Cultivar o próprio jardim

 Cultivar o próprio jardim

Jesse Orrico (Unsplash)

Nunca tivemos acesso a tanta informação como nos dias de hoje. As tecnologias da informação e comunicação colocam ao nosso alcance todo o tipo de dados e de conhecimento, sem que tenhamos sequer de nos levantar do sofá. Temos a ilusão de que tudo sabemos e, como a informação sempre foi poder, cremos que estamos à frente de um exército invencível, qual Alexandre Magno nos seus tempos de glória.

É claro que ter acesso a informação sempre foi e continuará a ser fundamental. É a nossa espantosa capacidade de processar informação que nos distingue de todos os outros seres vivos, mas não deixa também de ser verdade que não estamos ‘programados’ para ser inundados por enormes quantidades de informação. De facto, quando tal acontece, é frequente que o nosso cérebro erga uma cerca protetora, se feche à entrada descontrolada de informação e passemos a tomar decisões com base no mero instinto de sobrevivência, mais do que decisões racionais. Informação a mais pode ser pior do que pouca informação porque, ao deixarmos de a poder processar, a informação regressa à categoria de dados não organizados, dos quais não conseguidos extrair qualquer benefício.

Apesar disso, muitos são os que não resistem ao vício de recolher mais e mais informação, nisso se parecendo com os que sofrem do transtorno psíquico de acumulação compulsiva. Por outra parte, outros fazem-no para alardear que tudo sabem e tudo conhecem. Alguns desses aparecem, até, nas nossas televisões, como comentadores ou ‘tudólogos’, e muitos são os que se inclinam, reverentes, perante tão grande mostra de ‘sabedoria’.

Tudo isto se trata de manifestações espectáveis na nossa sociedade da informação, muitas delas sem grandes consequências para o comum dos mortais. O problema surge quando decisores e responsáveis políticos seguem a mesma linha. Pesquisa-se um assunto na ‘net’, lêem-se alguns artigos na Wikipedia e já se sabe o suficiente para tomar decisões e definir políticas. Pede-se aos assessores para elaborar as respostas a algumas perguntas frequentes (as famosas FAQ – frequently asked questions) e manda-se colocá-las no site oficial. Afinal, para quê ir mais longe na governação quando os governados já se habituaram à superficialidade da Internet?

Que fácil é ser especialista nos dias de hoje! Que fácil é tomar decisões alicerçadas no saber instantâneo que se alcança com um clique! Para quê perder tempo? Temos tudo ao nosso alcance e nada nos falta neste mundo tecnológico, dominado pela superabundância de informação. Falta-nos apenas uma pequenina coisa, quiçá a mais importante de todas: a humildade de admitir que para se ser um verdadeiro especialista é preciso estudar, experimentar, suar, falhar, tentar, falhar de novo, perseverar, e que para saber tomar decisões é preciso ter passado por isso vezes sem conta. É preciso, como disse Voltaire na sua sátira “Cândido, ou o otimismo”, cultivar o nosso próprio jardim.

09/02/2021

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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