ver uns terrenos com um amigo, e disse-lhe ‘Oh, Armando! É mais para cima; eu já aqui estive, pah!’ , mas, na verdade, nunca tinha presenciado o sítio onde estávamos. Só depois é que me deu o click”.

“Já recebeste a carta?”

Como situação em que a inevitabilidade de se resignar à distância foi mais difícil de engolir, Manuel recorda a pergunta acima, feita por um colega. “Lá recebi a dita cuja, a dizer que o meu pai tinha falecido. Ele cá…eu lá”.

Seguem-se epifanias de quem, apesar de sargento e trabalhar no “backstage” da guerra propriamente dita, não foi alheio ao que se passou na frente de combate.

Rui Silva da Cruz, de 69 anos e natural da Pampilhosa da Serra, esteve em Nampula (cidade do Norte moçambicano) entre 1972 e a Independência de Moçambique, em junho de 1975. Trabalhou no quartel de general, na secção de controlo de todo o material que havia na região militar de Moçambique, desde armas a carros.

A ação psicológica

A designada Ação Psicológica (ou “Psícola”, como coloquialmente foi chamada) consistia numa estratégia das forças portuguesas levada a cabo durante todo o período de guerra. Os objetivos passavam por obter o apoio da população local, desmoralizar o inimigo, de forma a que esse passasse mesmo a cooperar com o seu adversário, e manter consistente a retórica da necessidade da guerra, segundo a qual foram demovidas e ludibriadas as próprias tropas. “Os ‘psicólogos’ portugueses iam lá às palhotas e estavam dois ou três dias com as famílias”, como explica Rui. Tal era feito através de pseudo-palestras que visavam desculturá-los e arregimentá-los à cultura portuguesa.

Empregar a população autóctone era outro mecanismo para a demover a naturalizar a guerra como algo reciprocamente vantajoso-tanto para a “metrópole”, como para as suas “extensões”, no linguajar de Salazar. A vivência de Rui exemplifica: “comigo havia negros que trabalhavam como funcionários públicos. Para os manter do nosso lado, a gente dava-lhes emprego. Aproximá-los de nós, da nossa mentalidade, não tinha a finalidade de os proteger, mas sim de os manter mais dóceis; uma estratégia do próprio Regime português para que eles ficassem do lado do exército português e não da FRELIMO. Por isso é que lhes dávamos emprego, para que eles ganhassem dinheiro e pensassem ‘se tenho uma posição boa, sou funcionário público do governo português e, graças a isso, recebo dinheiro, não me interessa que isto acabe e fique independente; interessa-me é estar do lado do colonizador, daquilo que garante a minha subsistência’. Havia toda esta engrenagem.”

Enraizada na Grécia Antiga, a ideia de que a sina da mulher são as lides domésticas é intemporal nalguns pontos da Terra. Paradoxalmente, “um dos trabalhos atribuídos aos homens negros durante a Guerra Colonial era precisamente de mulher-a-dias em casa dos oficiais em Moçambique. Quem servia as casas dos brancos não eram as mulheres negras, mas os homens que, pagos pelo exército, faziam a comida e tratavam de tudo em casa”, revela Rui, para se referir aos “mainatos”: palavra que designa os homens responsáveis pelas lides de que fala Rui, a qual está já consagrada no dicionário da Língua Portuguesa.

A esse trabalho soma-se o de pedreiro. Apesar de haver legislação e pressão internacional com vista à proteção dos direitos dos trabalhadores, Rui esclarece que essa não ia além da teoria- “na prática, ninguém a fiscalizava”. Como exemplo, Rui conta que um amigo português tinha lá fundado uma empresa de construção civil cujos pedreiros eram homens negros. Certo dia, “como não gostou do trabalho que um dos pedreiros estava a fazer, empurrou-o do andaime, de uma altura que equivale a um quarto andar. A sorte dele foi cair em cima de uns pneus, caso contrário teria morrido. E ele teve algum problema de ter atirado o negro? Não! Nem sequer a fiscalidade fez nada! Respondi-lhe «Oh, homem, não devias ter feito uma coisa dessas…»”

