Como a morte de uma zona industrial ditou a morte de um bairro de Coimbra

 Como a morte de uma zona industrial ditou a morte de um bairro de Coimbra

A Zona Industrial da Pedrulha em tempos empregou mais de seis mil pessoas, vindas dos subúrbios de Coimbra, a maioria do próprio bairro em que foi construída. Só entre 1940 e 1968 instalaram-se lá mais de 21 unidades industriais. A falência da Zona Industrial ditou a morte do bairro que lhe dava nome, e são muitas as causas por trás dessa história.

Hoje, sobram-lhe as carcaças, e as memórias por contar de um bairro industrial e periférico. Hoje, é meio-dia e não há quase ninguém na rua.

Meio-dia, e a estrada da Pedrulha está quase vazia. Uma estrada que, até há bem pouco tempo, fervilhava com camiões, carros, motorizadas e trabalhadores de bata branca. De um lado da estrada, a antiga Estaco e o desterrado onde esteve a Fundição Gomes Porto; do outro, as duas Fábricas da Triunfo.

Em frente à Estaco, do outro lado da estrada, já as panelas de ferro estão ao lume e paira no ar o cheiro a chanfana acabadinha de fazer. Por cima do balcão e de um copo de vinho branco, o Sr. Silva discute com a cozinheira se vai ou não ser picanha ao meio-dia.

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Durante 35 anos, o Sr. Silva foi chauffeur da gerência da Termec, fábrica de equipamentos térmicos, falida, encerrada e depois comprada pela Segurança Social. Não quer adiantar muito sobre a história da fábrica, muito menos sobre o seu fim. Sobre os seus colegas de trabalho e vizinhos, e o que foi feito deles depois do encerramento das fábricas, não desenvolve. “Não sei, cada um se estabeleceu no seu sítio”.

Olha para o fundo da Casa Ventura com o copo de vinho encostado aos lábios. Não se sente confortável para falar sobre a fábrica nem sobre o seu desfecho. Mas sobre o bairro onde cresceu e viveu toda a vida, suspira, e diz “a Pedrulha era o que de maior Coimbra tinha”. Nota-se a nostalgia na voz, mas não se permite exteriorizá-la.

Ali na Pedrulha as pessoas fazem as suas vidas a paredes meias com o que o jornalista António Rosado, do Diário As Beiras, descreve como “um cenário de guerra civil”. A pequena e cor-de-rosa escola primária tem vista privilegiada sobre o que em tempos foi a fábrica de Bolachas Triunfo. No Centro Social e Paroquial da Pedrulha, a maioria dos utentes são antigos trabalhadores da zona industrial, quebrados pelos anos e apoiados em andarilhos e canadianas. Por todo o bairro, espreitando às janelas, as silhuetas de chaminés e pavilhões são incontornáveis.

A visão das velhas fábricas enche a paisagem daquela zona, outrora vibrante com vozes de homens e mulheres, ruídos de máquinas, fumos de chaminés e camiões em constante passagem. É do que mais falam os residentes da Pedrulha que labutaram nas fábricas, antes do descalabro da zona industrial. Do cheiro e dos barulhos. Hoje, pouco ou nada se ouve. É meio-dia e não há quase ninguém na rua.

Ainda assim, há um ruído bizarro dentro da carcaça da velha Estaco. A fábrica de Estatuária Artística de Coimbra, 60 hectares de esqueleto fabril abandonado ao largo da estrada da Pedrulha, deixou de soar há mais de uma década. O expectável ruído de uma fábrica abandonada é nenhum – mas ouve-se o coaxar de rãs. Os 16 anos de abandono permitiram que se formasse um pequeno habitat, com água, lodo e canas, dentro dos largos pavilhões da Estaco, e há uma vintena de rãs a fazer da antiga fábrica de pavimentos o seu lar.

