Carlos Nolasco: “Sem um Governo preocupado com os direitos sociais, ficaremos mais vulneráveis”

 Carlos Nolasco: “Sem um Governo preocupado com os direitos sociais, ficaremos mais vulneráveis”

Carlos Nolasco.

O Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra é a entidade que produz relatórios, a nível nacional, para a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), a exemplo do que está a ser feito noutros países. O sociólogo Carlos Nolasco, enquanto investigador do CES, onde integra o Núcleo de Estudos sobre Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz, tem participado em diversos projectos de pesquisa e é co-responsável pela elaboração de um conjunto de relatórios sobre os impactos das medidas de contenção da pandemia do novo coronavírus nos direitos humanos dos portugueses. Combinada a entrevista para a manhã de 24 de Julho, Carlos Nolasco já me aguardava no antigo Colégio da Graça (na Rua da Sofia), nas renovadas instalações do CES, contíguas ao Núcleo da Liga dos Combatentes, em plena artéria aorta da cidade universitária.

Abrangendo o período de 1 de Fevereiro até 20 de Março, o primeiro relatório produzido por esta equipa de investigação resultou da preocupação de, numa fase inicial, perceber o porquê das medidas legais que foram tomadas e como essas decisões impactaram em determinadas áreas, nomeadamente a nível da repercussão nos movimentos dos cidadãos, nos domínios da Educação e da Justiça, bem como no mundo do trabalho. Nos três relatórios seguintes, incidindo num período de acção até 30 de Junho, os mesmos âmbitos temáticos específicos foram transversais a todos os documentos. Além dos quatro relatórios, observando ainda a progressão da epidemia da covid-19, a FRA solicitou um outro relatório, mas exclusivamente dedicado às comunidades ciganas em Portugal.

Previamente, Carlos Nolasco considerou tratar-se de um trabalho exaustivo, não dispensando um olhar mais atento às realidades dos idosos, dos sem-abrigo, dos reclusos e, em especial, dos ciganos. Refira-se que todos os relatórios são descritivos, resultam da recolha de informação, sobretudo, nos “sites” oficiais das entidades com competências nestes domínios, a par do acompanhamento dos “media”. De facto, este trabalho escora-se numa investigação de gabinete, porque estamos a falar de uma época de confinamento. Assim, foi realizado predominantemente a partir de casa. Neste contexto, o investigador do CES adverte: “As análises que se possam fazer são meras interpretações pessoais e não comprometem o levantamento efectuado.”

O sociólogo Carlos Nolasco reconhece que os “media” assumiram deliberadamente, durante o período da covid-19, uma tomada consciente de posição relativamente às notícias, no sentido de veicular a mensagem de “fique em casa”. É tudo uma questão de princípio. Na sua opinião, é também necessário que a comunicação social saia da “espuma dos dias” e que tente “olhar um pouco mais para o que se passa noutras partes” do Mundo. 

sinalAberto – A Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) contrata, com o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, um estudo para um relatório comparativo considerando a progressão da epidemia do novo coronavírus (covid-19) em Portugal e as implicações nos direitos fundamentais das pessoas. Que impressão retém das primeiras medidas tomadas pelo Governo e pelas autoridades públicas?

Carlos Nolasco (CN) – As impressões são as de que era necessário fazer alguma coisa. Não era possível ficar parado. Aquilo que me parece é que em Portugal, tal como em qualquer outro país europeu, as medidas foram sempre tomadas muito com carácter de urgência, de emergência, num ambiente de algum pânico ou medo social, com muito desconhecimento. Essencialmente, não nos podemos esquecer que as nossas sociedades europeias há quase cem anos que não se confrontavam com um problema destes, desde a gripe espanhola, no início do século XX. Essas coisas não são novas. Só o são para as actuais gerações…

Há, aqui, uma outra questão que não podemos esquecer e que não se aplica exclusivamente a Portugal, mas que é comum a outros países. Há experiências de epidemias preocupantes, embora não de pandemias com esta dimensão. Há países com experiências muito preocupantes e mais violentas do que a covid-19. Estou a lembrar-me dos países africanos que se confrontam com o vírus Ébola e espécies do género violentíssimas e assustadoras, em termos proporcionais.

“Há países com experiências muito preocupantes e mais violentas do que a covid-19. Estou a lembrar-me dos países africanos que se confrontam com o vírus Ébola e espécies do género”

sA – Embora mais circunscritas, são mais mortíferas…

CN – São mais mortíferas… A constatação que podemos reter é a de que nós – enquanto sociedades caracterizadas por fazerem uma planificação a longo prazo, que prevêem, de certa forma, o futuro e que tentam controlar o risco – não estávamos aparentemente preparados para uma situação destas. Apesar de tudo, essa situação não ocorreu assim há tanto tempo. Há cem anos, tivemos uma calamidade. Assim, a impressão que mantenho é a de que tinham de ser tomadas medidas. Em Portugal, apesar das críticas que possam surgir (porque nem tudo é perfeito), julgo que essas medidas foram tomadas no momento certo, oportuno… e de forma adequada.

sA – Verifica-se, numa primeira fase, a proibição de viagens, por exemplo, para determinadas regiões italianas e, posteriormente, esse impedimento acabaria por ser estendido a toda a Itália. Podemos, já nessa altura, falar em perda de direitos humanos?