O que também foi juridicamente silenciado, por ser inconstitucional, foi o aproveitamento da autoridade para alegar «limpezas» arbitrárias a aldeias, “arrasando tudo- crianças, inclusive, porque achavam que aí estavam escondidos militares da FRELIMO ou apoiantes ao partido”. «Limpezas» estas que eram contra a lei. Não faziam parte de nenhuma Ação Militar previamente definida. Por esta razão, “não chegou cá porque a Imprensa não transmitia-afinal, era ilegal e violava o preceito de tentar arregimentar a FRELIMO ao regime Português”. Os militares que avançavam com essas não-ações não eram punidos? Pergunto. “Na prática não foram punidos porque, afinal, tratavam-se de recursos humanos que eram precisos para assegurar a máquina humana de matar”, responde Rui.

Recorda-se da “salada” social, metáfora criada por Vitorino para se referir à miscigenação entre autóctones das colónias e colonizadores? É nesta linha que entra a citação acima, inventada por Rui. “A cidade era dos brancos; à volta, nos matos, viviam os negros, em palhotas/ cabanas redondas. Então, quando os militares se queriam abstrair e divertir, iam aos ‘bailaricos’ que havia nesses matos”, diversão essa que, por vezes, passava a ser sinónimo de violar as mulheres que aí habitavam. Rui recorda que “num sábado à noite, fui com um cunhado dar uma volta pelos matos e assistimos a isto: íamos a passar por uma palhota onde vivia uma família, com pais e filhos, e andavam por ali muitos militares; chegaram quatro tipos dos comandos, entraram dentro da palhota, obrigaram o pai, mãe e os irmãos a sair; ficou um à entrada para a vigiar, e os outros foram lá para dentro violar as filhas”. Foi devido a situações destas que, a entender de Rui, “houve também muito ódio entre brancos e negros”, ao contrário do objetivo de arregimentação e aproximação que visava a Ação Psicológica. “Daí que, quando se deu a independência, se ouvisse negros a prometer “estiveram aqui 500 anos a abusar das nossas mulheres e filhas. Quando for a independência, somos nós que nos vingamos pela mesma moeda”.

O consentimento da imoralidade como garante da moral do Estado

Ao contrário do que acontecia nos matos, onde a sede carnal era muitas vezes saciada sem pudor, nas cidades era negligentemente resolvida em bordéis. A razão da não contestação prendia-se com uma espécie de lei de mercado baseada na oferta e na procura, tal como conta Rui: “Em Nampula, havia várias casas de prostituição. Corria aquela ideia de ‘já que não sei se amanhã estou vivo, vou gozar agora um bocado’. Apesar de muitos contrariarem a prostituição em termos ideológicos, por violar a moral e os bons costumes, a verdade é que “a deixavam andar porque queriam defender a família que lá tinham. Julgavam que, se a prostituição acabasse, as mulheres e as filhas que lá estavam ficariam mais expostas aos militares e que se a oferta diminuísse, a probabilidade de as brancas virem a ser as usadas aumentava”.

A apologia à imoralidade, apesar de refutar a sua moral, era também expressa pela Igreja e pelas chefias militares. Afinal, ” interessava-lhes era que os militares se recompusessem mentalmente para que conseguissem continuar a combater. Não aprovavam, mas também não se opunham“, relata Rui.

Uma expressão herege de meta-religião

Deus, Pátria, Família”

Como ditava o primeiro mandamento da tríade salazarista, em função da qual a sociedade se devia orientar, a Igreja assumiu um papel crucial de motor do Estado tanto na ‘metrópole’, como colónias: eram os missionários que, em grosso modo, aplicavam a política de arregimentar os autóctones à moral portuguesa, através de ações e discursos retóricos de evangelização.