Todo o cenário em que se ergue a Estaco – ou o que sobra dela – é desolador. São corredores sem fim de paredes sem tecto, sobram algumas chaminés de tijolo burro. Do outro lado da estrada, a paisagem é semelhante. As duas fábricas da Triunfo, das rações e das bolachas, estão um pouco menos decrépitas, mas esqueléticas ainda assim.

Há bem pouco tempo, aquele parque industrial era mais do que um aterro de fábricas e cerâmicas partidas. Um pouco abaixo desses imensos cadáveres, no mercado Carli, Umberta fala desses tempos como se um sonho difuso se tratasse.

“Chegava a hora do almoço e isto era um mundo de batas brancas”, recorda, enquanto varre distraídamente o chão do mercado. Trabalha ali há 30 anos, e as memórias dos tempos em que as fábricas respiravam são distantes. Diz que a Pedrulha já não é nada do que era. Hoje, é meio-dia e não há quase ninguém na rua. Agostinho Marques, também ele residente no bairro, confirma.

Sentado no alpendre da sua casa com a esposa e a prima, vai aproveitando as últimas horas de sol do dia. Noutros tempos, estaria ainda dentro do restaurante que geriu durante nove anos. “Nascido e criado na Pedrulha”, viu em primeira fila a ascensão e a queda da zona industrial. Com os olhos semicerrados pela luz intensa de fim de Primavera, vai contando como eram os dias ali no bairro quando as fábricas funcionavam. À hora do almoço, “não havia mãos a medir” com a enchente de operários que se sentava à mesa no seu estabelecimento, mas “tudo mudou”. Encerrou o restaurante quando se apercebeu do colapsou iminente. Quem não se apercebeu disso terá sido a sua prima, a Dona Lena, sentada na outra ponta do alpendre. “Foi num abrir e fechar de olhos” que a fábrica fechou, diz.

Dona Lena entrou a trabalhar com 12 anos na Cerâmica Ceres, em Fornos, também essa já encerrada e descarnada. Mas dos 14 aos 47 trabalhou nas Bolachas Triunfo, logo abaixo do alpendre em que se senta.

“Foram 33 anos”, conta. Fala sobre as “upa, upa! mais de mil mulheres” que lá trabalharam consigo, e como ela foi das poucas que não chorou quando se deu o encerramento da Triunfo, em 2001. “Estava cheia de fábrica, já só queria vir-me embora! Mas não deixaram um tostão a dever a ninguém.”

Depois, foi trabalhar para um restaurante perto dos Hospitais Universitários. Mas nem toda a gente teve tanta sorte, remata Agostinho. A maioria dos trabalhadores das Bolachas Triunfo teria perto de 50 anos, e, nessa fase, “são demasiado jovens para irem para a reforma, mas já demasiado velhos para conseguirem novos empregos”. “Muitos reformaram-se, outros continuaram a trabalhar, mas também ficaram muitos no desemprego”, diz Dona Lena, olhando para o alto da colina de alcatrão que se estende à frente da casa do seu primo.

E os rostos no bairro? Mantiveram-se? “Durante algum tempo, os que tinham casa aqui por causa das fábricas acabaram por voltar as terras deles”. A maioria dos moradores da Pedrulha trabalhavam nas fábricas, “na Estaco, na Triunfo, nas Cervejas”, enumera Dona Lena. De repente, estica o braço com vigor e aponta para fora do alpendre. “Este senhor trabalhou na Estaco muitos anos!”

Mas tão depressa esse senhor apareceu como desapareceu. Deteve-se alguns segundos, mas assim que se falou na Estaco e no encerramento, rematou a conversa a desviar o olhar para o fundo da rua e dizer que estava com pressa.

Não é invulgar que as conversas sobre as antigas fábricas gerem desconforto, mau-estar. Até raiva. Aqueles aterros industriais são uma ferida aberta, visível e purulenta na história do bairro. Mas quando as conversas se desenrolam, as vozes são ou apáticas ou embargadas. Fala-se com saudade do tempo em que as fábricas respiravam e o bairro pulsava com elas. Hoje, restam os cadáveres para recordar um passado que já vai longínquo.