CN – Se dizemos que foram tomadas medidas que implicaram perda de direitos humanos, também temos situações de medidas que procuraram salvaguardar os direitos humanos. E temos de perceber aqui a colocação de uma equação entre aquilo que são os direitos humanos e a suspensão de direitos humanos individuais e colectivos. Curiosamente, é uma equação que vem sendo utilizada com alguma recorrência, nos últimos anos, pelas sociedades ocidentais. Por exemplo, quando olhamos para o cenário das acções terroristas na Europa, por parte da Al Qaeda ou do autodenominado Estado Islâmico (Daesh), aquilo que verificámos foi que algumas sociedades que tiveram problemas abdicaram de alguns direitos, nomeadamente o do anonimato, devido à videovigilância… E as populações, apesar de tudo, preferiram uma maior segurança, uma maior tranquilidade e não manifestaram grande contestação.

Nesta situação da covid-19, parece-me que não podemos falar de uma perda de direitos, em primeira instância. Mas, sim, de uma suspensão de direitos, nos vários tempos de estados de emergência e de calamidade que foram sucedendo.

sA – No período de 13 de Março até à declaração do estado de emergência, a 18 de Março, foi estabelecida uma situação de alerta em Portugal. O país, de repente, testemunha a eliminação da vida social, com fortes repercussões no tecido comercial e empresarial. Quais as medidas excepcionais e temporais que mais incomodaram ou indignaram os portugueses?

CN – Eu acho que não houve, propriamente, uma indignação relativamente às medidas. As pessoas também estavam assustadas. Recordo-me que, na semana que antecedeu a interrupção definitiva… ou a suspensão das aulas presenciais, os pais e as escolas apelavam desesperadamente para o encerramento das mesmas. E não houve um incómodo com a suspensão de alguns direitos. Verificou-se, nessa semana que antecedeu o tal processo de confinamento e da declaração do estado de emergência, que as pessoas baixaram drasticamente as idas ao trabalho. Houve uma quebra de movimentos e de circulação. Há, por exemplo, uma empresa – referimos isso nos nossos relatórios – que fazia a monitorização das saídas dos portugueses e, então, já detectava uma quebra nas deslocações. Espontaneamente, as pessoas foram aderindo, sem grande incómodo. Julgo que, apesar de tudo, houve incómodos com algumas medidas. Nem todas elas tiveram a mesma aceitação. Porém, com o tempo, começou-se a perceber a pertinência delas.

O que se passou também com os reclusos – ainda estamos a fazer esse trabalho nos estabelecimentos prisionais –, depois de um primeiro impacto, quando perceberam que não teriam visitas, porque isso significava um risco para a sua integridade, aceitaram com relativa facilidade a suspensão das visitas. E é uma suspensão de um direito que lhes assiste!

“Há muitos estratos da população, sectores populacionais de baixas classes sociais que não têm condições para permanecerem tanto tempo confinados”

sA – O mesmo não terá sucedido com os velhos, nos lares e nas estruturas residenciais para alojamento colectivo? Muitos deles sentiram-se abandonados pelos próprios familiares…

CN – No caso dos idosos, passa-se, mais ou menos, a mesma coisa. Ou seja, os familiares perceberam a pertinência, mas eles não. Isto também tem a ver com as diferentes visões do mundo e expectativas de vida que as pessoas têm. Provavelmente, nesta situação pandémica, os idosos foram dos grupos populacionais que mais sofreram.

Penso que as medidas entretanto aplicadas lhes causaram incómodos fortes. Quando nos pedem para ficarmos confinados em casa, se tivermos condições, o confinamento processa-se de uma determinada forma… Todavia, há muitos estratos da população, sectores populacionais de baixas classes sociais que não têm condições para permanecerem tanto tempo confinados. Tal como há grupos e pessoas que não têm condições financeiras, porque trabalham por conta própria e, de repente, viram as suas fontes de sustento suprimidas. O maior incómodo poderá ter passado por aqui. Já a eventual indignação tem mais a ver com o prolongar de algumas medidas…

sA – O teletrabalho é tido como um dos recursos no mundo laboral. Na pesquisa entretanto desenvolvida, consegue verificar-se se o teletrabalho constitui uma forma de libertação dos trabalhadores ou, pelo contrário, uma ingerência no seu espaço familiar e da vida privada?

CN – De repente, o teletrabalho parecia ser a panaceia para todas as soluções do mundo. Não é, nem pouco mais ou menos… Ainda mais numa sociedade como a portuguesa, que está ainda na situação de se encaminhar neste trilho tecnológico. Achou-se que, pura e simplesmente, por exemplo, na conversão de aulas de uma vertente presencial para uma vertente à distância, era só colocar uma câmara em frente do professor. E não é, porque implica outro tipo de práticas pedagógicas, um outro acompanhamento e um outro tipo de discurso. Isto também passa por num dia ser assim e no seguinte outra coisa! Mas, achou-se, de repente, que o teletrabalho poderia ser a solução de múltiplas coisas. E não é!

“A própria Comissão Nacional de Protecção de Dados foi chamada a pronunciar-se, em diversas circunstâncias, sobre a questão do teletrabalho ou da telescola, considerando o carácter intrusivo que as tecnologias têm no quotidiano das pessoas”

sA — Porque não?

