É a economia, estúpido!!!

 É a economia, estúpido!!!

Com o abrandamento das notícias sobre a COVID-19 começam a aparecer outros temas que a actividade política vem colocando em cima da mesa da discussão no café. Agora que já se desconfina, só a juventude de alguns os pode fazer ignorar quantos problemas nacionais e revoluções foram sendo “resolvidos” nas cavaqueiras à mesa do café, às vezes com elevação de voz mas nunca chegando à violência física pois o povo é sereno e amigos são sempre amigos.

Este arrazoado introdutório vem a propósito de uma notícia que tem feito eco nos media sobre um dito desaguisado entre o Ministro do Ensino Superior e o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas veiculando posições das Direcções das respectivas Faculdade de Medicina.

O âmago do conflito será que o Ministro quer mais vagas para formar Médicos e as Faculdades dizem não alegando, entre outros factores, a falta de condições logísticas.

Esta é uma discussão antiga e a formação que reveste, das habituais dicotomias de discussão com uns a favor e outros contra, qual Benfica-Sporting, ou para sermos mais actuais qual Porto-Benfica, também não tem nada de novo.

Resumir o assunto a uma simples questão fechada é olhar para a árvore. Mas onde está a floresta?

Vejamos a principal questão prévia, sem a qual não podemos sequer iniciar a discussão. Há ou não falta de Médicos.

Como nota introdutória, convém relembrar ou informar sobre o passado privilegiando o passado factual. Deixemos por agora o da História escrita pelos vencedores, outro tema actual que obviamente deixo para os mais interessados, não obstante eu ter, com certeza, a minha própria opinião fruto de vivências, leituras, estudos e muitas e vivas discussões.

Ocorre-me o exemplo da estátua de Churchill, por estes dias, no Reino Unido. Põe-se em causa o papel de Churchill, com enorme superficialidade e a sua estátua sofre. Se as opiniões se baseassem mais no conhecimento factual, os argumentos seriam certamente diferentes, quer acabassem a defender a sua destruição, quer a sua colocação num altar. Um outro exemplo vem da Medicina. Ainda há poucos anos se iniciou um movimento (fruto do poder do clã Kennedy e por causa dum “tratamento” infligido a um dos seus membros por um “negociante” da medicina) visando retirar o Prémio Nóbel ao nosso Egas Moniz, com o desconhecimento dos factos a turvar a seriedade dos argumentos.

As carreiras, bem geridas pelo Poder Central, e com uma visão adequada das necessidades e do planeamento em saúde foram e deveriam continuar a ser uma boa solução para a pergunta “para que queremos os médicos?”

Durante o chamado Estado Novo coube a um grupo de médicos elaborar um Relatório sobre as Carreiras Médicas, cuja leitura aconselho aos mais interessados, onde para além das Carreiras se esboçava um Serviço Nacional de Saúde. O desenvolvimento dessas Carreiras ganhou, já depois de Abril, o seu substrato com o DL n.º 310/82 e o DL n.º 73/90. Neste último, e em condições políticas adversas, com Cavaco Silva Primeiro-Ministro e Leonor Beleza Ministra da Saúde, pasme-se!,  está lá, preto no branco, que o regime de trabalho normal dos médicos no SNS é em dedicação exclusiva, sendo esta obrigatória para os futuros Directores de Serviço (sendo esta última imediatamente revogada pelo ministro que se seguiu, aquele que agora anda a prestar contas à Justiça por causa do BPN).

O problema é que só se sabe que há falta de médicos se se souber para o que se quer os médicos.

Toda a estrutura das Carreiras, as inúmeras avaliações exigidas, a responsabilização de equipas e suas hierarquias, e o quanto definiram a função e o papel dos médicos, foram alvo de inveja em todas as reuniões internacionais de Ordens em que participei. Nomeadamente por tornarem desnecessária uma avaliação periódica das condições para exercer medicina (Recertificação) feita pelo poder, como se passa no Reino Unido e com o seu Medical Research Council e em tantos outros países. Assim, ainda hoje, para exercer Medicina em Portugal basta estar-se inscrito na Ordem dos Médicos, uma vez que a definição das Carreiras, dentro do quadro do SNS garantia qualidade dos profissionais.

Numa situação em que os milhões vão com fartura para a banca (privada) como poderá o Estado português dar a resposta adequada, se se concluir que faltam médicos?

As carreiras, bem geridas pelo Poder Central, e com uma visão adequada das necessidades e do planeamento em Saúde foram e deveriam continuar a ser uma boa solução para a pergunta “para que queremos os médicos?”, reforçando o papel do Serviço Nacional de Saúde plasmado na Constituição da República Portuguesa.

Mas… “Melhor negócio que a saúde só o das armas” e de acordo com estes pensadores entram em cena a Economia e o dito Neoliberalismo.

