“Cabras sapadoras” trabalham para prevenir incêndios na Serra do Açor

 “Cabras sapadoras” trabalham para prevenir incêndios na Serra do Açor

São a maior corporação do país: 15 mil “cabras sapadoras” ajudam na prevenção aos incêndios das desordenadas florestas nacionais. Monte acima, encosta abaixo, elas lá vão dando conta do mato, procurando mitigar os efeitos do abandono agrícola e florestal das últimas décadas. A serra do Açor, no Pinhal Interior, é cenário e pasto de um desses grupos de cabras incansáveis, que de forma meticulosa e quotidiana se afadiga na tarefa de debastar os montes e assim dificultar a vida aos potenciais fogos de verão. O sinalAberto andou por lá a ver o trabalho das “cabras sapadoras” e reparou que, como na Nau Catrineta, também aqui há muito mais para contar e nos espantar.

A “Mascote” recebe-nos à entrada do estábulo. Uma verdadeira anfitriã! Sob o olhar atento dos mais de 180 animais, entre cabras, bodes e cabritos que, por instantes, pararam todos os movimentos concentrando-se apenas na sua líder, uma cabra de porte médio, mas de postura altiva. Deixou que nos aproximássemos, lhe fizéssemos festas no dorso e logo depois de um olhar que não pareceu deixar qualquer dúvida, a azáfama voltou à corte.

O Rebanho Comunitário dos Baldios de Cepos e Casal Novo, no concelho de Arganil, chegou às encostas da Serra do Açor em dezembro de 2019. E, ao mesmo tempo que o mundo se adaptava a uma nova realidade, a população da região aceitou o desafio de receber os cerca de 120 caprinos da raça Serrana Ecótipo Transmontano vindos de Trás-os-Montes. Ano e meio para colocar o gado a percorrer os trilhos traçados pelo Conselho Diretivo dos Baldios de Cepos e Casal Novo, entidade responsável pela gestão do projeto.

O dia começa cedo no curral. Domitila Delgado e Afonso Carreira, ainda o sol não tivera tempo para irromper pelas nuvens que cobrem parte dos vales fundeiros às encostas da Serra, começam a preparar as fêmeas para a ordenha manual. A época é propícia. São cerca de 40 os cabritos que nasceram nas últimas semanas e por dia são recolhidos entre 20 a 25 litros de leite. A partir dele são produzidos queijos, uma das fontes de rendimento da associação de compartes.  

Enquanto os cabritos procuram o aconchego das progenitoras e estas se vão alimentando de feno, sais e vitaminas essenciais para garantir o seu bem-estar, os bodes são mantidos afastados para evitar a procriação não desejada nesta época. As cabras são, posteriormente, encaminhadas para fora do estábulo, ao passo que os bodes e os cabritos permanecem no interior. Domitila e Afonso verificam se ficam bem acomodados. Colocam ramos de arbustos junto dos bodes para que tenham uma alimentação o mais próxima possível do que encontrariam pelas encostas da Serra, às quais só voltarão dentro de alguns dias, dão mimos aos mais novos e, depois de verificarem que ficam todos bem, juntam-se a Mário Dias, o pastor que entretanto tinha chegado a tempo de ajudar a ordenhar as últimas cabras e conduzir o rebanho pelas encostas e vales da Serra do Açor. Uma área de cerca de 480 hectares, sendo que 120 são de pastoreio, entre eles 10 hectares de pasto artificial, coberta pelo propósito destas “cabras sapadoras” que têm o objetivo primeiro de manterem limpos os terrenos, ajudando desta forma na prevenção dos incêndios.  

Voluntários garantem viabilidade do projeto

Mário Dias e Domitila Delgado são os únicos funcionários pertencentes à entidade responsável pela gestão do rebanho. Contudo, a trabalhar em prol deste “desígnio maior” – assim considerara ser esse o propósito de tudo o que envolve e representa o projeto das “cabras sapadoras” para a região, a maioria da população – estão em regime de voluntariado muitos dos habitantes das aldeias abrangidas por esta iniciativa. Mário Dias esteve desde sempre ligado à pastorícia. “A minha família sempre teve rebanhos de cabras e eu também ainda tenho muitas”, refere. Calcorreia desde criança os montes envolventes que diz conhecer como ninguém. É, por isso, o principal pastor de serviço. Nos dias de folga e nas férias é Domitila quem assume as funções. A também sapadora florestal não se faz rogada a nenhum tipo de trabalho rural e “como não tenho espírito para ficar em casa porque não nasci para fada do lar” – diz entre sorrisos – nunca se percebe muito bem se está a cumprir o horário normal de trabalho ou a laborar como voluntária.