Desde logo, porque há trabalhos que não podem ser feitos em casa e nem sequer em teletrabalho. E nós vimos isso em praticamente todos os sectores da actividade. Quem é que alimenta as pessoas que estão em teletrabalho? Um padeiro não consegue trabalhar em teletrabalho, um médico e um enfermeiro não conseguem exercer em teletrabalho. A telemedicina funciona para determinadas circunstâncias e é preciso que esteja um médico no outro lado. A telemedicina, aí, vem facilitar a comunicação. Neste caso, não era isso o que se estava a passar. Contudo, o teletrabalho foi entendido como uma enorme panaceia.

Relativamente a esta questão, se o teletrabalho invadiu a privacidade… Obviamente, invadiu a privacidade. E há vários relatos em que isto aconteceu. A própria Comissão Nacional de Protecção de Dados [CNPD] foi chamada a pronunciar-se em diversas circunstâncias sobre a questão do teletrabalho ou da “telescola”, considerando o carácter intrusivo que as tecnologias têm no quotidiano das pessoas.

Todas estas possibilidades e valências tecnológicas já existiam, mas agora popularizaram-se em teleconferências e em reuniões do género. Aquilo que sucede no sector laboral, se houver entidades patronais com algo maquiavélico, é claro que podem utilizar essas tecnologias para fazerem um controlo mais incisivo sobre a vida dos seus funcionários, controlá-los mais e até terem um tratamento abusivo com eles, no sentido de – de manhã à noite – obrigá-los a estarem disponíveis para trabalhar. Deixa, assim, de haver um horário convencional, subsídios de refeição e de deslocação… Se considerarmos que grande parte dos trabalhadores olha para esses subsídios como um complemento salarial, aquilo que deixar de existir é um rombo ou perda rendimentos.

Houve um caso que não teve a ver com o teletrabalho mas com a representação simbólica da covid-19 na vida de um trabalhador e na vida de uma empresa. O trabalhador era um quadro superior – técnico de design, salvo erro – e uma das primeiras pessoas a ter covid-19 em Portugal. Porque muito mediatizado, pediram-lhe para não divulgar o nome da empresa, a fim de não a associar de forma pejorativa à doença. Porém, esse trabalhador, já em convalescença, foi entrevistado pela RTP vestindo uma t-shirt com a referência da empresa. Consequentemente, é despedido. E não invocando este motivo para o despedimento, a empresa socorre-se de outros argumentos que passam pela incompetência do funcionário. É o caso recente que se conhece e que já chegou aos tribunais, durante o mês de Junho. Isso passou-se em Aveiro. Suponho que haja mais situações. Como, por exemplo, a perda de regalias de férias ou a conversão das férias, ou durante o processo de lay-off. Nalguns casos, é compreensível, porque as empresas não estão abonadas para conseguirem manter-se… Se uma empresa tornar os funcionários cúmplices do processo é uma situação. No entanto, impor estas “condições” é outra situação.

“As medidas tomadas pelos poderes estatais para conter a covid-19 potenciaram ainda mais as vulnerabilidades dos cidadãos”

sA – Com o Decreto-Lei n.o10-A/2020, de 13 de Março (artigo 12.o), o acesso a restaurantes ou bares com espaços para dançar estão suspensos. Mas também as visitas aos lares de idosos foram suspensos. Que implicações o Carlos Nolasco observa a nível dos direitos fundamentais da generalidade dos cidadãos e, sobretudo, das pessoas consideradas mais vulneráveis?

CN – Aquilo que eu acho, em termos muito sintéticos, é que as medidas tomadas pelos poderes estatais para conter a covid-19 – o que não se passou só em Portugal – potenciaram ainda mais as vulnerabilidades dos cidadãos. Quem era vulnerável ficou numa situação ainda mais fragilizada.

O coronavírus não é, de todo, democrático! Se nós olharmos para quais foram as primeiras pessoas a serem infectadas com o coronavírus, verificamos que não foram as classes médias baixas. Foram as classes altas que tinham uma vida relativamente cosmopolita. Quem importou a covid-19, por exemplo, para Portugal foram industriais que se deslocaram a feiras comerciais e industriais em várias partes do Mundo. Temos ainda o exemplo de uma das primeiras vítimas ter sido o ex-director de um banco. E, depois de o vírus estar cá, ele deixa de afectar mais violentamente este sector e começa a afectar o outro, aquele que não tem hipótese de se defender. Nesse sentido, não apenas em Portugal – se olharmos para os Estados Unidos, vemos que estas coisas ocorrem em roda livre –, as classes mais vulneráveis, com vidas mais precárias, que não têm alternativas nem capacidade para ficarem fechadas em casa, são mais susceptíveis perante esta doença contagiosa.

“Há reclusos cuja licença de saída pode ser renovada por períodos de até 45 dias. Esta medida foi polémica e, provavelmente, uma das medidas em que se quebrou o verniz político entre vários partidos”

sA – Na área da Justiça, que medidas tiverem mais impacto nas prisões? Houve tentativas ou formas concretas de facilitar o contacto dos presos com os familiares?

CN – Na área da Justiça e, em concreto, na questão dos estabelecimentos prisionais, uma das primeiras medidas tomadas foi a de suspender as visitas dos familiares aos reclusos. Era uma medida inevitável, considerando que a população reclusa era bastante susceptível, pelos indicadores de morbilidade relevantes. Essa foi uma das primeiras medidas. Depois, uma outra medida – que ainda está em curso – foi o processo de flexibilização de penas, que permitiu a libertação ou a saída dos estabelecimentos prisionais a quase dois mil reclusos. Eles foram libertados no âmbito de várias circunstâncias, nomeadamente o perdão parcial das penas, para quem faltava cumprir menos de dois anos de prisão. Isto não se aplicou a todos os reclusos. Ou seja, os indivíduos que estavam presos por serem violentos (incluindo os casos de violência doméstica) e por crimes sexuais, por exemplo, não foram libertados. Foi libertado um conjunto de pessoas que se enquadravam num determinado perfil que se considerou não ser tão perigoso.