Hoje, é meio-dia e não há quase ninguém na rua.

Sintomas de uma doença maior

Os relógios batem uma cacofonia bizarra a cada quinze minutos, mas Maria Luísa Rodrigues não se incomoda. Há 27 anos que diariamente ouve aqueles relógios, na sua loja de antiguidades na Avenida dos Combatentes. Foi na qualidade de representante da loja que presidiu à Associação de Comércio e Indústria de Coimbra, em 1993. Fala com algum desgosto do desfecho que a ACIC teve, falida e encerrada em 2015.

Maria Luísa foi a primeira e única mulher a presidir à Associação em 180 anos de história, e afastou-se dos corpos sociais da ACIC porque considerava que a mesma perdeu o rumo: “a associação desviou-se muito dos objectivos para que foi criada, e foi nessa altura que começou a adormecer”. E acrescenta, “a falência da ACIC é para mim um mistério”.

Ainda que o sector industrial não fosse o mais relevante no trabalho da Associação, Maria Luísa teve uma visão panorâmica do que estava a acontecer ao tecido industrial de Coimbra no seu final de vida. Quando chegou à presidência desta Associação, as fábricas já começavam a mostrar sinais de ruptura.

Tanto Maria Luísa Rodrigues como Isabel Caeiro, empregada da Direcção da ACIC durante mais de 30 anos, relembram aqueles anos de trabalho com carinho e mágoa. Ambas lutaram muito pela Associação e vê-la entrar em decadência foi-lhes doloroso. “Foi um desgosto imenso abandonar aquilo que ajudei a construir”, suspira Isabel Caeiro. Maria Luísa atribui parte do descalabro da ACIC aos “dirigentes incapazes”: “se não eram capazes de orientar o seu próprio comércio, quanto mais um barco daqueles!”.

E que grande barco era, para a dimensão da cidade que o albergava. O sector terciário sempre foi o que mais caracterizou a actividade económica da cidade de Coimbra, e por isso mesmo a ACIC tinha uma relevância de maior. Não obstante a importância do comércio e serviços da cidade, os subúrbios coimbrões viveram muito da sua indústria. “Especialmente cerâmicas”, sublinha Isabel Caeiro.

Maria Luísa atribui uma série de causas à decadência da indústria em Coimbra. Afirma e reafirma que esse processo começou bem antes do 25 de Abril, inclusive. “Alguns industriais não quiseram modernizar-se, outros não conseguiram”. E explica que as fábricas não eram somente fábricas: “eles mantinham o dinheiro todo dentro da corporação, com os infantários, as cooperativas, as bombas de gasolina…” Argumenta a ex-dirigente que esta era uma forma de garantir que todo o dinheiro que saía da corporação para as mãos dos trabalhadores, na verdade voltava para trás.

A falência da ACIC, que começa na viragem do século, foi tão somente um sintoma de uma doença maior. José da Costa, dono da mais antiga ourivesaria de Coimbra, bem no centro da Baixa, ficou tão perplexo com o encerramento da ACIC como Maria Luísa: “nunca faltou um tostão a ninguém, e de repente aquilo fica falido?”. Vai folheando distraidamente uma revista sobre o balcão da ourivesaria, e torce uma caneta entre os dedos, enquanto fala sobre os anos de glória da ACIC e da indústria de Coimbra.

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As grandes empresas já não resistem

Tal como Isabel Caeiro, José da Costa conheceu a ACIC e a Zona Industrial numa fase em que havia trabalho, exportação, e resultados visíveis. E, a par do que disse a sua sucessora, Maria Luísa Rodrigues, sublinha múltiplas vezes a importância da ACIC para os comerciantes do distrito. Ao fim de 19 anos nas dirigências da ACIC, e sete como presidente geral, afastou-se. “Mas paguei as cotas até ao fim!”, garante.

