Deambular lentamente

 Deambular lentamente

Há frases que ficam para sempre. Todos nos recordamos de uma ou outra que ouvimos ou lemos algures e que jamais esquecemos. Acompanham-nos ao longo da vida e, eventualmente, até as chegamos a usar em situações e ocasiões apropriadas à sua exibição. Como aquela de Woody Allen: “morrer é a mesma coisa que dormir, mas sem a chatice de ter de levantar para fazer xixi”.

Por vício profissional — acredito eu — nunca esqueci a frase da jornalista argentina Leila Guerriero, para quem “fazer uma entrevista é como tourear, mas sem um fim trágico”. Hemingway — por falar de touros — que não perdia Sanfermin por nada, deixou-nos um manancial rico de ideias e frases feitas: “felicidade é um rio cheio de trutas e duas entradas permanentes para a tourada”, dizia ele.

O que retemos, independentemente dos contextos, é o sentido certeiro da frase, da ideia cortante, irónica ou sarcástica. De Jean Luc-Godart uso com frequência a resposta que um dia deu em direto numa entrevista televisiva, em Cannes, quando o entrevistador, a armar-se em engraçado, lhe perguntou: — Monsieur Godart, qual foi a coisa mais bizarra que viu até agora nestes dias de Festival? — A sua gravata, respondeu o realizador, apontando e rindo da coisa colorida que o jornalista trazia ao pescoço.

A lista é infindável e daria, só por si, para um divertido livro. Porém, quando nos pomos a recordar frases que nos acompanham acabamos, fatalmente, por cair noutras lembranças, como, por exemplo, quando escutamos pela primeira vez um disco de Leonard Cohen, de José Mário Branco, de Kurt Weil, Marsalis ou Miles Davis.

De Cohen sei que foi nos primeiros dias de um maio longínquo no tempo e no calor de um outro Continente. Foi uma novidade completa e absoluta. Apreciei as harmonias, pois só mais tarde haveria de olhar com atenção e apreço para as palavras que lhe serviam de suporte melódico. Poesia diversa, intensa e densa. Creio que depois de o passar a ler tornei-me melhor ouvinte das suas cantigas. E se havia razões para isso: “os poemas já não nos amam/ não querem amar-nos/ não querem ser poemas/ não nos chamam, dizem/ já não podemos ajudá-los”.

Nunca quis nem achou, como cantaria J. Mário Branco, que “a cantiga é uma arma”, mas sem que soubesse — se calhar sabia — a sua poesia foi uma arma preciosa e insubstituível para as mais diversas estratégias de amores que se queriam correspondidos.

O mesmo direi de Chico Buarque, cujas músicas e poemas (seus ou os que cantava) caíam que nem uma luva nas situações mais críticas. Eram tempos em que a palavra tinha um poder e um valor de transação na bolsa das relações humanas bem maior que o atual. Tudo era mais lento e mais difícil e mais ingénuo.

Era um tempo, como diria Eugénio de Andrade, em que “a amizade é o amor, mas sem as complicações do sexo”. E como nós gostávamos de tudo isso, mesmo que ainda não o soubéssemos. Era um tempo em que havia tempo para o sonho, para a divagação, onde tudo era infinitamente lento e ingénuo.

Não vejam nisto algum sintoma de nostalgia ou de uma saudade mal curada. Nada disso. Tem mais que ver com aquela pergunta que um dia Milan Kundera nos escreveu: “porque terá desaparecido o prazer da lentidão? Ah, onde estão os deambuladores de outrora?”…

É isso: ir e pensar sem destino certo. Deambular pelo puro prazer — criar prazer e satisfação em cada gesto, mesmo nos que, aparentemente, não fazem sentido nem servem para nada. Apenas para deambular. Lentamente.

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João Figueira

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