Dactização com recurso à oralidade

 Dactização com recurso à oralidade

Créditos: Seth Doyle (Unsplash)

Percorrer o interior de Angola equivale a descobrir mistérios que no contexto europeu podem parecer triviais. É encontrar, por exemplo, cidadãos cuja data de nascimento se desconheça, sendo aquela achada em seus documentos oficiais um cálculo aproximado achado/convencionado pelo agente do serviço de identificação civil ou dos parentes mais crescidos. Não se espante, pois, se se deparar com a resposta “não sei” ao perguntar a um aldeão “quantos anos tem”?

O meu primo[1] (irmão de todos os momentos) Sabalu-a-Soba e eu sempre tivemos dúvida em relação ao ano de nascimento do outro. Ele, sete anos mais velho do que eu, pensava que fui trazido à luz em 1973. 

– Dizes coisas que aconteceram há muito tempo quando, feitas as contas, ainda não devias ter atitude racional. – Costuma afirmar, quando em meio a conversas regadas falámos sobre o passado e as memórias. 

– Não podes ter nascido em setenta e quatro, lembrando-se de coisas de setenta e cinco e setenta e seis. – Argumenta. Por outro lado, a minha mãe sempre dizia que a progenitora dele (Sabalu-a-Soba) estabelecia um largo intervalo entre um filho e outro. Sabendo eu que a irmã mais nova dele é de 1968, pois foi minha colega de escola e turma, sempre inculquei na minha mente que o mano Sabalu-a-Soba só podia ser de 1966. – Ó mano, vê ainda a diferença de idade entre o mano Kakonda e o mano Ngunza; veja também a diferença entre o mano Ngunza e você e repara agora o intervalo entre o mano Sabalu e a mana Kakulu. Um ano só? Temos de rever essas datas. – Atirei várias vezes, ao que ele não dava costas ao debate sempre regado de boa uva.

“O mano/professor teve sempre razão”. Falei para mim mesmo. Busquei, depois, por aquilo que seria o meu verdadeiro ano de nascimento. Apesar de gerados por mães iletradas, os nossos pais eram letrados e avisados. Jamais se esqueceriam do dia e mês de nascimento, mas questões académicas e militares (retardamento da chamada para o serviço militar obrigatório) podia tê-los impelido a recuar ou avançar o ano registado como o de nascimento.

Dúvidas por lá, que nunca chegamos a debater até à exaustão, e grande amizade e companheirismo que nos acompanham desde que ele me viu nascer. Já fui seu aluno, em 1984, na Escola Grande da Terra Nova, em Luanda (sala 18). Aproveitando a folga que permite o Estado de Emergência, decretado em Angola desde o dia 26 de Março de 2020, devido à pandemia da Covid-19, fui revisitando a memória e rebuscando outros nomes por que éramos chamados e que coincidem com os dias de semana em que cada um de nós nasceu. 

Ele, Sabalu-a-Soba, nasceu num sábado. Por isso é Sabalu. O sufixo “a-Soba” significa filho do Soba[2]. Fui aos calendários dos anos de 1966, 1967 procurar qual dos anos tinha o 7 de Janeiro a coincidir com o Sábado. É o de 1967. Dúvida resolvida. 

– O mano/professor teve sempre razão. – Falei para mim mesmo. Busquei, depois, por aquilo que seria o meu verdadeiro ano de nascimento. Apesar de gerados por mães iletradas, os nossos pais eram letrados e avisados. Jamais se esqueceriam do dia e mês de nascimento, mas questões académicas e militares (retardamento da chamada para o serviço militar obrigatório) podia tê-los impelido a recuar ou avançar o ano registado como o de nascimento. 

Créditos: Adrianna Van Groningen.

Ora, lembrei-me então que tenho uma prima, a Fátima Domingos, que é minha mais velha de apenas uma semana. Sempre brigávamos e brincámos até hoje sobre “quem é mais velho de quem”. Ela nasceu num Domingo, na semana anterior ao meu nascimento. Fui procurar os domingos de 1973 e não coincidiam com 18 nem 19 de Maio (pois sou de 25 de Maio). Busquei pelo ano de 1974 (que sempre defendi) e verifiquei que 25 de Maio era exactamente sábado, sendo que no domingo anterior, dia 19, nasceu a Fátima (minha mais velha de apenas uma semana). Pronto está explicado. 

Haverá muita gente ainda com data de nascimento calculada (sem que se tenha certeza do dia exacto). Felizmente, nem o mano Sabalu-a-Soba nem eu, Phande-a-Umba[3], estamos nessa situação. Quem tenha ainda dúvidas sobre o ano exacto em que nasceu pode perguntar aos progenitores ou aos mais velhos da aldeia o dia de semana em que foi trazido à luz. Com o uso do telefone ou computador consulte os calendários e desfaça eventuais enigmas. Funciona!

[1] Nas comunidades interiores de Angola, o primo é: filho da irmã do pai ou do irmão da mãe.

[2] Autoridade tradicional equivalente em regente de aldeia. O direito consuetudinário é pré-estadual.

[3] Que vem a seguir a Umba (antropónimo).

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Soberano Canhanga

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