Houve indultos presidenciais, mas foram menos. A grande fatia foi a do perdão parcial de penas. E também houve bastantes saídas – que continuam a ocorrer – para reclusos cuja licença de saída pode ser renovada por períodos de até 45 dias [por decisão do director-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em função da conduta assumida pelo recluso e do contexto sanitário decorrente da doença covid-19]. Esta medida foi polémica e, provavelmente, uma das medidas em que se quebrou o verniz político entre vários partidos. E deu origem a um aproveitamento populista e interesseiro, ao falarem sobre a libertação dessas pessoas como sendo o apocalipse do crime em Portugal. Isso, quando os dados, em final de Junho, mostravam que dos cerca de dois mil reclusos abrangidos, apenas cinco voltaram a cometer crimes. Se estabelecermos uma relação percentual entre os libertados e as pessoas que cometeram crime, é, de facto, ridícula essa posição. É pena que alguns órgãos da comunicação social olhem mais para os cinco infractores do que para os outros que foram libertados e que não cometeram crimes.

Cadeia Penitenciária de Coimbra. (D.R.)

sA – Que se saiba?

CN – Mas isso passa-se com todos nós, não é?… Houve também a suspensão dos regimes livres de reclusos que trabalhavam fora das prisões e que, neste âmbito, não o puderam fazer. Houve ainda o processo para os reclusos que vêm do exterior e que têm de ficar em quarentena… E isto está a levantar um problema no sistema prisional. Se, antes, havia um excesso de reclusos ou uma taxa de reclusão bastante elevada para as instalações existentes, agora (embora não haja tantos reclusos), a quarentena é dificultada por falta espaço para um isolamento desta natureza. Sempre que entra um recluso ou que tenha de sair do estabelecimento prisional (para fazer diligências ou ir a um hospital), ele terá de ficar em quarentena e começa a haver falta de espaço para o seu confinamento.

“As fronteiras foram fechadas dentro da mesma lógica que fechou as pessoas nas suas casas. Tivemos, assim, uma sucessão metafórica de fronteiras”

sA – Também em meados de Março, uma resolução do Conselho de Ministros introduziu o controlo documental das pessoas nas fronteiras por razões de saúde pública. Esta é, na sua perspectiva de investigador, uma restrição ao Regulamento (Código das Fronteiras) Schengen, embora com algumas excepções?

CN – Eu não acho que seja uma restrição ao Regulamento Schengen, porque contempla situações especiais. As fronteiras foram fechadas dentro da mesma lógica que fechou as pessoas nas suas casas. Tivemos, assim, uma sucessão metafórica de fronteiras. Ou seja, tivemos as fronteiras concretas entre países e também intramuros, com as fronteiras concelhias – como sucedeu na Páscoa, com o impedimento de sairmos do nosso concelho de residência –, com as cercas sanitárias… A nossa própria casa constituiu uma fronteira! Na sua essência, o princípio de Schengen não foi posto em causa. A lógica de Schengen é a de funcionar como um condomínio fechado que tem as suas fronteiras nos extremos da Europa.

sA – Numa conferência de imprensa realizada a 20 de Março, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, declarava que quem entrasse em Portugal deveria permanecer em isolamento profiláctico durante 14 dias. O que se pode aferir no estudo do CES para a FRA quanto a esta decisão?

CN – Em Portugal, tirando os Açores e a Madeira, nenhuma outra região fez isolamento profiláctico, a não ser cercas sanitárias. Se tivéssemos de nos deslocarmos ao Porto não ficávamos em isolamento profiláctico, por coisíssima nenhuma! Mesmo em voos destinados a Portugal, não havia necessidade de isolamento. As únicas regiões que impuseram isolamento – o qual ainda mantêm com o alívio de algumas medidas – foram os Açores e a Madeira, que obrigavam as pessoas a permanecerem… E, nalguns casos, os governos regionais pagavam o hotel durante o tempo em que as pessoas deveriam ficar em quarentena. Porém, passaram a obrigar as pessoas nessa situação a assumir tal pagamento, tendo havido recursos em tribunal [com habeas corpus interposto por cidadãos]. As outras situações sanitárias decorreram de cordões sanitários devido à gravidade do surto no local.

“Temos direito a férias, mas estamos numa situação de emergência, não é? Seria o mesmo que dizermos que, mesmo com o país em guerra, os militares iriam de férias”

sA – Para garantir a operacionalidade máxima dos serviços de saúde, foram restringidas as férias, com o objectivo de assegurar a prontidão do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Foi, então, posto em causa um dos direitos básicos dos trabalhadores?

