As voltas do medo e a educação do susto

 As voltas do medo e a educação do susto

Ioana Cristiana (Unsplash)

O susto é a primeira forma do medo. É não informado, reacção ao imprevisto pela desmesura, ao tamanho sonoro, físico, do que possa surgir sem pré-aviso. Essa primeira forma domina-a o jogo, o lúdico liberta, põe de patas para o ar o inexplicado, o solene, a pose hierárquica, o gesto definitivo. É a primeira brincadeira extraordinária, a do tapa e destapa-parece – nesse jogo só temos rosto, foi-se o corpo. Com o bebé tapas os olhos com as mãos esfumas-te, reapareces reabrindo os olhos mais que a medida, órbitas ilimitadas. Estás ali, é no olhar que começa uma identificação. A criança ri-se dessa forma de desapareceres, desse teatro, do seu ritmo – o gesto tem essas implicações e necessita de uma competência de execução, o teatro nasce aí, nessa conjugação de mãos, pano de boca, de olhos ali para lá das órbitas, no que está vivo no que ri e no modo de execução — dois olhos que surgem no ritmo de retirada das mãos. Aí educas o susto, domina-lo pelo jogo, o que ali surge do nada não é papão algum, é alguém que um dia será nomeado e se tem nome, chamando-se medo, em susto jogado pode ser domado. Mais tarde outras formas do medo surgem com um mais alargado campo de possibilidades da sensação, convertida em perceção. A camisa e as calças penduradas de um cabide no canto do quarto fazem gente, alguém no quarto, perto da cama, a imobilidade de ambos torna a cena insuportável e a sombra que na penumbra é gente morre de paralisia no tempo imenso, afinal rápido, com que geres e analisas a situação. Aí nasce a contracena, tu e o teu  fantasma — em vez do boneco de peluche rasca dos natais prendados —, tu e o teu fantasma, afinal existem, podem iniciar um longo diálogo. Amanhã volta.

Olesya Yemets (Unsplash)

Há uma idade para esses medos noturnos, está estudado. Verdade é que muitos são incapazes de dormir de luz apagada, vêem seres por todo o lado — mais vale o fantasma que confiscaste —, entes monstruosos habitando entre sono e sonhos quando a insónia cede e a vigília chega e o sono é leve, quando entre estar acordado e dormir não há fronteira. Esse tipo de medo domina-se pelo exercício da contracena e pela invenção de um monólogo íntimo em estrutura dialógica — monólogo exterior disse o mestre : o texto, um texto autodirigido ao outro que és tu  onde reside o teu fantasma, sacode a imobilidade que paralisa e de um salto — numa mola tu duelas — esse alguém ameaçador tem afinal a forma da calça e camisa do dia. Antes do duelo físico dizes: estás aí que eu topo-te, mas eu nem me mexo, sou pedra, à minha imobilidade corresponde a tua cautela, és ladrão, queres levar as coisas de valor, o fio de ouro, a jarra chinesa, o porta-moedas na mesa da cozinha, sei lá, aí eu respiro um pouco alto a dar nota que posso acordar e tu que estavas para te lançar na aventura larápia manténs-te imóvel, não vale a pena entrar em sarilhos num patamar de roubo doméstico — assaltar bancos é outra coisa.

Quando a coisa dura mais que a conta o medo começa a ser dissolvido pelo tempo de espera, o mesmo acontece às pastilhas efervescentes, e aí zás levantas-te de um pulo — já o fizeste, aliás, linhas acima —, és acrobata. E a criatura criada morre na sua condição inanimada. Esta fase é já a de um medo elaborado que resolves na contracena. Mais uma vez é o teatro que te salva, esse domínio que vai do monólogo íntimo exterior — o medo que tu subjectivas é idêntico ao medo dos da tua condição etária e aí tu és porta-voz de medos— à ação física.

Numa outra etapa tu vais às escolas do medo e entre elas o comboio fantasma — também a prancha dos dez metros, a escalada íngreme nas barreiras, muito antes dos desportos radicais, as deambulações em terra de cobras, a ciência de cruzar os pântanos com raquetas tipo esquimó, etc.

No comboio fantasma tu partes da experiência anterior e realizas um workshop com o teu fantasma privado que, entretanto, está mais velho, e mudou de cabide, anda de calças compridas.