Enquanto vai avançando pelos anos da história da ACIC, percebe-se que também a Associação teve uma história de altos e baixos, mas não há nada em concreto que explique a sua decadência e morte. No início dos anos 2000, houve uma tentativa da Associação de levar a Feira Comercial e Industrial de Coimbra para a Pedrulha. A Associação comprou à Segurança Social as instalações da antiga Termec – cuja direcção teve como chauffeur durante mais de 30 anos o Sr. Silva – por 250 mil contos (perto de 1 milhão e 300 mil euros), para realizar aí a mostra de produtos e serviços que até então tinha acontecido na Praça dos Heróis do Ultramar, ao largo do Estádio.

Esse projecto foi um fiasco, acredita José da Costa, já que a Feira perdeu uma relevância e um público imenso. E a Termec lá ficou, de novo entregue ao abandono, depois de uma tentativa de revitalização e rebaptismo. Não houve forma de devolver a ACIC ao que era.

Às causas da morte da indústria que já Maria Luísa tinha dado, José da Costa acrescenta algumas outras. Explica que a descolonização obrigou a que os industriais fossem obrigados a comprar matérias-primas que antes eram quase gratuitas, como foi “o caso de Angola”, acredita. Mesmo após o 25 de Abril e a descolonização continuaram a ser tomadas opções pelas administrações que não deram saúde nenhuma à indústria.

Recorda uma festa para que foi convidado numa das antigas fábricas da Pedrulha, após a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia. Com os fundos que foram atribuídos a Portugal, e em parte redistribuídos pelos industriais, “os administradores compraram grandes carros e fizeram grandes festas, mas não investiram nas fábricas nem na formação dos trabalhadores”, afirma José da Costa. Apesar de, após a entrada na CEE em 1986, os sectores dos materiais de construção e da indústria alimentar serem dos poucos que conseguiram manter os saldos positivos, a longo prazo isso não se traduziu num investimento sério no futuro das indústrias nem na sua sustentabilidade.

Os anos 80 marcaram um período de viragem na indústria portuguesa. Por um lado, houve um exponencial aumento a nível de exportações, o fim das restrições económicas impostas pelo FMI (pelo resgate de 1980-1983), e a adesão ao espaço Europeu e sua livre circulação de pessoas e bens. Isto representou um aumento no poder de compra das famílias, e geraram-se 400 mil novos postos de trabalho. Mas a indústria portuguesa não foi capaz de fazer frente ao aumento da procura, nem tão-pouco à penetração de produtos importados. Algumas indústrias, como a metalúrgica e a de material eléctrico, viram nesta fase o princípio do seu fim.

O calor na rua faz anunciar um Verão familiar aos conimbricenses. Para quem durante anos labutou numa fábrica de cerâmicas em Souselas, o ar quente e abafado que se respira lá fora não intimida nem um bocadinho. Dentro da taberna “Zé Figueiredo”, cheira a vinho tinto, bolinhos de bacalhau e sopa quente. Por cima dos balcões de madeira corridos, dois homens vão bebendo e conversando, com o nome do dono da taberna as surgir pontualmente.

José Figueiredo abriu aquele espaço, escondido nas ruelinhas da Baixa de Coimbra, depois de ter abandonado a vida fabril, em 1991. Durante a maioria dos anos em que trabalhou na Cerâmica de Souselas, foi sindicalista – e sempre sindicalizado. Dirigente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Cerâmica da Região Centro durante 12 anos, sublinha: “eu estava em todas”. Para além de dirigente sindical, representante das comissões de trabalhadores, e presidente da junta de freguesia de Souselas, foi pai e marido. Conheceu a sua esposa, que trabalha atarefadíssima dentro da taberna, namorou-a e casou-se com ela ainda na fábrica. Quando sai de lá, em 1991, já os dois filhos eram adolescentes. “Esta teve que me aturar a missão”, graceja.

