Janelar, plano sequência

 Janelar, plano sequência

O primeiro plano sequência que filmei foi num sonho.

Começava com o enquadramento de uma janela aberta, com cortinas translúcidas que pareciam rastos de nuvens em slow motion. Era uma dança hipnotizante, tal qual uma espiral infinita que rodopia sobre si. Por momentos, o olhar detinha-se nessa cadência de uma brisa em gerúndio: mansa e lenta. 

Depois, ao vigésimo terceiro drapejar do tecido fino sobre o afago da aragem, a câmara-corpo movia-se e emancipava-se, saindo pela janela, como se fosse no dorso de um andorinhão preto, elevando-se para o céu, até planar, preparada para voar indefinidamente. Já do alto, com o vento como banda sonora em ruído branco, o ponto de vista subjetivo vislumbrava a terra lá em baixo. Ela aparecia revestida de verde, pontuada de pequenos ipês-amarelos e cursos de água intrincados em extensões ora imensas, ora diminutas, como se fossem veias abertas no solo. O plano seguia contemplativo, diáfano e devotamente fleumático, planando nas correntes ascendentes de ar quente. 

Não saberei precisar quanto tempo terei ficado nesse filme mental, com transmissão direta pelo cérebro, no mundo onírico e endógeno das singularidades da psique humana. O que sou capaz de evocar resume-se à lembrança fragmentada de um episódio que não estou certa se terá, realmente, ocorrido como narrei. A verdade individual é um puzzle feito de peças emprestadas, moldadas ao tempo e ao contexto dos humores. Mas a natureza contemplativa dessa sequência inconsciente é-me útil, como analogia, para vos falar do verdadeiro grande plano sequência e seus mentores. Isso porque essa primeira sequência ininterrupta que partilhei, é irmã-gémea – embora opostamente consciente-, de outra forma contínua de o cérebro observar. 

Senhoras e senhores, eis que vos apresento o mais nobre e douto passatempo: o janelar. 

Sempre me intrigaram as pessoas que passam horas com os cotovelos debruçados no parapeito das janelas, a ver a vida alheia a acontecer. Janelando, observam ações irrepetíveis da condição humana, ou desumana. 

Posso assegurar que há, pelo menos, cinco pessoas, um gato e um papagaio, na cidade do Porto, que desconheço pessoalmente, mas que atesto serem assíduos na arte de janelar. São: a dona dos vasos de sardinheiras cor-de-rosa e vermelhas do prédio bordô da esquina; o homem careca da cara de elefante e robe carmim; a velhinha corcunda de cabelo lilás da casa verde; a madame de óculos escuros e batom vermelho do prédio de azulejos; o cavalheiro de máscara cirúrgica; o persa cinzento da janela de zinco; e o papagaio da ilha do galo-preto, na rua de São Vítor. Marcam o ponto, faça sol ou intempérie. Haja futebol, ou telenovela. Seja noite, ou manhã cedo. Com pandemia, ou sem pandemia. Já pensei na probabilidade da coincidência, claro. Encontro-os, sempre, nessa arte exaustiva de serem “observadores-privilegiados-da-vida-dos-outros-os-quais-não-sabem-que-estão-a-ser- observados”. É impossível que não façam uma pausa. 

Analisei minuciosamente os horários, mas a minha passagem dá-se sempre a horas distintas, visto que apurei a técnica do despiste, pois nunca se sabe se estarei a ser seguida. Gabo-lhes as inúmeras observações e as ilações, quais Jeffs de A Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock. Certamente já resolveram crimes. Decerto motivaram reconciliações conjugais. E até descobriram o segredo dos amantes.

Durante anos, fui aprendiz da nobre arte de janelar. Não se pense que é para qualquer humano, ou animal. Precisei de alguns anos até ter de me render, também, à fatigante atividade de pousar os cotovelos nos peitoris, para me dedicar – como novata, claro – a esse grande plano sequência da vida. Se bem que houve uma vez, sentada na esquina de um boteco, no centro de São Paulo, com cadeiras e mesa corrida voltada para a rua, em que, durante uma hora, pude contar sete mil e cinco pessoas que passaram na calçada, naquele intervalo de tempo. Era já um sinal de vocação que ignorei, certamente.

Confinada, ora de forma auto imposta, ora quasi-voluntariamente para tempos de escrita monástica, considerei que estava na hora de experimentar. Dediquei alguns momentos, durante quatro dias seguidos, à arte do cinema mental direto. Depois das caminhadas cedo-matutinas, achei que poderia ser uma forma de nutrir o cérebro e praticar a arte de reparar. 

Do caderno de notas mentais, eis algumas das atividades que reparei: 

  • a mulher do rés-do-chão da casa em frente limpa as janelas, os caixilhos, a maçaneta, as reentrâncias de ferro, o degrau e varre o passeio, todos os dias, antes das oito da manhã , às 16h16 e depois das 19h, de luvas azuis (acho tudo muito suspeito!); 
  • a senhora de cabelo amarelo-branco, dona da varanda com dois guarda-sóis, tem uma cadela chamada Pipoca, que passeia, diariamente, do outro lado da rua, às nove, às quinze e às seis horas (o que me leva a pensar se não será mais a cadela que a passeia a ela e se não será por isso, também, que a mulher do rês-do-chão apruma o asseio)
  • a rapariga que geria a loja alugada de tatuagens recebia, dia-sim-dia-não, um homem de aspeto duvidoso que fazia um barulho infernal com a moto sempre que chegava (o que pode explicar o facto de a loja ter fechado anteontem e que seja, desde hoje de manhã, um alfarrabista improvisado pelo marido da principal proprietária da loja, que é minha vizinha e que já foi polícia);
  • o senhor Joaquim, o qual adorava contar-me histórias do tempo em que ia a pé do Porto, aos domingos, para namorar uma moça de Labruge que o enchia de esperança, não voltou a abrir o café desde o início do confinamento (não tenho qualquer pista sobre este desaparecimento, talvez a minha vizinha, ex-autoridade, saiba);
  • Em média, passam dez camiões, por hora, numa rua pequena como esta, em paralelepípedos, no centro da cidade (o ruído está a níveis intoleráveis e já comecei a trabalhar de tampões de ouvidos, ou posso sempre fazer como o senhor Joaquim e dar de frosques);
  • As formigas voltaram ao ataque no prédio: contei 78 insetos himenópteros da família dos Formicídeos (creio que depois do limão que espremi no caminho delas não se atreverão a voltar, a não ser que tenham aproveitado e feito uma limonada: com este calor nunca se sabe);
  • Passaram ontem, ao início da tarde, no espaço de 15 minutos, do outro lado do passeio, 16 pessoas sem máscara social (Não há nada a temer, a mulher do rés-do-chão ao final do dia, trata do assuntoSe calhar foi ela que erradicou as formigas!). 

Conforme se vê, em pequenas observações contínuas, das quais extraio apenas uma amostra, temos planos sequências irrepetíveis, passíveis de infindáveis camadas de interpretação e subtis mistérios. Creio que amanhã farei uma pausa na atividade e por tempo indefinido. Esta arte consciente de janelar é só para cotovelos calejados. Observar a vida dos outros, parece-me significativamente fatigante.

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Vanessa Rodrigues

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