Apesar disso, Rui confessa que era assíduo à missa das 18h não para ser mais um “envangelizado”, mas pelo facto de o bispo ser antifascista, relativizar os preceitos do Regime e condenar o colonialismo: “este bispo era ‘fora da caixa’: conhecia todos os podres da guerra e denunciava-os nas homilias. O meu único interesse em ir à missa era pelo facto de o padre ser um paradoxo”, revela Rui. Como seria de prever, “a situação chegou aos ouvidos do governante, e a PIDE retirou o bispo de lá, alegando que era um conspirador ao regime”. Dos podres denunciados por este bispo , a prostituição era um deles. “Mas os generais faziam de conta que não ouviam- eles próprios a incentivavam”, comenta.

Mais ou menos também hereges eram os padres italianos de Nampula: “apesar de estarem do lado dos portugueses, por vezes também ajudavam os guerrilheiros da FRELIMO; ajudavam uns como outros, para conseguir viver em paz e não sofrer represálias. Uma vez, um padre meu amigo estava numa missão de fornecer mantimentos. Com ele, estavam guerrilheiros da FRELIMO; assim que chegou o nosso exército, o padre teve que esconder os tipos para não passar a imagem de estar a ajudar o oponente.”

Rui conta a história de um amigo de Coimbra que foi com o melhor amigo, madeirense, para a Guiné. “Normalmente os ataques são feitos de madrugada ou então ao anoitecer-alturas mais imprevisíveis, se bem que, em guerra…o que é isso? Como está escuro, a probabilidade de resistência diminui. Só que houve um dia em que, às 15h, hora em que os militares estavam a descansar, houve um ataque ao quartel. Cada um pegou na sua arma e correu para abrigos. O madeirense estava a tomar banho. Não teve tempo de sair. Uma bazuca caiu precisamente no chuveiro”. Hoje, quando Rui está com o amigo nalgum evento e este fica “com os copos, mais alegre, se a gente lhe falar disto, ele desata a chorar. Afinal, viu o amigo morto a metros de onde estava. De uma hora para a outra, ficou sem ele. Hora essa em que não era suposto acontecer um ataque. Quer dizer…numa guerra nunca se supõe nada. A qualquer minuto pode acontecer.

Que terminologia é essa d’ “Heróis do Ultramar”?

Afinal, o que é que foi “do Minho até Timor”?


Não foi um Império que se criou “do Minho até Timor”. Foram as lesões mentais, várias intemporais, que a feitura desse Império provocou. Esta reportagem visou cruzar as lesões tanto de quem combateu em nome de Portugal, como de quem foi sacrificado, no seu próprio país, para que a “empresa” colonial portuguesa tivesse êxito. Chamar “Heróis do Ultramar” aos ex-combatentes é redutor. Prefira-se considerá-los heróis por continuarem a lutar-contra a inércia da memória.

A confusão entre foguetes e tiros; a cama como alavanca ao pesadelo; a sensação de estar nos matos angolanos em vez de nos algarvios; o “quase sentir só de pensar” nas mordidelas de “formigas maiores do que abelhas”; ainda chorar quando vem à lembrança a visão do amigo morto; esta é uma amostra de quem ainda vive sob stress sentido após uma exposição, de vários anos, a um risco de morte ainda mais imprevisível e inexorável.

A essas lesões, juntam-se as lesões mentais dos filhos da miscigenação (ou da “salada”, como diz Vitorino, à sua própria maneira): os filhos dos ex-combatentes portugueses que ficaram órfãos de pai;

Acrescem as irregularidades constitucionais, motivadas pelo espírito da superioridade branca que alegava a submissão e a lesão do negro, expressa no “empurrar o negro do andaime porque, afinal, a fiscalidade não vai fiscalizar, e nem a Imprensa vai noticiar em Portugal, porque há um lápis azul”;

a reviravolta mental e o entorpecimento de valores morais que se esfumam, como indica a recorrência e a apologia à prostituição e à violação das mulheres negras.

Apesar de Portugal ver o seu desenvolvimento socioeconómico ganhar um novo fôlego com o retorno dos combatentes após o 25 de abril, esse cenário não anula o retrocesso que marcou os 13 anos antecedentes; a marcha em contramão na estrada do respeito pela dignidade humana e da justiça social; que é como quem diz: os 13 anos do genocídio lento que o Regime ditatorial português agilizou.

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Ana Rita Rodrigues

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