E que missão era a de José Figueiredo. Apesar de radicado em Souselas, deslocava-se por toda a Zona Centro e ia até Lisboa, se caso fosse, para reunir com os industriais e as entidades patronais. Foi com 10 anos que começou a trabalhar, e suspira: “foi logo aí que percebi quem era quem”.

“Eu nunca vi os patrões como adversários, mas ele viam-nos a nós como tal”. Relembra uma reunião em Lisboa, quando se sentaram sindicalistas e patrões, que descreve como “pessoas de difícil diálogo, mas dispostas a dialogar com os sindicatos”, coisa que já não são hoje, acredita. Via-os como pessoas frequentemente “sem formação nem cultura”, e lembra quando um desses industriais atirou ao ar “Eu na minha fábrica não tenho trabalhadores, tenho bichos!”.

Por ter vivido os anos 80 como dirigente sindical, foi bem de perto que viu o impacto do resgate do FMI e da adesão à CEE nas indústrias nacionais. Além do mais, foi também nessa década que se instalou uma séria crise na construção civil, resultante em parte da descolonização e da inflação, que chegou a rondar os 16%. À data, a solução passava por imprimir mais dinheiro, mas isso resultava numa desvalorização da moeda e na penalização das empresas, já que a matéria-prima encarecia. Acrescentando à inflação e à descolonização uma subida nos preços do petróleo, estava montada a receita perfeita para um desastre económico.

Naturalmente, essa crise no sector da construção civil sentiu-se de sobremaneira na indústria da cerâmica, de que a Zona Centro vivia muito. José Figueiredo assegura que “mesmo os empresários já identificavam o problema”. Numa economia que se tornou “dependente de mão-de-obra barata”, a modernização das empresas seria o único caminho a seguir. Explica que os encerramentos das fábricas nem sempre se deviam a falências. Nalguns casos, houve deslocalizações, como foi o caso das Fábricas Triunfo, que passaram para Mem Martins, em Sintra – também essas entretanto deslocalizadas para a República Checa.

“Na Estaco havia mais de mil trabalhadores, e muitos ainda vêm aqui visitar-me”, diz, acrescentando que “muitos passaram mal, estavam feitos para a vida de fábrica”. Na altura do encerramento, foram muitos os trabalhadores que vieram procurá-lo à taberna no Largo do Romal, para serem esclarecidos relativamente às quantias das indemnizações que deveriam receber. Garante José Figueiredo que essas contas não estavam a ser bem feitas, e os trabalhadores também não sabiam fazê-las.

As indemnizações que são devidas aos ex-trabalhadores da Estaco ascendem a 6,5 milhões de euros, garante Luís Almeira, actual dirigente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Cerâmica, Cimentos, Construção, Madeiras, Mármores e Similares da Região Centro (STICCCMS). “Todos os trabalhadores da Estaco são trabalhadores-credores”, sublinha. Significa isto que a massa insolvente da fábrica deve dinheiro aos ex-trabalhadores, em forma de salários em atraso ou indemnizações, e que os trabalhadores têm prioridade em ser ressarcidos aquando da venda do património da empresa. Na Estaco, “logo a seguir à falência foram vendidas as máquinas” e entretanto até a chapa dos telhados foi vendida a sucateiros. Mas nem assim são pagas as indemnizações.

A Estaco, como a Sociedade de Porcelanas (perto do Bairro Norton de Matos) e a Ceres, são antigas fábricas de cerâmicas que foram descarnadas e desmembradas para tentar fazer frente às dívidas acumuladas com os anos. A Ceres, em Fornos, encerrou em 2005 e só em 2016 é que os seus trabalhadores foram indemnizados. “Já não há cerâmica, aqui”, suspira Luís Almeida.

À falência das cerâmicas na Zona Centro, o sindicalista aponta múltiplas causas, tal como José Figueiredo e os ex-dirigentes da ACIC, mas acrescenta “o envelhecimento das instalações” e “as administrações terem deixado as máquinas ficar obsoletas”. Além disso, refere um sério investimento dos governos italianos nas cerâmicas italianas, “quando cá as empresas eram seculares e familiares”, e refere as dezenas de novas fábricas de cerâmicas, em Castellón, na Catalunha.