Então, houve que mudar. Mudaram-se os locais de formação,  alterou-se a  gestão hospitalar (S.A., E.P.E., Centros Hospitalares, etc.) e foram-se introduzindo factores de perversão, papagueando sempre que tudo isto é para uma economia e melhor gestão dos meios. Que, realmente, não são infinitos, sobretudo com o sub-financiamento da Saúde com o O.E. e com o desvio duma grande parcela desse financiamento para o sector privado, o tal que tem como objectivo o Lucro. Reduz-se o número de camas, vão-se congelando concursos, introduz-se o Contrato Individual de Trabalho, e chegou-se ao ponto de se criarem os chamados Médicos Indiferenciados, isto é, os que não têm uma especialidade, que irão ser alvo dos humores do Deus Mercado.

Muito poderíamos desenvolver sobre os temas acima enunciados, mas, basicamente importa que, tudo isto foi obra do Poder Político, leia-se Centrão, e essa é a ameaça que continua omnipresente sobre o Serviço Nacional de Saúde.

Podemos agora voltar à pergunta se há falta de Médicos que justique um maior número de vagas nas Faculdades de Medicina.

Precisamos, sim, de mais médicos de Saúde Pública, longe do conceito dos médicos dos “croquetes e das retretes”, e mais perto dos que souberam, à custa do seu esforço e dedicação, enfrentar uma pandemia de características desconhecidas

Um liberal dirá que todos devem ter a possibilidade de poderem ser médicos, “apagando” o aumento das desigualdades que grassa pelo Mundo. É aí que se coloca a questão de quem paga a formação. E aqui as coisas começam a complicar-se. A formação médica é cara. Numa situação em que os milhões vão com fartura para a Banca (privada) como poderá o Estado português dar a resposta adequada, se se concluir que faltam médicos? Aumentando as propinas tal como no exemplo paradigmático dos USA em que a Banca (outra área de negócio) vai ganhar novos clientes e ganhar chorudos juros?

O que parece absolutamente claro é que não precisamos de mais médicos indiferenciados. Mais médicos indiferenciados para quê? Para outros países os utilizarem ganhando por não ter investido e pago a sua formação? Para aumentar a procura de médicos não nacionais em busca de melhores salários de que nos seus países? Para aumentar o mercado com todas as implicações implícitas, nomeadamente as regras da oferta e da procura e do seu reflexo salarial?

Decididamente não.

Precisamos, sim, de médicos especialistas e que as estruturas do SNS sejam reforçadas, de modo a constituírem locais de boa formação médica, a haver bons e suficientes  formadores (veja-se a idade média dos médicos ao serviço e as aposentações),  pagando remunerações adequadas aos médicos em dedicação exclusiva, e encarando, finalmente de frente, um problema que se vem arrastando e que é o da separação do Público e do Privado.

Precisamos, sim, que sejam dadas condições para que todos os portugueses tenham um médico de família, especialista em Medicina Geral e Familiar, e que estes tenham as adequadas condições de trabalho que permitam que os utentes os considerem mesmo os seus Médicos.

Precisamos, sim, de mais médicos de Saúde Pública, longe do conceito dos médicos dos “croquetes e das retretes”, e mais perto dos que souberam, à custa do seu esforço e dedicação, enfrentar uma Pandemia de características desconhecidas.

Precisamos, sim, aprendendo com a presente crise pandémica, de investir e muito no SNS, que precisa para além de boas palavras, mais reformas e investimento.

E esse investimento implica recursos humanos, dos quais muitos médicos, sem dúvida e terá obrigatoriamente que se reflectir nos níveis salariais.

O Conselho de Reitores representa directores de Faculdades que, privilegiariam a abertura de vagas para alunos estrangeiros em detrimento dos nacionais. A ser verdade essa afirmação cá está outro problema estrutural a necessitar de resposta política adequada: a autonomia e o financiamento das universidades

É no mínimo caricato e diria quase que ofensivo que, enquanto outros países (França e Alemanha) decidiram premiar pecuniarmente os médicos envolvidos na luta contra a pandemia, o primeiro responsável pela política do país considere como Prémio a realização em Portugal duma final da indústria futeboleira, que tem primado pelos casos de corrupção.

Falta referir o outro lado da polémica. O Conselho de Reitores representa Directores de Faculdades que, privilegiariam a abertura de vagas para alunos estrangeiros em detrimento dos nacionais. A ser verdade essa afirmação cá está outro problema estrutural a necessitar de resposta política adequada: A Autonomia e o Financiamento das Universidades.

Mas basta pensar na diferença do valor das propinas pagas por uns e por outros e na perturbação que Bolonha veio introduzir no financiamento das Universidades, com os Mestrados e os Doutoramentos, para perceber a possível veracidade da afirmação.

O lucro também aqui veio ganhar um campo de interesses.

E fica assim respondida a questão fundamental. São precisos mais médicos especialistas bem formados, nos Cuidados de Saúde Hospitalares, nos Cuidados de Saúde Primários e na Saúde Pública, para podermos preservar o Serviço Nacional de Saúde de excelência, que sendo a maior conquista da Democracia Portuguesa, deve perspectivar o futuro.

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Fernando Gomes

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