Documentário e jornalismo: a crise existencial de contar estórias enquanto seres independentes

 Documentário e jornalismo: a crise existencial de contar estórias enquanto seres independentes

Fotografia cedida por JP Marcelino

Combinamos uma ligação, via Zoom, como agora manda o distanciamento social, entre Portugal e a sua casa em Toronto, no Canadá, onde trabalha. De maneira bem-disposta, PJ Marcellino, com 41 anos, falou sobre a sua experiência a pensar em estórias como jornalista e documentarista. Nascido em Lisboa, já ultrapassou fronteiras por todo o mundo para trabalhar no Mindelo (Cabo Verde), Davos (Suiça) ou Adis Abeba (Etiópia). Fez de 12 cidades sua casa, enquanto repórter fotográfico e jornalista, e mais tarde como consultor ou conselheiro político de agências internacionais como a ONU, o Departamento da Paz e Segurança da União Africana, a Organização Internacional das Migrações e a Organização de Estados das Caraíbas Orientais.

Sabe, portanto, do que fala quando, a dado momento da conversa, afirma que “a primeira baixa é sempre a verdade, nas alturas de guerra”, recordando a célebre frase do ateniense Ésquilo, e que depois dele tem sido usada por muitos estudiosos dos media e até dirigentes políticos, nos mais diversos contextos. Considera, assim, ao olhar para a complexa imprevisibilidade do mundo contemporâneo, que vivemos num oceano de contrainformação e notícias falsas, pelo que os princípios de independência e rigor são e serão, cada vez mais, vantagens competitivas. Inclusive nos documentários dos próximos anos sobre Covid-19, assunto que, em sua opinião, é ainda cedo para grandes trabalhos, mas cujo tema o interessa e sobre o qual começou já a refletir, numa perspetiva a que os académicos designam de “História Longa”. Haverá necessidade, em seu entender, de analisar “as consequências políticas, sociológicas, de segurança e a gestão de identidades” da pandemia, ao mesmo tempo que enfrenta a “crise existencial” que o tempo presente coloca ao jornalismo e ao documentário.

JP Marcelino. Créditos: Pat Kane When They Awake – 2017.

O que é que um filme documental sobre a atual pandemia de Covid-19 tem necessariamente de ter?

Tempo e paciência. Ainda não estamos na altura de fazer filmes documentais sobre isto. No entanto, já há filmes sobre a Covid-19, porque há um ímpeto para as empresas começarem a criar conteúdos sobre as coisas que nós queremos saber agora. Estamos numa altura em que o consumidor quer as coisas agora. Não é amanhã. É agora que as quer. Na Netflix, há uma série com 12 episódios chamada “Resumindo”, que faz comentários sobre como funciona o sistema monetário, entre outros temas. Fora dessa lista já existe um episódio especial sobre a Covid-19. Estamos num momento em que as qualidades monetárias de determinado conteúdo se associam com a curiosidade geral (toda a gente quer saber mais). É claro que tem havido alguma incidência em minidocumentários, mas ainda não há nenhum grande documentário, isto é, aquela longa documental de 90 minutos —que eu tenha conhecimento.

Repare: neste momento também é preciso distanciamento. É crucial. Os jornalistas, para conseguirem fazer uma avaliação correta de determinada situação, precisam de uma certa imparcialidade. Atualmente, os documentaristas não têm capacidade de se distanciarem e de se afastarem do ambiente no qual estão perfeitamente envolvidos, como toda a gente. Penso que é contraproducente, para já, haver documentários e haver peças jornalísticas de profundidade sobre as grandes consequências. Porque, atualmente, toda a gente tem opinião e todos acham que têm um conhecimento válido. Os jornalistas e os documentaristas agora estão a tomar tempo para pensar, observar, tomar notas, a criar padrões, para depois produzirem.

Como é que a formação em cinema e documentário pode ajudar na maneira de contar histórias jornalísticas?

Acho que é mais o contrário. A formação jornalística ajuda-me a contar histórias no documentário. Primeiro, penso na curiosidade jornalística, mas também no dever jornalistico. O documentário tem muitas formas e podemos ter um documentarista ativista. Portanto, no filme há uma tese e ele defende-a. Um exemplo famoso seria o Michael Moore, que é uma pessoa que tem uma postura ideológica concreta e que diz exatamente o que vai fazer e as pessoas sabem que têm de ver isso a partir de um certo ângulo. É necessário assistir com uma certa lente porque não é necessariamente verdade o que ele está a dizer, dada a perspetiva de que parte e assume ao longo do trabalho.