Domitila viveu grande parte da vida em Lisboa, mas há alguns anos veio residir para Água d’Alte, aldeia abrangida pela União das Freguesias de Cepos e Teixeira onde habitam 19 pessoas. Vir morar para aquela localidade diz ter sido a melhor opção que fez na vida. “Então agora que a minha mãe faleceu, já não tenho nada que me ligue à capital, ela era o último laço que tinha com Lisboa”. Domitila refere que se (re)encontrou neste lugar onde se sente cada vez mais realizada profissional e pessoalmente. A oportunidade de trabalhar neste projeto “mudou-me definitivamente a vida. A gratificação encontro-a todos os dias no que faço, por estes caminhos e nos contactos que estabeleço diariamente com as pessoas com quem trabalho, com que me vou cruzando e, sobretudo, com estes animais”. Reforça, ainda, que o tempo neste lugar é vivido a outro ritmo, “ao ritmo do que a natureza nos dá e da riqueza acrescida que este rebanho nos oferece a cada dia que passa”. 

Após os preparativos no curral, o rebanho está pronto para enfrentar o dia. Pelas 9h00 da manhã as dezenas de “cabras sapadoras” perfilam-se para percorrer os trilhos previamente definidos que deverão ser limpos nos próximos dias. Depois dos três incêndios devastadores para a região, nomeadamente o do verão de 2017, que dizimaram grande parte do património natural, paisagístico e uma das maiores potenciais fontes de receita das gentes daquela região, uma área de cerca de 700 hectares de pinhal quase em condições de dar origem à exploração de resina, a população teve de encontrar novas formas e fórmulas para recomeçar. Limpar terrenos e mundificar as áreas florestais que sobreviveram era uma das grandes prioridades para preparar a reflorestação. As “cabras sapadoras” são agora as grandes aliadas nestas tarefas, uma vez que estes rebanhos são utilizados no pastoreio, limpando os terrenos, ajudando assim a consumir a vegetação que se tornaria em potencial combustível num incêndio.

Objetivo: chegar às 500 cabeças de gado

José Costa, presidente da União das Freguesias de Cepos e Teixeira, e, por inerência, também o presidente do Conselho Diretivo dos Baldios de Cepos e Casal Novo, dado que é atualmente aquele órgão executivo o responsável por esta associação de compartes, referiu ao Sinal Aberto que “depois de um período de adaptação, estamos agora com os objetivos definidos quanto ao futuro”. No que respeita ao Rebanho Comunitário, “pretendemos aumentar o número de caprinos até chegar às 500 cabeças, tanto em animais da raça Ecótipo Transmontano, como de Cabras Alpinas, uma vez que, além de autóctones e também boas ‘sapadoras’, produzem mais leite, logo dão mais rendimento”. As receitas são uma parte importante a ter em conta, dado que, pese o rebanho ter chegado aquelas paragens através do Fundo Recomeçar, um projeto comparticipado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em parceria com a União das Freguesias de Cepos e Teixeira, Câmara Municipal de Arganil, Escola Superior Agrária de Coimbra e Associação de Produtores Florestais do Concelho de Arganil, têm agora de se auto sustentar. “Os apoios do Estado são irrisórios. Recebemos um subsídio, via IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas -, de 20 euros por ano, por caprino, mais um por área de pastoreio”. Uma ajuda que José Costa garante não ser suficiente para manter toda a logística, instalações e preservar os dois postos de trabalho. Daí que, o leite para a produção de queijo cuja venda, à semelhança da venda dos cabritos, bem como ainda de alguma madeira que resulta de cortes que vão efetuando nas árvores que ainda ocupam os baldios, são os únicos rendimentos da associação de compadres.

Em terras cada vez mais despovoadas, é a união entre os que vão persistindo em ficar que vai fazendo a diferença. Assim, as diversas associações de compartes e baldios da região uniram-se e formaram a associação Florestal da Serra do Açor – FSA – que cobre uma área de cerca de 2500 hectares de terrenos. Com o apoio do grupo Jerónimo Martins que tem previsto investir na região cinco milhões de euros, a FSA tem vindo a desenvolver um Plano de Gestão Florestal que já conta com a limpeza de 400 hectares de medronheiros, garantindo desta forma a continuidade de uma outra importante e destacada produção da região, a aguardente de medronho. Também já foram arborizados dezenas de hectares de floresta, nomeadamente com o recurso à plantação de espécies autóctones, entre sobreiros, pinheiro bravo, carvalho português e medronheiro, este último plantado de forma compacta. O objetivo nesta área da florestação das áreas ardidas, segundo José Costa, “é o de continuar com as limpezas e plantações, nesta primeira fase, pelo menos até ao final do ano”. Com esta intervenção humana não é só a natureza e todo o habitat da Serra do Açor que está a tirar partido, também, por exemplo, os apicultores da zona, muito afetados pelos incêndios, começam a ver o negócio a reflorescer.

