José Reis: “O nosso principal problema é a fragilização das cidades médias, não é o interior”

 José Reis: “O nosso principal problema é a fragilização das cidades médias, não é o interior”

José Reis, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

José Reis, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, está convencido que “o risco de sairmos mais vulneráveis” da atual pandemia “é grande, porque, nas crises, os pobres não estão na mesma situação que os ricos. E se isto é verdade entre pessoas, também o é entre países. E por isso — sustenta — esse risco existe porque o pior cenário, passada a pandemia, é o chamado regresso ao normal, que já não existe e que a existir será frágil”. Daí defender, no seu mais recente livro, a noção de uma “economia política do cuidado”, porque há que olhar para os povos e para as relações entre países de uma forma outra, com um olhar novo, se se quiser. Nesse sentido, vai declarar mais à frente que “o meu empenho é em nós criarmos outra economia política”, em Portugal, onde “o principal problema é a fragilização das cidades médias” e não, como dirá a certa altura, “o interior”, enquanto região ou localização geográfica.

Na ressaca da primeira fase da pandemia publicou Cuidar de Portugal. Hipóteses de economia política em tempos convulsos, a sua mais recente obra, onde reflete sobre o país e as suas assimetrias e vulnerabilidades, propondo uma discussão em torno do conceito de território, porque em seu entender o debate entre as velhas e gastas noções litoral-interior está longe de enfrentar e resolver os reais problemas que, como comunidade, Portugal sente e vive há muito tempo.  

O pensamento que vem desenvolvendo e publicando, em Portugal e no estrangeiro, não é apenas feito de saber académico. José Reis foi presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Centro (CCDRC – 1996-1999), foi secretário de estado do Ensino Superior (1999-2001) e, em 2018, foi Directeur d´Études Associés de la Maison des Sciences de l´Homme, em Paris, entre outros cargos desempenhados.

Na demorada conversa que teve com sinalAberto, o professor — conhecido também pela sua intervenção cívica e empenhada cidadania —, regressa a algumas ideias que vem defendendo, mas sem perder de vista o horizonte do futuro, para o tornar socialmente mais justo e sustentável, que é para isso que a Economia também serve. É nesse contexto que o vamos ouvir dizer que “o que faz o território é a economia”, e que “os problemas das regiões não se resolvem dando dinheiro ou descentralizando alguns serviços, mas sim estabelecendo uma economia nessas zonas. Donde — alerta — o modo como se executam as políticas públicas é essencial”. Vale a pena irmos aos detalhes.

sinalAberto — A pandemia obriga-nos a falar à distância, uma entrevista via Zoom. Como está a lidar com esta nova vida quase toda virtual, passada diante de um computador?

José Reis — Já trabalhava muito em casa e por isso esta situação de estar aqui diante do computador não é inteiramente nova, embora reconheça que há uma enorme diferença quando, pelas razões conhecidas, temos de estar agora circunscritos a este ambiente digital. Enfim, direi que me tenho organizado bem, mas com a noção de que vivemos uma situação nova.


sA — Hoje, quando se fala em pandemia, está a pensar-se em economia. Algumas das ideias que explora no seu recente livro ressentem-se deste fenómeno?

JR — Sim, claro. A primeira coisa que a pandemia traz, além do espanto, é algo que o capitalismo não conhece nem nenhuma economia conhece: a paragem, o confinamento. A partir daqui temos todo um patamar de diferenças, porque antes dos mercados estão as interações pessoais. E esta é a primeira mudança. Depois, existe também a ideia de que não estávamos habituados a perceber as vulnerabilidades e dependências. E este ponto de termos uma noção clara acerca disso, muda tudo. Estávamos habituados a que tudo tivesse solução.


sA — Para que serve a Economia num mundo marcado pela incerteza?

JR — Deve servir para aquilo que ela é. Antes de mais: o que é a Economia? podemos dizer que é um sistema de criação de valor e de provisão de bem-estar e, pelo meio, de criação de emprego. A Economia deve servir para assegurar a provisão de uma comunidade — de uma cidade, era assim na época medieval, mas pode ser de uma cidade, país ou região. A economia deve servir para isto. Ora, hoje nós revalorizamos esta noção de economia; ela deve ser entendida enquanto sistema de produção e de provisão.

“A primeira coisa que a pandemia traz, além do espanto, é algo que o capitalismo não conhece nem nenhuma economia conhece: a paragem, o confinamento”. (Fotografia de Hugo Alexandre Cruz)

sA — Esta ideia conduz-nos ao seu mais recente livro, o qual, à primeira vista, parece mais uma obra política que económica. É abusivo dizer isto?

JR — Eu gostava que fosse uma obra de economia política. Mas aceito perfeitamente essa sua leitura. Porque este livrito resultou de um impulso muito claro, o impulso de intervir nesse tal momento de espanto, de surpresa, de todas as interrogações, mas sugerindo uma resposta, ou seja, uma mudança radical. Quando falo de uma economia política do cuidado é a isso que me refiro. Portanto, este é um livro de intervenção política, mas de um economista.  Daí ter usado, prudentemente, como subtítulo, a designação “hipóteses de economia política”.  Apesar de intervir muito no espaço público, não tenho propriamente impulsos opinativos — aqui neste livro tive. Nesse sentido, é com certeza um livro com intuito de intervenção política, acrescentaria, de economia política.

A mais recente obra de José Reis.

sA — Estou a pensar no capítulo dois, quando fala nas “vulnerabilidades de um país frágil”, referindo-se a Portugal. Vamos sair ainda mais fragilizados e dependentes desta pandemia?