CN – Sim, foi posto em causa um dos direitos básicos dos trabalhadores. Se todos nós temos direito a férias, a partir do momento em que elas são restringidas, é posto em causa um direito dos trabalhadores. Temos é de perceber qual é o contexto em que isso acontece. E se há possibilidade de esses trabalhadores recuperarem as férias, mais à frente, numa outra circunstância. Estamos numa situação de emergência, não é? Seria o mesmo que dizermos que, mesmo com o país em guerra, os militares iriam de férias. Não pode ser assim. Aquilo que me parece é que – e não sei se assim foi feito – esta decisão deve ser tomada em cumplicidade com os sindicatos e os trabalhadores. Em lay-off simplificado e noutros casos, uma empresa ou entidade patronal que seja séria deveria fazer isto em mesa de negociações e não como uma forma de imposição. A partir do momento em que quem é trabalhador (e se encontrar nesta situação) seja cúmplice do processo, é muito mais fácil a adesão.

sA – Outra situação prende-se com a proibição, neste período pandémico, de os profissionais de saúde terem uma ocupação profissional adicional, sobretudo no sector privado. Que dados são, a este respeito, avançados pelo mesmo estudo?

CN – Não temos dados. Não trabalhamos especificamente com os profissionais de saúde. Nem com nenhuma outra área profissional, em particular. No entanto, houve coisas que foram referidas, dada a visibilidade na comunicação social, a exemplo da questão dos trabalhadores da construção civil ou de algum teletrabalho. O que interessou mais à FRA [Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia] foram as medidas concretas sobre o trabalho e não aquilo que acontecia em determinados sectores laborais. Fizemos referência a isso para ilustrar determinadas circunstâncias e o impacto que estavam a ter em certos sectores profissionais, mas não propriamente no da saúde.

“Se não se fizer a cerca sanitária, as consequências poderão ser potencialmente muito mais dramáticas…”

sA – Que informação nos dá esta pesquisa sobre o estado de calamidade pública decretado a 17 de Março na cidade de Ovar, onde foi determinada uma cerca sanitária, a par de restrições económicas locais e relativamente à livre circulação de pessoas?

CN – Em relação a Ovar, bem como às outras cercas sanitárias que foram impostas – tendo algumas dessas imposições sido relativamente polémicas, porque poderiam levantar questões étnicas, como sucedeu em Moura –, parece-me que o que se fez numa localidade foi semelhante no resto do país, no que respeita aos condicionamentos de movimentos. Todavia, se não se fizer a cerca sanitária, as consequências poderão ser potencialmente muito mais dramáticas…

O tratamento que houve, mais específico, em Ovar teve a ver com facto de a cidade ter ficado, de repente, com um número exacerbado de casos que era necessário conter, de alguma forma. No entanto, pode-se questionar por que não se fez o mesmo em Reguengos de Monsaraz, embora o foco do surto fosse muito localizado a nível de um lar. Porém, se em Março estávamos a vivenciar isso pela primeira vez, neste momento já há um know-how que permite criar um outro tipo de medidas menos drásticas.

sA – Entretanto, o surto pandémico agrava-se e, numa terceira fase, o Presidente da República declara, a 18 de Março, o estado de emergência nacional. Isso significa que mais restrições seriam impostas. Marcelo Rebelo de Sousa, nessa ocasião, enfatiza que o estado de emergência “não é uma interrupção da democracia, é a democracia a tentar impedir uma interrupção irreparável na vida das pessoas”. O que regista o estudo do CES acerca das medidas concretas então executadas?

CN – Aquilo que o estudo regista está patente em alguns parágrafos. Apesar de este aspecto não ser, propriamente, um tópico principal do que nos foi pedido, fizemos questão de mostrar isso, porque havia vozes na sociedade portuguesa que olharam para a implementação da medida do estado de emergência como sendo uma forma de questionar a democracia. As palavras de Marcelo Rebelo de Sousa fazem todo o sentido, reforçando que não era o fim da democracia, mas uma “suspensão”, no mais curto prazo possível, para tentar minimizar os danos. Há um bom indicador sobre esta percepção a respeito do estado de emergência, quando todo o espectro político português com assento parlamentar foi unânime na aceitação dessa medida. É curioso verificar que, depois, já na terceira renovação do estado de emergência, houve partidos políticos que começaram a contestar tal medida. A expectativa de que “a democracia começa dentro de momentos” está a verificar-se, atendendo a que estamos a retomar o direito à greve e outras facetas da nossa vida democrática, com alguma naturalidade.

“Foi inevitável que se suprimissem, temporariamente, determinados direitos para proteger outros. É mais visível a suspensão da nossa liberdade de movimentos em prol da saúde pública”

sA – Segundo a Constituição da República Portuguesa (CRP), o estado de emergência permite a suspensão de alguns direitos fundamentais. Foi respeitado o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.(consagrado à força jurídica) da CRP, designadamente no seu ponto 2: “[…] devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”?

CN – Acho que se verificou o princípio da proporcionalidade. Foi inevitável que se suprimissem, temporariamente, determinados direitos para proteger outros. É mais visível a suspensão da nossa liberdade de movimentos em prol da saúde pública. Essa é, provavelmente, a dicotomia mais óbvia. Não houve, aqui, uma dimensão maquiavélica na suspensão de direitos. Houve países europeus que fizeram isso. Estou-me a lembrar da Hungria, com o perfil daquele governo que tem, autoritário e fascistóide. Está a utilizar o argumento da covid-19 para retirar direitos. Na Europa, de uma forma geral, aquilo que se procurou foi preservar a saúde pública, vendo a necessidade de suspender determinados direitos.

sA– Há, sem dúvida, direitos fundamentais urgentes que têm de ser protegidos, como os relativos a procedimentos de menores em risco ou inerentes a processos criminais com pessoas em detenção. Verificaram-se falhas neste âmbito?