“Tudo leva a crer que aquilo foi gestão danosa”, referindo-se às fábricas da Pedrulha. Há, de uma forma geral, a ideia de que há muito interesse imobiliário naquela zona, mas o Plano Director Municipal só permite ali construção industrial. Durante algum tempo, e enquanto a discussão sobre o TGV estava no centro da praça pública, falou-se sobre a possibilidade de construir entre o Loreto e a Pedrulha uma estação para esse comboio internacional. Mas ficou pela discussão.

Houve muitos projectos e muitas promessas que foram ficando pela discussão, e Luís Almeida acredita que já não há grande volta a dar no que à indústria portuguesa respeita. Fala da Lufapo, uma outra carcaça na Pedrulha de que só sobra a chaminé, e de três fábricas de barro vermelho em Arganil, que também afundaram. Ele próprio trabalha em madeiras e aglomerados numa grande empresa em Oliveira do Hospital, há 34 anos, mas para ele é claro que não durará muito mais tempo.

“Têm surgido pequenos projectos de cerâmicas e madeiras pelo país, que são muito mais sustentáveis do que as fábricas. As grandes empresas já não resistem.”

José Barroso, também ele antigo sindicalista, do Sindicato dos Empregados de Escritório, é da mesma opinião que Luís Almeida, no que aos interesses imobiliários diz respeito. No Ateneu de Coimbra, entre reuniões, recibos e a hora do lanche para os utentes do Centro de Dia 25 de Abril, o ex-trabalhador das Fábricas Miranda fala com alguma raiva sobre o estado em que a Pedrulha foi deixada. Garante que não é a pessoa mais indicada para falar sobre a Zona Industrial da Pedrulha, mas sublinha: “enquanto a bestuta não cair, Coimbra não muda”. A “bestuta” é a Cabra, a torre da Faculdade de Direito da Universidade, e assegura que a querela entre a academia e a indústria é antiga. Foi dirigente do Sindicato dos Empregados de Escritório, mas nem por isso deixou de se aperceber do que estava a acontecer na indústria de Coimbra, e do país. “A queda da indústria começou ainda antes do 25 de Abril”, acredita, “os grandes industriais nunca quiseram investir nem ter mão de obra qualificada”.

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Isto foi uma zanga de cunhados

Calcorreando os antigos corredores da Estaco como se ainda fossem seus, Joaquim Amaro e Fernando Duarte vão revivendo e recontando as histórias dos mais de 35 anos que cada um deles lá passou. Fernando era representante de vendas, e Joaquim era serralheiro, ambos naturais da Pedrulha, feitos homens naquelas fábricas e naquelas ruas. Em cada pavilhão em que entram, falam sobre quem lá trabalhava e o que lá se fazia. Afinal, a Estaco era três fábricas num terreno: de revestimentos, de loiças, e de estatuária. E, no seu período de glória nos anos 70, chegou a empregar mais de mil pessoas. No final, em 2001, já eram só perto de 200.

O calor aperta, e já não há telhados à vista que providenciem um bocadinho de sombra, mas nem um nem outro se deixam intimidar. Conhecem os cantos à casa como se dos seus lares se tratasse. E era quase em família que ali se vivia, confirmam ambos, com sorrisos torcidos nos lábios. Joaquim entrou para a Estaco com 19 anos, Fernando com 18. “Na altura não íamos para a Estaco, íamos trabalhar para o Zé Amaro”, graceja o ex-representante de vendas, referindo-se à família fundadora da fábrica, oriunda de Aveiro. Foi em 1946 que a fábrica ali se estabeleceu, e um jovem Fernando com 8 anos viu-a ser construída.

