Este texto (ainda) não foi escrito por uma máquina

 Este texto (ainda) não foi escrito por uma máquina

Para alguém que escreve, uma página em branco é assustadora. Uma página limpa é um mundo de possibilidades, de escolhas infinitas — apenas limitadas pela imaginação do autor — que vão diminuindo pouco a pouco até, no final, sobrarem apenas umas quantas palavras e pontuação. Cada mês que escrevo neste espaço pode sair uma coisa diferente. Aliás, o mesmo tema sairia diferente cada vez que eu escrevesse sobre isso. E é por isso que escrever dá medo. Após secar a tinta, o que está feito, feito está; as possibilidades fecham-se e ficamos sempre na dúvida se escolhemos o caminho certo.

Ultrapassar este medo e encher a página tem a sua recompensa. O que escrevemos é nosso, algo que criámos do nada e isto é verdade não só para quem está no papel de cronista, escritor ou divagador, mas também para qualquer pessoa que escreva qualquer coisa. E quem não escreve hoje em dia? Mensagens de texto, chats, publicações, e-mails… De certeza que nunca se escreveu tanto no mundo e ainda bem porque escrever é uma arte exclusiva do ser humano. Ou será que isso já não é bem verdade?

Como qualquer pessoa gosto de pensar que sou único, portanto, o que sai do meu teclado é especial, uma criação minha, a realização da minha expressão. Foi a acreditar nisto que passei meses (anos?) a escrever e-mails de trabalho sem notar que, afinal, nem o conteúdo era muito original, nem os correios eletrónicos eram totalmente da minha autoria.

Começou de maneira inocente. No início, o e-mail limitava-se a sugerir respostas rápidas: “Sim”, “Obrigado”, “De acordo”. Coisa normal para alguém educado pelos corretores automáticos desta vida. Claro que a tecnologia não parou por aí. Agora, o e-mail não se limita a propor respostas predefinidas mas também tenta adivinhar a minha próxima palavra! Somos todos especiais, mas, afinal, especiais de maneira parecida, e a tecnologia está perto de antecipar os nossos pensamentos.

A automatização sempre deu medo às pessoas — já no início do século XIX os ludistas atacavam a maquinaria têxtil central na revolução industrial — mas a verdade é que é complicado imaginar máquinas capazes de substituir os nossos próprios pensamentos. E a questão não se fica pelos pensamentos porque as pessoas, operando num sistema que define o lucro sempre de maneira material, tentam aproveitar a tecnologia para controlar até o mundo dos sentimentos.

Uma amiga conta-me que, no trabalho dela, um chefe visionário decidiu implementar uma solução para evitar a perda de tempo que é desejar um feliz aniversário aos companheiros de trabalho. Uma aplicação recebe os dados dos empregados e, sempre que chega um dia de anos, envia uma mensagem ao aniversariante. Imaginem, num dia especial, chegar ao trabalho e a única felicitação permitida é um e-mail seco em nome de toda a empresa. A automatização traz um monte de vantagens, em todos os campos, mas a eficiência não é tudo.

A eficiência derivada da automatização devia apoiar um mundo que dê espaço às pessoas para explorar os seus sentimentos, descobrir e viver uma vida com um significado mais profundo. Infelizmente, a tecnologia é utilizada mais para controlar e, acima de tudo, vender.

No meio de tudo isto, há um conceito que me assusta e fascina: a “singularidade”. A singularidade será o momento em que a inteligência artificial ultrapassará a capacidade humana e conseguirá entender o universo e os humanos de uma maneira que para nós é impensável. Esta superinteligência pode criar um algoritmo que nos conhece melhor que nós mesmos. A base já existe — toda a publicidade de que somos alvos nas redes sociais — mas este mega algoritmo poderia saber tudo sobre nós no momento em que nascemos, ajustando à medida que vamos crescendo.

Ou seja, e esta é a parte que dá medo, é possível que no futuro saibamos tudo o que uma pessoa vai ser e gostar. Seguir os conselhos do algoritmo pessoal levará a pessoa pelo melhor caminho. Claro que a questão é quem é que define o melhor caminho? E os seres humanos serão deterministas que podem levar a vida do ponto A ao ponto B e ser felizes?

Contudo, esta é a parte que me intriga, e se o algoritmo funciona bem? Se definir também o que é sucesso, o que é felicidade de acordo com cada pessoa? Não estaria nada mal ter um conselheiro por toda a vida a ajudar-nos a tomar as decisões corretas e a evitar passos mal dados.

De uma coisa tenho a certeza: os humanos nunca vão conseguir escapar dos seus próprios sentimentos. Por isso, fico contente que nenhuma máquina tenha escrito esta crónica por mim, afinal de contas é ao conquistar os nossos medos que evoluímos. Vamos ver o que acontece no próximo.

07/07/2021

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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