O dia-a-dia do Rebanho Comunitário dos Baldios de Cepos e Casal Novo é seguido de perto desde o início por Afonso Carreira, um dos cerca de 100 habitantes da aldeia de Cepos. Reformado da profissão de motorista de pesados, tendo vivido grande parte da vida em Lisboa, diz que há muito não trabalhava tanto como agora. Não que isso lhe tire o sono ou o sorriso da cara. Abraçou este projeto como uma extensão de um ideal que, espera, possa ajudar a desenvolver uma fórmula que venha a consolidar um caminho de permanente progresso para a região que o viu nascer e a onde os dois filhos e os três netos gostam de voltar e permanecer, sobretudo no verão. Este e todos os outros que lhe pareçam ser de interesse e que possam contribuir para o bem-estar da população da sua terra. É, por isso, o voluntário, por excelência, que está sempre de serviço. Se necessário, logo pela manhã, bem cedo, está no estábulo para ajudar na ordenha e a orientar o rebanho. Acompanha as cabras pela Serra. Avalia os pastos, os locais onde poderá ser colhido o feno que os animais consomem no curral, sobretudo nos dias mais agrestes e invernosos em que não é possível levar os caprinos para a rua. Orienta o pastor, a sapadora florestal, dá apoio às queijeiras Maria Alice e Deolinda Martins, também elas voluntárias. Atende compradores de queijos e de cabritos. Recebe os veterinários e outros técnicos que acompanham o rebanho, visitantes e todos quantos chegam por bem para visitar e/ou conhecer os caprinos, a aldeia ou a região. Às quartas-feiras, Afonso Carreira, de 71 anos, também faz almoço para o padeiro, a que se junta sempre mais um e outro amigo. Dele podemos ainda ouvir histórias da terra e da região enquanto, por exemplo, partilhamos um jogo de cartas ao final da tarde ou um Favaios como aperitivo para o almoço na esplanada do café da aldeia. Histórias com memórias dos tempos em que o tempo não era o de agora. Em que as pessoas conviviam, partilhavam momentos. Histórias que deseja poder em breve continuar a contar aos netos, nomeadamente os dois filhos do filho que tanto amam a aldeia por onde gostam de andar de “tuc-tuc”, como carinhosamente chamam ao triciclo com que o avô passeia com eles pela povoação. Afonso não desiste. Acredita. E não é só a população que lhe agradece. Também a “Massagista” não se faz rogada. A simpática cabrita sempre que Afonso chega aproxima-se e massaja-lhe as pernas. “Como não ganhar afeição a estes animais?”. Observa, ao mesmo tempo que questiona. Uma pergunta a que talvez só a própria “Massagista”, a “Alma”, a “Alice”, a “Juliana” ou o “Jeremias” lhes possam ajudar a dar uma resposta. São alguns dos caprinos a que Alfredo e Domitila deram carinhosamente nomes por terem traços que os distinguem.

São os técnicos da Associação Nacional de Caprinicultores da Raça Serrana – ANCRAS -, com sede em Mirandela, que acompanham o Rebanho Comunitário desde o dia em que o colocaram nos Cepos. Inicialmente foram sendo transmitidas informações que permitiram às pessoas que lidam diariamente com estes animais ir adequando as ações e comportamentos para que os animais tivessem uma adaptação o mais serena possível. As pastagens e vegetação desta região são diferentes das de Trás-os-Montes, o clima também, “pelo que era importante fazer a transição com tranquilidade”, como salientou Afonso Carreira. Atualmente deslocam-se, em média, uma vez por mês, nomeadamente veterinários que vêm atestar da saúde deste rebanho onde até uma cabra cega e uma manca acompanham altivamente todo o grupo pelas encostas e vales da Serra do Açor, uma das serras pertencentes à Cordilheira Central, da qual também fazem parte a Serra da Lousã e a Serra da Estrela. 

Para crescer este Rebanho Comunitário, um entre os 188 distribuídos pelo país, nomeadamente a norte do Tejo, que contam com o apoio, melhoramento genético e conservação da raça Serrana por parte da ANCRAS, necessita que o Conselho Diretivo dos Baldios de Cepos e Casal Novo tenha possibilidades de fazer novos investimentos. Desde logo, conseguir eletrificar o curral para que possam adquirir uma ordenha elétrica e, ainda, construir uma novo pavilhão, levantar novas cercas e vedações em áreas de pastoreio controlado.