CN – Eu acho que houve falhas. Mas é inevitável não haver falhas! Estamos a falar de um processo novo, surpreendente e que nos aparece de repente à porta… E, inevitavelmente, houve falhas na implementação das medidas. As principais falhas tiveram a ver com uma concentração total de meios, de atenção, de esforços e de energias no combate à covid-19, descurando-se outras situações. A comunicação social tem noticiado com bastante insistência o facto de outras áreas da saúde terem sido descuradas, embora tenhamos de relativizar as situações, sobretudo nos casos oncológicos. Também tem sido divulgado que muitas pessoas, por medo, deixaram de se dirigir aos serviços de saúde. E não nos podemos esquecer que antes, por tudo e por nada, se observava um assédio às unidades de saúde.

Todavia, quem é vulnerável continua a ser muito mais vulnerável. A concentração de serviços e os mais atentos cuidados atribuídos em determinadas áreas desviaram a atenção de outras. Estou-me a lembrar, por exemplo, do relatório que fizemos sobre a comunidade cigana. Torna-se paradoxal pedir a pessoas que não têm casa para que fiquem em casa! Ou remetê-las para o fim do mundo, sem quaisquer infraestruturas para sobreviverem… Houve situações dessas em comunidades ciganas que foram impedidas entrar em Espanha e logo recambiadas para Portugal. Nas comunidades nómadas, a andarem de um lado para o outro, há meninos ciganos que já têm imensos problemas relacionados no acesso à escola, uns voluntários e outros não… Como é que acontece a escolaridade deles, se não têm computadores, não têm Internet e não têm nada? Apesar de ter havido tentativas paulatinas e pontuais para resolver alguns problemas com estas comunidades…

“Torna-se paradoxal pedir a pessoas que não têm casa para que fiquem em casa! Ou remetê-las para o fim do mundo, sem quaisquer infraestruturas para sobreviverem…”

sA – E os sem-abrigo?

CN – Os sem-abrigo foi outra situação de quem não tinha casa e andava por aí… Como é que se pode pedir a alguém sem casa para ficar em casa?! Os sem-abrigo sentiram violentamente todas estas medidas de confinamento. Para além de não terem casa para se confinarem, sofreram do confinamento alheio, porque todo o sistema de voluntariado que existia na recolha e distribuição de alimentos parou. Essas pessoas deixaram, assim, de ter acesso a uma alimentação e a algum tipo de protecção que lhes desse um pouco mais de conforto. Foram grupos sociais que sentiram isto violentamente, sim!

sA– Admite, enquanto sociólogo e investigador, que a liberdade de movimento e o direito de viajar e de se instalar em qualquer lugar do território nacional, bem como o direito à greve e o direito de resistência perderam força (ou importância) relativamente a outros? Pode fundamentar?

CN – Voltamos àquela equação que eu referi no início e que tem a ver com aquilo que são as medidas de saúde pública, com a liberdade de movimentos e, sobretudo, com a liberdade individual. Isso foi muito questionado quando ainda não estava em vigor o estado de emergência e, particularmente, na sequência das férias de Carnaval. Muita gente saiu e voltou sob as suspeitas de que viesse de zonas de risco. Essas pessoas deveriam ser ou não sujeitas a confinamento? Como não havia um quadro legal para impor o confinamento, quase se apelava ao confinamento moral dessas pessoas. E esse confinamento tinha a ver com um bem de saúde pública. A tal equação, que foi sendo feita em várias circunstâncias, com vários meios e contextos, ainda não foi posta de lado.

Rua de Lisboa com táxis parados.

sA– “O coronavírus é um professor cruel porque ensina matando”, disse recentemente o sociólogo Boaventura Sousa Santos. A sua experiência de investigação leva-o a pensar que, além de ser cruel, o vírus exacerba desigualdades? Há formas de controlar isso?

CN – O vírus veio revelar o que já estava. Veio revelar as fragilidades de grupos sociais e a sua incapacidade de se defenderem no mundo que temos, tornando isso muito evidente. E mostra que as classes ou grupos sociais existem com condições hierarquicamente diferenciadas, através de inúmeras circunstâncias, recursos e meios. O novo coronavírus veio também revelar que as sociedades em que vivemos são profundamente desiguais. Estamos a falar do vírus enquanto uma entidade biológica e não temos especificidades biológicas em função de classes. Mas, sempre que essa especificidade biológica impacta sobre condições sociais, mostra o quanto as pessoas vivem em condições diferentes. E isso acontece em Portugal – basta ver, por exemplo, já com a situação do país estabilizada, aquilo que ocorre na área metropolitana de Lisboa e quem está a ser mais afectado. Quem tem possibilidades viaja de carro. Quem não tem carro ou não tem forma de pagar o estacionamento vai nos transportes públicos, com toda a exposição que isso implica. Quem é que continuou a trabalhar, inevitavelmente? Foram, entre outros, os trabalhadores da construção civil. Entre as classes mais pobres estão também os imigrantes e muita gente com poucos recursos. Estas pessoas, obviamente, sentem de forma violenta o modo desigual como o vírus incide na sociedade.

sA – As sociedades (particularmente, a portuguesa) estão preparadas para mais medidas restritivas como as que nos têm sujeitado neste período atípico e que tende a prolongar-se? O que é preciso fazer para que as pessoas não sintam que estão a perder os princípios elementares da cidadania?