Manyu Varma (Unsplash)

Entras na geringonça, uma carruagem minúscula sem teto e vais escuro dentro em curvas de carris inesperadas à espera do pior : um susto de morrer. E de repente sentes umas fitas a lamber-te a cara que logo se vão, nem apanhá-las, e logo uma curva em U, absolutamente inversão de marcha, coisa que contraria a lógica — como tudo o que é circular, aliás — e te faz pensar que o truque é ainda mais truque que seria se fosses tu a conceber a forma dos carris. E de repente o urso, um urso tropical que o comboio é africano, envolto nas lianas do Tarzan mas com a dentuça do King Kong e aí tu dizes: vai-te daí seu despaisado, aqui morres encalorado. Fizeste uma frase, autoria, rimante. O mais que te choca é esse desfasamento entre o bicho e sua sorte geográfica. Pior só pais natais nos quarenta e tais graus do pino do sol e renas invejosas de leopardos. Qual medo qual quê. Nessa fase o teatro atribuiu-te o protagonista e é montado nele que derrotas o desgraçado de pelo sintético e estrutura de arame que já nem rir sabe pois cada vez que abre a boca tem a dentada em riste. Iniciaste a tua entrada no outro mundo, a verdadeira selva, a das cidades desta globalidade.

Outra forma de medo, social, surge, portanto, mais tarde, pós comboio fantasma feiras e ramboias ao perto — a casa, longe, ali. É o medo do grande outro, da autoridade repressora, da tutela, da lógica convencionada e normalizada da instituição, escola, família, vida social, para não dizer prisão, clube, associações de sins-sins, mocidades portuguesas e outras coisas pioneiras, etc.

Nos tempos, nesse momento em que de repente o fora se te impunha como um medo absoluto que se pressente omnipresente, falavas baixo e falando baixo dizias o que não podias dizer alto, ias de cana, diziam e acontecia. E falavas entre gente de confiança, próximos, próximos de pontos de vista, de modo de ler, de pele, de margem. Descobrias a organização. Surge de princípios de cumplicidade estabelecidos na razão espontânea, tais as injustiças do real que te é dado para existires, coexistires.

Uma linha divisória estabelece-se, o teu tratado de Tordesilhas é imediato, se cresceste na razão do sentido daquilo que é próprio do humano, a desumanidade abre em ti a ferida que nunca mais sarará. Outro teatro surge aqui, o do disfarce, o dos subentendidos, o da astúcia, dizer uma coisa para dizer o seu contrário, fingir com competência. Poète, vos papiers podes dizer para ti, vendo um polícia em cada suspeito rosto, um informador em cada observador, por um momento receias que te leiam os pensamentos e enconde-los dentro de ti, no cofre forte do mais recôndito de ti. Muitos mudaram de identidade desenvolvendo personagens durante tempos longos de vida. O senhor Silva, normalmente vendedor ambulante, inspetor, delegado de propaganda médica, profissões de deambular, conheces isso bem, conheceste-os. O teatro, mais uma vez, te safa, o teatro exterior, de uma objetividade precisa, como é o do jogo da farsa, sem metafísicas, muito físico, gestual ao ponto de subalternizar a palavra, de a pôr em diálogo articulado com um gesto evidente, gramática elementar. Sim porque fingir ser o Silva, por muito parcimoniosa que fosse a representação, era mais que a farda de ser esse Silva que não era Silva nenhum, antes Miranda, Dinis, que aliás além de Silva foi Mendes e Araújo e Rodrigues, profissões de pequeno-burguês — não te podias disfarçar de proletário, como explicar depois a soltura e o estar fora de lugar? A deambulação? Pois é, adstrito à gleba, era assim.

Jasmin Sessler (Unsplash)

Este medo é o medo inculcado pelos regimes que assentam a sua autoridade no medo, em verdades oficiais, no culto de um mesmo visto e olhado que não permite ver nem olhar, que oprime em nome sempre de um palavrão tramado,  pátria, identidade da pátria, de uma característica única de pertença a uma história, a uma língua e a uma geografia, fazendo dessas qualidades o seu exato contrário ao fechá-las no padrão único – nada mais transparente para a definição de um campo cultural identificável que uma língua nas suas mais diversas transmutações em função das diversidades étnica dos seus percursos globais – não é só na expressão vocabular e na sintaxe que muda, é também num humor interno que muda de sinal e parte numa outra direção com consequências — uma língua é determinada por humores, modos comuns de reagir, culturais e modos de uso rituais, na repetição se cristalizam diversidades e poesias diferentes — mais claro que o português do Brasil não há.

Se dizemos maningue dizemo-lo de outra forma,  como um sabor que tem uma canela única, muita palavra passa para o lado do que levou a língua vinda do lado do que a sofreu e transformou – sufixos e prefixos, lhes em roda livre, “lhe disse mesmo lá e lhe levei mesmo mesmo lá mesmo, foi, foi nos tempos, senhora não tinha, nada mesmo, nem que tinha que comer, nem pão, milho, nada, ainda”, alterações de sentido, a língua amplifica-se, perde os contornos de uma qualquer identidade gramatical em que estivesse aprisionada. Não há polícia que a contenha, é uma salutar ameaça de caos em busca de outras formas, tudo depende da história concreta, das misturas concretas, das cumplicidades eleitas e acidentais, da história e desse artífice chamado tempo. Os do acordo no meio disto são nem peanuts são, grão de poeira varrida. Outro medo espreita hoje. Nem é o pandémico, esse que impôs uma ordem global, um teatro de restrições em que certos gestos são cumpridos por todos, pelos todos que possam – sem água nem sabão não se lavam mãos amiúde e a cada performance social. Há seca, mundos sem água, sem sabão, com lixo, há países que vivem de sobras, que habitam o lixo, próprio e de terceiros. Há países condenados a ser lixeira.