Ambos conheceram o trabalho fabril antes e depois do 25 de Abril, e Joaquim fala entusiasticamente sobre esse período: “pudemos começar a falar com os patrões, fazer plenários, greves, organizarmo-nos, que antes não podíamos”. Entre os pavilhões dos revestimentos e da estatuária, Fernando ressalva que também foi o fim da hierarquização entre funções dentro da fábrica: “os administrativos eram os trabalhadores de alcatifa, quando eu era paquete mandavam-me entregar as encomendas aos funcionários superiores. Mas isso tudo acabou depois do 25 de Abril”.

Houve muitos projectos e muitas promessas que foram ficando pela discussão, e Luís Almeida acredita que já não há grande volta a dar no que à indústria portuguesa respeita. Fala da Lufapo, uma outra carcaça na Pedrulha de que só sobra a chaminé, e de três fábricas de barro vermelho em Arganil, que também afundaram. Ele próprio trabalha em madeiras e aglomerados numa grande empresa em Oliveira do Hospital, há 34 anos, mas para ele é claro que não durará muito mais tempo.

“Têm surgido pequenos projectos de cerâmicas e madeiras pelo país, que são muito mais sustentáveis do que as fábricas. As grandes empresas já não resistem.”

Dizem os dois ex-funcionários da Estaco que o encerramento não foi uma surpresa absoluta para ninguém. “Nós administrativos víamos muito bem o que estava a acontecer”, confessa Fernando Duarte. Os demais trabalhadores não teriam uma noção tão clara da quebra iminente, mas havia indícios. “A ruptura de stocks, a falta de matérias-primas…” enumera Joaquim Amaro. “Deixaram de pagar aos fornecedores, que passaram a deixar tudo na Figueira e a não trazer nada para cá.”

Aquando do encerramento em Outubro de 2001, já tinham quatro meses de salários em atraso, entretanto pagos pela Segurança Social, e a administração deixou milhões de euros em dívida aos trabalhadores. Só a Fernando Duarte, a dívida ascende a 118 mil euros. Joaquim Amaro fala em 4700 contos (23,500 euros). Ambos apontam sérias críticas ao que está a ser feito pelo administrador da insolvência, e pelo sindicato também: “houve uma reunião de comissão de credores, e os trabalhadores não estiveram representados”, acusa Fernando Duarte.

Vão parando pelas antigas salas. “Olha, Fernando, lembras-te que trabalhava aqui um ceguinho, o Zé?”, relembra Joaquim. Entram na cantina, de onde já foi roubado a maioria do mármore, mas ambos se mantêm de pé, orgulhosos, perto dos antigos balcões. “Este chão é em azulejo M16, foi feito em 1975”, explica Fernando. Relembram como funcionavam os turnos do almoço e do jantar – a fábrica trabalhava em turnos, sem parar.

No terceiro andar do pavilhão mais ao fundo do terreno, enquanto sobe as escadas Joaquim olha para trás, ri-se e diz: “a menina só podia entrar aqui de calção curto!”. Fernando ri-se também, e acrescenta: “os homens tinham de entrar de tronco nu!”. Sobem para o local onde se secavam os moldes para as loiças sanitárias. Para além do calor imenso que uma fábrica de cerâmicas exige, aquele local era particularmente violento. Para garantir que os moldes não estalavam ao sair dos fornos, eram levados para aquela sala onde se sentiam temperaturas infernais, e no sentido de optimizar as condições para os moldes, foram instaladas calhas metálicas ao longo das colunas para conservar melhor o calor. Joaquim aponta por onde passavam essas calhas, e surge um rubor no rosto, só de pensar no calor que ali se sentia.

“Nós não tínhamos noção das condições em que trabalhávamos”, explica Fernando Duarte. “Não conhecíamos mais nada.”

E quanto ao que levou a Estaco a encerrar? Joaquim Amaro tem algumas ideias, que se prendem com a incompetência da última administração. Mas Fernando Duarte, por ter trabalhado tão perto dos decisores da empresa, teve uma outra percepção do que aconteceu. Com a falência da Estaco e com o encerramento das fábricas da Triunfo aponta “um factor em comum, que é o Banco Mello”, assegura.