CN – Aparentemente, iremos ter uma segunda vaga pandémica. Penso que precisamos de uma “euforia preocupada”, porque o sol, a praia, as férias, os reencontros familiares, a possibilidade de ir a restaurantes e tudo o mais criaram uma aparente normalização das nossas vidas… O que hoje mais nos incomoda é, provavelmente, andar com máscara!

Assim, acho que uma segunda vaga irá levantar as mesmas questões e a mesma predisposição, embora tudo dependa da disponibilidade do poder político para fazer ou não determinadas coisas. Segundo o que nos tem sido dito e porque também conhecemos o país onde vivemos, não há mais possibilidade de repetirmos o confinamento que fizemos. Consequentemente, teremos de agir de uma outra maneira. Se calhar, de forma mais cirúrgica, mais pontual. Mas colocando em causa, mais uma vez, direitos fundamentais que nos assistem, em prol de uma outra perspectiva de saúde pública. E não nos podemos esquecer que o argumento para todo o anterior confinamento foi o da necessidade de achatar a curva [dos casos de pandemia], porque o SNS não tem meios para tratar um “tsunami” de pessoas que cheguem aos serviços de urgência com covid-19.

“Nunca ninguém nos disse que, mesmo ficando em casa, deixava de haver covid. O que nos disseram é que minimizávamos o problema”

Embora os jovens se mostrem um pouco despreocupados – daquilo que tenho observado –, há ainda uma preocupação com o distanciamento social. Não há, propriamente, uma libertinagem repentina sobre as coisas… E é inevitável que os números continuem a crescer. Nunca ninguém nos disse que, mesmo ficando em casa, deixava de haver covid. O que nos disseram é que minimizávamos o problema.

Parece-me que as pessoas foram aderindo. Numa segunda vaga, na eventualidade de voltarmos a retrairmo-nos nas saídas, não se pode entender isso como um abuso [de autoridade]. Em Março, quantos portugueses havia com covid? Nós fechámo-nos e os números cresceram! Porém, neste momento, a nível de política saúde pública, há um processo controlado.

sA– Atendendo à necessária responsabilização das pessoas – ou seja, o confinamento, em si, não é um ataque aos direitos humanos, sobretudo quando está em causa a defesa de um bem superior –, qual a incumbência das autoridades perante comportamentos perigosos dos cidadãos?

CN – Eu acho que, em Portugal, tivemos um bom exemplo de como as coisas podem ser feitas. Verificámos que as autoridades tiveram, antes de uma postura punitiva, uma postura pedagógica. E procuravam explicar às pessoas porque não podiam sair, mandavam-nas para casa… Só num processo de reincidência ou de desafio à autoridade é que havia posturas rígidas. Se consultarmos os relatórios do Ministério da Administração Interna – entidade governativa que supervisionou todo o processo de confinamento –, os números de detenções ou de multas passadas no desrespeito à autoridade foram reduzidos. A estratégia pedagógica resultou. O que é algo diferente do que temos tido, ultimamente, com alguns encontros massivos de pessoas no Algarve, a exemplo dos jovens holandeses.

sA– Que repercussões se observam neste estudo relativamente à privacidade e aos direitos de protecção de dados pessoais relacionados com a covid-19? A liberdade individual deve sobrepor-se aos interesses legítimos colectivos?

CN – A questão da protecção de dados foi algo preocupante neste processo. Desde logo, porque podia implicar discriminação de pessoas, mas foi sempre salvaguardada, paulatinamente. A CNPD foi convidada a pronunciar-se e fê-lo de forma assertiva, sobretudo quando chamou a atenção das autarquias locais para a divulgação das vítimas da covid-19. Se os dados a nível nacional garantem o anonimato, porque se perdem nos números, numa escala mais pequena é possível identificar quem é que… Durante muito tempo, o Alentejo teve apenas uma vítima de covid-19 e toda a gente saberia quem seria.

Por isso, a CNPD apelou para que se tivesse cuidado com a divulgação das estatísticas. À escala de uma freguesia, seria possível saber, de um dia para o outro, quem é que morreu e identificá-lo como sendo vítima da Covid. Até porque houve processos de discriminação associados à covid-19.

“A questão da protecção de dados foi algo preocupante neste processo. Desde logo, porque podia implicar discriminação de pessoas”

sA – Qual foi o impacto em certas comunidades étnicas? A pandemia deu origem a incidentes xenófobos em Portugal?

CN – No primeiro relatório que fizemos para a FRA, perguntávamos se tinha havido algum processo discriminatório para com os chineses. Houve relatos de situações pontuais. Houve situações em que as pessoas deixaram de comprar nas lojas ou de ir a restaurantes chineses. E, por isso, no final de Fevereiro, a directora-geral da Saúde e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa passearam numa zona com lojas chinesas e foram almoçar a um restaurante chinês, para mostrarem que não havia problema. Mas há relatos pontuais e individualizados de cidadãos de origem chinesa que se queixaram de procedimentos discriminatórios.

Em termos étnicos, temos os casos das comunidades ciganas de Moura, muito próximos daquela cidade alentejana. O surto expandiu-se no concelho, mas aconteceu inicialmente na própria cidade. Sabe-se que um cidadão de etnia cigana se deslocou a Beja para tratamento renal e que apanhou o novo coronavírus no hospital, transmitindo-o à sua comunidade, que ficou numa cerca sanitária. Logo a seguir, o surto contaminou outra comunidade, tendo esta também sido sujeita a semelhante medida.

