Elogio da imperfeição

 Elogio da imperfeição

Créditos: Tobias Verwoert (Unsplash)

Em tempos não muito remotos, quando as atividades económicas se baseavam essencialmente em bens físicos, um remendo era algo que escondia um defeito ou falha e, portanto, denotava degradação. No entanto, à medida que os produtos e serviços passaram a ser mais intangíveis, como acontece na nossa sociedade, fortemente alicerçada em tecnologias da informação e comunicação (TIC), a conotação de remendo perdeu o seu caráter depreciativo, tendo os remendos passado a ser expectáveis e, até, desejáveis.

Há pouco mais de duas décadas, um problema de software era resolvido com um remendo (um software patch) e era algo que só ocorria em situações excecionais, reconhecidas a contragosto pelo fabricante. A questão é que nessa altura ainda se tentava desenvolver e pôr no mercado produtos acabados, supostamente testados até ao limite como forma de garantir a sua robustez. Hoje tudo mudou, incluindo o próprio nome ‘remendo’, raramente usado, agora substituído pelo termo upgrade ou nova versão. Quando adquirimos um produto estamos, de facto, a adquirir algo que não está acabado, mas sim em desenvolvimento, potencialmente com bastantes defeitos. Uma boa parte do que pagamos não diz respeito ao produto em si, mas ao desenvolvimento futuro e à resolução desses ‘defeitos’.

Tudo isto decorre de dois fatores essenciais: complexidade dos sistemas e dinamismo do mercado. À medida que os sistemas se tornaram mais complexos, deixou de ser viável desenvolver e testar produtos ‘acabados’ em tempo útil. Em alternativa, desenvolvem-se produtos com as funções nucleares, razoavelmente testados, colocados no mercado tão cedo quanto possível, para gerar receitas. Por outro lado, os requisitos e necessidades dos utilizadores são cada vez mais dinâmicos. Não faz, portanto, sentido investir no desenvolvimento de funcionalidade que deixará de ser necessária a curto-médio prazo. Os princípios atrás apresentados estão na base das chamadas metodologias ágeis de desenvolvimento de projetos (de software).

Persistem, no entanto, muitas áreas para as quais o desenvolvimento de sistemas tem que se reger por critérios de fiabilidade e robustez, e nunca pela rápida construção da solução. É assim em todos os sistemas críticos, como muitos sistemas industriais, sistemas de controlo de aeronaves, sistemas de produção de energia e, em geral, qualquer sistema que exija elevada fiabilidade e disponibilidade.

Com a exceção dos sistemas críticos, o “imediatismo” é, em regra, visto com bons olhos quer por parte dos desenvolvedores quer por parte dos consumidores, pois gera constantes necessidades e novidade, que são, desde tempos imemoriais, a ‘alma do negócio’. Esta filosofia estende-se, por isso, a muitas outras áreas, muito para além do desenvolvimento de software. É assim, por exemplo, na moda, onde o remendo e o imperfeito se tornaram apetecíveis e, até, indispensáveis. Afinal, também nós somos ‘produtos’ em permanente construção e evolução, cheios de maravilhosas imperfeições. É isso que nos faz humanos.

05/08/2020

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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