O medo actual é mais massivo, controlado do lado do poder do espectáculo. O espectáculo é o que nos entra em casa, suposto espaço próprio e reservado, sem nenhum tipo de controlo. Vem nas compras, vem pelos média que vomitam entre paredes o que nem sequer pensas ver mas vês, está em todas as formas publicitárias que te vendem um modelo de vida, um corpo a cumprir, um tempo stressante de não acção, uma impotência agitada. Todas as formas deste comércio de existir que age, melhor, é agido, entre a oferta – de tudo – e a procura – de tudo – imprimem nas relações sociais, reais e virtualizadas, a determinação de modos comportamentalmente definidos, tipados. Da formatação do gosto ao corpo modelo, à alimentação, à profissão a escolher, ao que se consome em nome do que seria ler, à panóplia definida de assuntos de conversa com referentes comuns em circuito controlado virtual, séries e outras narratividades seriadas, mesmo a conversão de factos em episódios controlados na sua expansão mediatizada, obviamente as roupas e as sapatilhas, sinais de pertença ao mesmo que mimeticamente se mesmetiza, finalmente ao exercício controlável das liberdades de crítica e contradição – o tal terrorismo ajudou a esta homogeneidade acéfala em contraponto – e ao policiamento digital absoluto, via TM, via cartão de crédito, via fidelizações várias, via todo o tipo de trelas electrónicas, via NIF, etc., via sistemas de policiamento internacionalizados digitalmente, via sermos localizáveis a qualquer altura por um drone estacionado nos antípodas, via câmaras de filmar em todos os recantos da vida,etc.

Estás preso numa sociedade tão hipercontrolada de consumo como um pássaro dentro da gaiola. Neste regime global, planetário, nessa gaiola total, o medo é o terror imposto de todo o tipo de normas que supostamente te indentificam como um dos nossos contra os eles, infiéis como outrora, num contraponto tão primário que exclui da possibilidade as formas sociais de organização social que sejam verdadeiramente democráticas, pois o que antagoniza gruda o mesmo em hogeneidades rituais.

Neste totalitarismo global o medo é gerido pelas circunstâncias diárias, pela agenda dos média e está por todo o lado, desde a ameaça diária meteorológica, aviso amarelo ou laranja, notícias do trânsito, mortes por anorexia ou pelos excessos que a visão saudável desaconselha, etc., por todos os modos da circulação funcional do sentido do que sistemitiza. Este medo é amplamente disseminado e gera os seus antídotos assistémicos, como temos vindo a observar com a desregulação cada vez maior do que seriam as organizações da sociedade civil, cada vez mais fora de esquema e cada vez mais corporativamente extremadas e extremistas, unilaterais e antissociais.

Tom Roberts (Unsplash)

O medo hoje é o regime do medo que impera e a que a pandemia trouxe um mais que já lá estava antes e em potência de ir mais longe, pior, sempre pior. Neste regime a lei é suspensa e o estado de emergência vem para ficar, mesmo que intermitentemente. Em nome da nossa saúde, que obviamente é deles, mesmo que não a consigam defender consequentemente. As contradições são múltiplas e difíceis de discernir e entre os que querem mais armas e autoridade, infiltrando polícias e os que acham que isso até seria necessário, estará o cadáver da democracia como aquilo que profundamente é, um sistema de liberdades e igualdades laico e emancipador para o conjunto da população num processo permanente de aprofundamento tanto das condições de exercício dessas igualdades quanto das condições reais da prática das liberdades.

O medo que agora é regime de medos e vem de cima instituído, só se pode combater de modo organizado e pressupõe a criação de focos de resistência esclarecida, laicos, republicanos e emancipados de todo o tipo de tutelas e credos, que sejam focos de literacia global e portanto centros de disseminação de formas estéticas do exercício das possibilidades da própria potencialidade sensível de cada cidadão como ser de linguagem e de linguagens. Aí o PT, Partido do Teatro, tem muito que fazer. Mais uma vez o teatro está em tudo e em todo o lado, é o verdadeiro vírus crítico e emancipador, nenhuma outra escola o é como o teatro, esse que vem da tradição e que a continua opondo-se-lhe sucessivamente mas regressando sempre à matriz grega, língua mãe. 

Siga-nos:
fb-share-icon

Fernando Mora Ramos

Outros artigos

Share
Instagram