Enquanto que há outros realizadores que tentam manter-se imparciais. Alguém que não vem do jornalismo e que vem do filme e do cinema vai fazer um documentário partindo de um princípio completamente diferente daquele que é o meu. Eu venho do jornalismo e da ciência política, portanto sou cientista social. Aplico o método científico à forma como penso e como construo uma história. Logo, aplico ética jornalística ao meu trabalho de documentarista. A obrigação de documentaristas é colocar as pessoas no ecrã, de uma forma que não seja enganadora. O intuito não pode ser fazer ficar mal o entrevistado.

A trajetória que se faz na busca de uma história é comum entre o jornalista e o documentarista. O que vamos ter de explorar que ainda ninguém tenha contado e que vá obter o interesse do leitor? Tem de se procurar uma história que seja surpreendente e de que o público não tenha ouvido falar. 

Fotografia cedida por JP Marcelino.

Quando o ritmo da pandemia abrandar, o contexto do coronavírus vai ser incluído nas histórias dos documentários?

Eu não olharia para as histórias que vão sair nos próximos seis meses. Por vários motivos… Vai haver gente a tentar sair com histórias, imediatamente, porque têm medo de não serem os primeiros e então querem aproveitar para estrear, enquanto as pessoas ainda se lembram. O problema pode ser, e eu adivinharia isto, que quando sairmos da Covid-19 a última coisa que qualquer pessoa vai querer ver na televisão é histórias sobre a pandemia. Ainda estamos há umas oito semanas nisto e, eu próprio, já não posso com ela em programas de televisão. Nós vamos ultrapassar esta fase em que estamos nas reportagens sobre histórias do que se vive dentro da Covid-19: como vive o rico, o pobre, o condutor de camioneta, a enfermeira? Isto é lógico que tem de ser contado, mas vai haver um momento de saturação. 

Portanto, se houver uma televisão ou um financiador que diga a uma pessoa “aqui estão 100 mil euros e vá fazer um documentário”, ela vai aceitar e vai fazer o documentário. A qualidade é que será questionável. Penso que os documentários mais profundos são os que vamos ver daqui a um, dois ou três anos. Aqueles que olham para trás, para os elementos esquecidos desta crise e analisam de um ponto de vista mais macro as consequências políticas, sociológicas, de segurança e a gestão de identidades. Todas aquelas coisas que não se podem olhar (e ver) agora. Vai haver documentários sobre Covid-19 daqui a uma década. Da mesma forma como temos, agora, peças sobre o 11 de setembro. 

Fotografia cedida por JP Marcelino.

Esta situação excecional pode alterar a abordagem dos temas a tratar na produção jornalística, nos anos que se seguem? 

Há uma questão mais profunda por detrás disso. Como é que isto está a mudar o jornalismo? Está a mudar a quantidade de meios de comunicação que subsistem. Na semana passada, aqui no Canadá, fecharam 50 jornais regionais, todos da mesma empresa. Ou seja, as notícias locais que as pessoas recebiam deixam de existir. Não havendo outras opções vão à rádio local ou ao Facebook, que não são notícias. Antes de se perguntar como é que as histórias vão mudar, temos de pensar como é que os meios em que as histórias são disseminadas vão mudar. Porque quando se fecham estes pequenos meios de comunicação perdemos um ecossistema que cria diversidade de opiniões.  Quantos mais fecham, menos diversidade há. E quanto menos diversidade há, mais controlo é possível exercer através de uma participação económica por parte de um ator externo.

Outra questão é saber qual vai ser o interesse do público em continuar a ouvir histórias sobre determinadas coisas. Uma das histórias que vai ter de ser contada sobre a Covid-19 é a história política, isto é, o descalabre político na gestão da crise. Existem tantas teorias da conspiração, como a da China que foi quem criou o vírus, o que é mentira. A China escondeu-o inicialmente, é certo, mas eu diria, como cientista político, que qualquer governo do mundo tem a obrigação de saber que tudo o que vem da China tem que ser avaliado com cuidado. Todos os dados que vêm desse país têm de ser considerados com alguma cautela. Um documentário interessante vai ser sobre aquilo que é a suposta solidariedade europeia, no contexto do que se viu nas últimas semanas e cujas consequências vão ver-se daqui a dez anos, não no imediato. Pode vir a ver-se mais cedo, com a Itália a cair para um partido neofascista?… 

As histórias a que vamos assistir vão depender muito de como é que os meios de comunicação vão estar quando sairmos disto. Em segundo lugar, quantos jornalistas vão estar presentes para contá-las? Não podemos esquecer que os meios que subsistirem vão reduzir as redações e ter muito menos jornalistas.