Estas “cabras sapadoras” têm-se revelado de grande apoio às populações e eficazes na limpeza de terrenos, contribuindo desta forma para a prevenção de incêndios. Segundo Rui Cunha, engenheiro zootécnico e um dos técnicos da ANCRAS que acompanha estes caprinos, dada “a dificuldade na gestão dos terrenos florestais, principalmente quando o país tem observado um forte êxodo rural, o que coloca ao abandono várias parcelas de floresta onde os matos crescem imenso, tornando-as propícias ao aparecimento de incêndios florestais”, a aposta neste projeto veio permitir “patentear a importância dos animais no controlo da vegetação e, por sua vez, a redução do aparecimento de combustível para o alastramento de incêndios”. Para chegar as estas conclusões os técnicos da ANCRAS desenvolveram um conjunto de procedimentos e experiências que lhe têm permitido atuar junto de organismos como o Conselho Diretivo dos Baldios de Cepos e Casal Novo. Um dos passos dados passou pelo estabelecimento de várias parcerias com diversas entidades localizadas em diferentes freguesias da região transmontana, onde foram criadas parcelas que “são divididas em duas partes iguais, para que se possa analisar a disparidade entre a que levou carga animal e a intocável”, exemplificou Rui Cunha. O técnico salientou ainda que “o balanço deste projeto é positivo”, uma vez que, “a parte das parcelas pastoreadas já não contém praticamente matos, enquanto as intocáveis estão com um crescimento desmesurado”.

Os rebanhos de “cabras sapadoras” que se encontram pelo país e que totalizam cerca de 15 mil animais entre os quatro ecótipos da raça Serrana – Serra, Transmontana, Ribatejana e Jarmelista – têm-se adaptado às características das diferentes regiões do país porque, como diz Rui Cunha, acima de tudo “a cabra Serrana é a raça autóctone portuguesa com o maior efetivo a nível nacional e que se encontra distribuída por quase todo o território continental”. Além de que, “ constata-se que esta, além da sua rusticidade e adaptação ao meio físico (clima, solo e vegetação) que a rodeia, encontra-se dividida em ecótipos, que foram sofrendo alterações naturais e progressivas de adaptação às regiões delimitadas ao longo dos anos, o que confere a esta cabra características diferenciadoras das demais raças de caprinos”. Depois, temos ainda o facto de “as regiões que acolhem esta raça se caracterizarem, geralmente, por explorações agrícolas de pequenas dimensões, com grande dificuldade de mecanização, solos fracos, e ainda pelo recurso a terrenos baldios com alguma pastagem e mato para a melhoria das condições de alimentação dos animais”. Tudo condições que, ao que tudo indica, se têm revelado ideias para que estes rebanhos sejam realmente bons aliados e parceiros das populações, sobretudo das que vivem em zonas mais despovoadas e com determinadas características ao nível dos ecossistemas.  

Como entidade gestora do Livro Genealógico da Raça Caprina Serrana, a ANCRAS, além de ter o objetivo de promover e dinamizar a criação de gado caprino Serrano, de divulgar o trabalho realizado, fundamentalmente em feiras e certames e junto da comunidade rural que “poderá vir a desenvolver a atividade pecuária, mas, também, para a comunidade em geral de forma a difundir a importância da manutenção das raças autóctones em Portugal, como forma de manter e preservar os saberes das regiões rurais”, intervém junto dos associados, “essencialmente, nas questões que se relacionem com a manutenção da raça em linhagem pura (inscrições dos animais no livro genealógico, controlo de nascimentos, contrastes performance, contrastes leiteiros e melhoramento genético)”, refere Rui Cunha.

As mais ousadas e aventureiras tomam a dianteira, as outras senguem-lhes os passos. As encostas e vales da Serra do Açor ficam serpenteadas pelos caprinos que compõem o Rebanho Comunitário dos Baldios de Cepos e Casal Novo, cuja beleza das cores por vezes até se confunde com as pigmentações da própria paisagem. Um conjunto de cabras Alpinas, naturalmente mais familiarizadas com as paisagens da região, por vezes procuram percorrer outros trilhos em busca de um pasto mais sedutor. Nada que incomode Mário, Domitila, Afonso ou José. É a natureza a funcionar na sua plenitude, mesmo quando a mão do homem dá uma ajuda.

20/05/2021

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Licínia Girão

Licínia Girão é jornalista e, também, uma jurista preocupada com as questões da liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, assente num compromisso com a verdade e com a observância do Estatuto do Jornalista e do Código Deontológico. Desassossegada na defesa de um Jornalismo isento, rigoroso e credível, praticado por jornalistas independentes, tem vindo a dedicar-se a estudos e a exercer formação nestas áreas. Atualmente, preside à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

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