“A fábrica Dominó foi fundada por um familiar dos fundadores da Estaco, que descapitalizou a sua parte da fábrica para ter fundos para poder ir fundar a Dominó em Condeixa. O sócio que ficou teve de se aliar ao Banco Mello para poder assegurar a manutenção da Estaco. O Banco encostou esse sócio e colocou cá uma nova administração, que foi vendendo a fábrica ao desbarato. Havia interesses imobiliários por detrás, a que os trabalhadores objectaram desde o princípio.”.

O Grupo Mello foi um dos responsáveis pela criação da Lisnave e da Setenave, estaleiros em Lisboa e Setúbal, e esteve envolvido na alta finança com o grupo Morgan Guarantee Trust Company of New York e com o Deutsche Bank AG, comprado pelo Banco Comercial Português em Junho de 2000.

Sublinha uma e outra vez, “esta é a minha percepção do sucedido”. Isto terá acontecido nos anos 90, e foi o que deu início ao desmembramento da Estaco. “A Estaco fechou por causa de uma zanga de uma cunhados”.

No escritório dos administrativos e dos representantes de vendas, Fernando Duarte olha em volta, desamparado. O chão está forrado a cinzas de papéis, nalguns ainda se lê o antigo logótipo da Estaco. São listagens de stocks, regulamentos, ordens de pagamento.

“Sei que há uns anos alguém que veio cá encontrou a minha ficha de trabalhador e entregou-ma”, relembra, vasculhando pelas cinzas com os pés. Joaquim Amaro diz que nunca viu a sua. Fernando Duarte levanta os olhos para o fundo do escritório, coberto de papéis queimados, pó e espuma, sem janelas, com memória a emanar de cada parede e cada farrapo amarrotado pelo chão.

“Trabalhei aqui tantos anos…” suspira. Frase que Joaquim Amaro repete pouco depois, ao entrar nas oficinas, ao lado das garagens, visivelmente abalado. Aponta para os tectos, pretos de fuligem, e diz “andaram a queimar aqui coisas”. Há poças de água lamacenta aqui e ali, cheira a mofo naquela parte da fábrica. E o serralheiro acelera o passo. “Deixa-me só vir aqui ver como isto está.”

“Trabalhei aqui tantos anos…” e leva a mão ao rosto, olhando em volta, quiçá à procura dos colegas e máquinas que durante 38 anos o acompanharam naquela oficina. “Era aqui que arranjávamos tudo da fábrica, tudo que se estragasse vinha aqui parar. Ensinei muita gente aqui”, relembra. Fernando Duarte fala de novo no dinheiro que veio da CEE, no final dos anos 80, e relembra a quantidade de formações que foram dadas naquela oficina. “Mas nunca chegámos a ver onde parava o dinheiro que a administração recebia por se fazerem cá as formações”.

Os ex-trabalhadores continuam a encontrar-se, anualmente, para um almoço. Mas não obstante se manterem muitos dos laços que foram criados ao longo dos quase 70 anos de existência da Estaco, a raiva prevalece. Raiva por não se dar um desfecho naquela história que tantos danos causou.

“Ontem estávamos com um colega, a amanhar uma parcela de terra que temos ali, e dissemos-lhe para vir também. Ele respondeu que não senhor, era o que mais faltava, estava cheio de falar da Estaco, agora queria era que lhe pagassem o que lhe devem”, conta Fernando, que viu a fábrica ser construída, estava ele ainda na terceira classe. Este é o sentimento geral de muitos dos que ficaram lesados pela morte da Zona Industrial da Pedrulha.

Aquelas carcaças, abandonadas ao largo da estrada, relembram toda a gente que outrora trabalharam ali mais de seis mil pessoas. Hoje, é meio-dia, e não há quase ninguém na rua.

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01/05/2020

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Zita Bacelar Moura

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