Fotografia cedida por JP Marcelino.

Como tem tratado a informação da pandemia nos trabalhos jornalísticos que realiza como freelancer?

Eu estou a escrever para a revista “The Walrus” e fiz duas propostas. Uma de como é a vida dentro de casa – este é um artigo mais imediato – quando se partilha a vida com um profissional da área de saúde, que é uma das histórias que, creio, não está a ser bem contada. Nós falamos de estarmos presos e aborrecidos em casa, mas para aqueles que estão em casa, como o meu caso, com uma pessoa da área da saúde, a vida é completamente diferente. A experiência de vida deles é completamente diferente da nossa. Esta observação acabou por se tornar uma proposta para um ensaio de 750 palavras sobre a falácia de que esta é uma experiência global. Não é. Esta experiência exclui todas as pessoas que estão na linha da frente. Estão a viver em condições e com emoções completamente diferentes. Há muitas perspetivas que ainda estão por contar e que vão demorar tempo a chegar. 

Outra história que propus foi sobre as consequências sociológicas a longo prazo da Covid-19. Uma tese mais complicada, que ainda estou a desenvolver, e que relaciona a gestão das pandemias e o seu impacto nas sociedades humanas. No fundo, estou a defender que, depois do terremoto de 1755 em Lisboa, não vimos uma mudança sociológica tão profunda como aquela que estamos prestes a viver. Com esta história estou a ler bastante sobre o terramoto e as consequências que vieram depois, além de falar dos factos tanto da Covid-19, como do terramoto. Obviamente, se o meu argumento é que esta é a maior mudança sociológica que temos até ao momento, eu tenho de estar preparado para defender muitos momentos entre os dois eventos que alguém pode assinalar e perguntar: então e a gripe espanhola? a segunda guerra mundial?… Aqui entra a parte investigativa e de fazer o trabalho de casa. Claro que, no limite, posso concluir daqui a umas semanas que a minha tese está errada.

Que consequências podem advir para o futuro do jornalismo?

No livro “A Primeira Baixa”, de Phillip Knightley, o autor faz uma abordagem das reportagens de guerra, ao longo de 100 anos, entre a Guerra da Crimeia e a Segunda Guerra do Iraque. Aquilo que é analisado é a lente aplicada ao jornalismo de guerra e à realidade do jornalismo estar simplesmente limitado ao jornalismo fidedigno. Vai haver sempre jornalistas com agendas no cenário, que é um cenário de guerra. Portanto, durante a Guerra do Vietname como é que se pode confiar no jornalismo americano? Não vai ser um jornalismo isento.

Fotografia cedida por JP Marcelino.

O que se está a passar agora com esta crise é muito semelhante à tese de Philip Knightley. A primeira baixa é sempre a verdade, nas alturas de guerra. Dois fatores que nunca tínhamos encontrado desta forma são as fake news, a ideia de que podemos questionar tudo, quem está a ser verídico, quem é que está a ser imparcial. Mas surge um fenómeno chamado gaslighting, que é pior que as fake news, porque se questiona a realidade em si mesmo. Ou seja, é como alguém dizer que algo é preto, quando vemos com os próprios olhos que é branco, mas alguém vai repetir que é preto. O Donald Trump vai dizer que é preto brilhante e acusar de fake news quem diz que é branco. Quando as pessoas à nossa volta dizem que é preto, apesar de nós vermos que é branco, começamo-nos a sentir um pouco loucos e a questionar a sanidade mental. 

Estas duas formas estão a alterar o jornalismo. Aproveitam-se de crises para espalhar rumores, desinformação, pânico, porque isto permite controlar narrativas, histórias, políticas e economias. També por isso é que o jornalismo nunca foi tão importante como neste momento. Não foi à toa que o jornalismo foi listado como uma profissão essencial. Agora, acredito que o jornalismo vai continuar a ser vítima destes fenómenos e de forma mais influenciada.

Direi, em síntese, que o documentário e o jornalismo estão a atravessar a mesma crise existencial. Ambos enfrentam os desafios de como continuar a existir num mundo que está, cada vez mais, seccionado em fações ideológicas; de como continuar a querer contar histórias relevantes de que as pessoas nunca tenham ouvido falar; de como continuar a relatar histórias humanas e, sobretudo, fazer todas estas coisas, enquanto seres independentes. Estes, como digo, são os grandes desafios.

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Paulo Cardoso

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