Ao que sabemos – pois, solicitámos dados às autarquias de Moura –, a cerca sanitária foi sempre acompanhada pelas autoridades, com todo o apoio necessário, incluindo os cuidados de saúde, a alimentação, prestando atenção aos mais novos na escola e aos direitos das mulheres ciganas. O que já não se verificou, por exemplo, no início de Junho, quando o presidente da câmara municipal da Azambuja insistia em estabelecer um cordão sanitário num prédio habitado por pessoas de etnia cigana, isolando-as nas suas próprias casas [no bairro da Quinta da Mina, gerido pela autarquia].

Quem usa a “bandeira de um não problema”, além de “não ter ética nenhuma, é mais do que mesquinho!”

Daí que o partido Chega tivesse aproveitado isto, em diversas circunstâncias. Apesar de não terem ocorrido problemas com as comunidades ciganas nem com os reclusos em Portugal, o que fez foi usar a “bandeira de um não problema”. Quem age assim, além de não ter ética nenhuma, é mais do que mesquinho! O sistema democrático dá espaço para que estes partidos cresçam. E quando, neste mesmo sistema democrático, há carências – atendendo a que não somos um país rico, nem podemos dar resposta a todas as pretensões –, estes partidos, sendo completamente imorais, conseguem encantar as pessoas que têm um reduzido espírito crítico. É um partido que fundamenta todo o seu discurso na base do ataque ao outro, que não é um outro qualquer, já que se exibe no ódio aos ciganos. O único discurso que tivemos verdadeiramente xenófobo e de ódio em Portugal foi o do Chega, como registámos no relatório solicitado pela Agência Europeia para os Direitos Fundamentais. Aliás, é conhecido um discurso formal, na Assembleia da República, em que o líder desse partido [André Ventura] diz que há um problema com os ciganos em Portugal. Na minha opinião, aquilo que há é um problema na cabeça dele!

sA – Que dados ou revelações mais o surpreenderam (e à sua equipa de investigadores) neste e noutros estudos entretanto realizados? Neste momento, que conclusões prévias é possível retirar dessas mesmas pesquisas?

Zona do El Corte Inglés, em Lisboa.

CN – Depois de olharmos para este cenário todo, a primeira constatação prende-se com a nossa capacidade de adaptação, enquanto seres humanos. De um dia para o outro, deixámos de andar na rua, em actividades sociais e a trabalhar, para termos uma outra vida. E adaptámo-nos bem. Houve pessoas que ficaram mais fragilizadas, mas o processo foi relativamente pacífico. Não acredito que isto seja para durar muito. Neste processo de adaptação, criámos novos hábitos. Há pessoas que deixaram de ir aos centros comerciais, outros passaram a fazer actividades ao ar livre. O consumo caiu brutalmente.

É, sem dúvida, um momento marcante. Há também, aqui, um certo vazio. Por exemplo, a gripe espanhola [ou gripe de 1918, uma mortal pandemia do vírus influenza] foi muito marcante sob o ponto de vista demográfico e menos a nível social, porque, em Portugal, ocorreu no meio de dois fenómenos políticos importantíssimos: o processo conturbado da implantação da República e a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial. Ou seja, então, a vida social e política canibalizou o processo de doença. Agora, não. Provavelmente, nunca tivemos uma cobertura mediática tão intensa e sufocante. Todos os noticiários continuam a abrir com a temática da covid-19. Parece que não há mais nada!

No entanto, tenho a impressão de que voltaremos rapidamente a uma certa normalidade. À “normalidade” do consumismo desenfreado, contribuindo para as cidades poluídas… A sedução feita pelo consumo vai obrigar-nos, novamente, a poluir.

“O que se passa em África? O que se passa em São Tomé e Príncipe, na Guiné, em Cabo Verde? Temos de ir à procura das estatísticas, sabendo que nos dizem pouco?”

Para além disso, houve outras coisas interessantes. Por exemplo, o facto de determinados sectores políticos que sempre defenderam menos Estado, de repente, aparecerem de mão estendida junto das entidades estatais para que os ajudem. E isso revelou, de forma clara, que uma sociedade com um Estado fraco é uma sociedade fraca. É uma sociedade que se alicerça apenas e só numa lógica de um capitalismo selvagem e na perspectiva economicista. Se não houver um Estado que tenha a preocupação de velar pelos direitos sociais, mesmo que eles sejam onerosos, ficaremos muito mais pobres e vulneráveis. Nós temos um Governo responsável, preocupado com as pessoas.

Ao mesmo tempo, há situações que me preocupam. Por exemplo, a questão dos imigrantes e, particularmente, dos refugiados. O que se passa com os refugiados? Onde é que eles estão? Qual é a taxa de incidência da covid-19 sobre os refugiados?

Outra realidade é a situação em África. Nos noticiários sobre a covid-19 em África, este continente é, muitas vezes, considerado como um país ou como um espaço uniforme! O que se passa em África? Por que é que a comunicação social não olha para África? O que se passa em São Tomé e Príncipe, na Guiné, em Cabo Verde? Temos de ir à procura das estatísticas, sabendo que nos dizem pouco? Há partes no Mundo que estão esquecidas.

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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