JR — O risco é: sim. Embora entenda que há um campo de discussão para que assim não seja. Devo dizer, a este respeito, que não gosto da expressão “crises como oportunidade” porque elas são sempre dolorosas. A linguagem é um grande instrumento e por isso não gosto de usar essa expressão. Prefiro outra ideia avançada pelo meu colega Boaventura de Sousa Santos, quando, a propósito da austeridade, ele afirmava que o debate sobre as crises se ganha no diagnóstico, na definição. Isto é, em quem tem o poder para estabelecer o diagnóstico. Creio que ele tem razão e que é verdade o que afirma, pelo que se é importante fazer um bom diagnóstico, isso significa que ele deve conter as suas próprias alternativas.  Contudo, como eu dizia, o risco de sairmos mais vulneráveis é grande, porque, nas crises, os pobres não estão na mesma situação que os ricos. E se isto é verdade entre pessoas, também o é entre países. E por isso esse risco existe porque o pior cenário, passada a pandemia, é o chamado regresso ao normal, que já não existe e que a existir será frágil. O meu empenho é em nós criarmos outra economia política, em Portugal.

sA — Já vou pedir que desenvolva essa ideia. Antes disso, diga-me: essa fragilidade que refere vai aumentar ainda mais as desigualdades que o país já tem?

JR — As desigualdades vão provavelmente ser maiores. Nem sempre isso sucede com as crises. Lembra-se por certo do exemplo recentemente lembrado do Reino Unido, na II Guerra, em que foi possível, como havia um sistema de proteção generalizado, eliminar o pico de baixo da desigualdade entre a população. Em Portugal isso não se passou. Em todo o caso, há que fazer justiça ao último Orçamento de Estado, que prevê medidas de apoio às famílias, ao emprego e às empresas. Quer dizer que são as necessárias? — certamente que não. Sabe-se, até, que não estão a ser colocados em prática todos os recursos disponíveis. Logo, as probabilidades de que as desigualdades aumentem são grandes.  


sA — Vê aí uma brecha para a extrema-direita explorar?

JR — Sem dúvida. A extrema direita, como sabemos da História, explora uma coisa básica: a oportunidade que é dada por nós, quando deixamos gente desapossada, desamparada, excluída. Esse é o ponto. Mesmo que haja outras variáveis, as razões são essas.

sA — Voltemos à sua ideia de há pouco, quando defendia a aplicação de uma outra economia política.O que é que deve ser feito de diferente?

JR — Considero que temos uma possibilidade de formular um caderno de encargos capaz de tornar o país menos frágil e vulnerável. Repare: a seguir à austeridade iniciamos uma trajetória de recuperação, mas não tratamos da indústria, desde logo. E mal a austeridade aliviou, as nossas importações voltaram a subir, porque temos dependências. Ao mesmo tempo, mantivemos a balança comercial de exportações equilibrada por via do turismo. Porém, se olharmos com atenção, esse equilíbrio é mais aparente que real, pela simples razão de que a nossa balança comercial é composta por bens e serviços, e a balança de bens é deficitária em quase oito por cento do PIB.

“Temos de pôr em cima da mesa uma outra economia política que seja capaz de quebrar estas fragilidades. Há muito que venho defendendo isto — com gente que me ouve e apoia, outra que discorda. Em todo o caso, onde se define um debate e até uma política é nos conceitos”.


sA — E a causa desse desequilíbrio deve-se…

JR — Ao facto de não cuidarmos do nosso setor industrial. Um exemplo: a Auto Europa — refiro-a por ser em regra a empresa mais citada neste domínio — exporta um valor assinalável e é verdade; mas tanto no caso dela como em outros, por cada euro de exportação, 60 cêntimos foram importados, o que corresponde, grosso modo, a apenas 40% de valor acrescentado. A aposta na industrialização deve quebrar esta dependência.

Lembra-se, certamente, como era a geografia económica do país, há uns pares de anos: havia o Vale do Ave, Águeda, Marinha Grande, etc; hoje, os nossos territórios industrializados estão fragilizados, logo, perdem população. No seculo XXI apenas a área metropolitana de Lisboa aumentou em população. Ora, o sistema de produção que é a economia portuguesa, está bastante fragilizado.


sA — Ao sistema produtivo, que tem estado muito presente no seu discurso, acaba de juntar a noção de território.

JR — Porque entendo que são as duas vulnerabilidades que temos: o sistema produtivo e o território. Temos de pôr em cima da mesa uma outra economia política que seja capaz de quebrar estas fragilidades. Há muito que venho defendendo isto — com gente que me ouve e apoia, outra que discorda. Em todo o caso, onde se define um debate e até uma política é nos conceitos.


sA — Por falar em reindustrialização: o que pensa do Plano do Dr. Costa e Silva, que tanto fala sobre isso?

JR — É verdade que ele introduziu esse tema no debate. Contudo, o grande problema do Plano Costa e Silva é concetual. Ele continua a pensar que a economia portuguesa é uma plataforma onde passam as coisas a voar e onde se estabelecem relações. Eu mesmo tive oportunidade de lhe dizer o seguinte: “a sua noção sobre a economia portuguesa é de uma economia de plataforma; tem de entender o território e os sistemas produtivos”. Porque na cabeça dele está a globalização e as cadeias de valor globais. Portanto, temos de ganhar as ideias para termos também as tais vulnerabilidades entendidas por todos nós.


sA — Curiosamente, o Plano do Dr. Costa e Silva foi bastante criticado pelos partidos da direita. Qual a sua opinião sobre isso?

JR — Nos últimos anos a direita foi completamente colonizada pelas ideias ultra-liberais de que o mercado resolve tudo. O Plano é um documento importante e apresenta uma reflexão interessante sobre a reindustrialização, sem prejuízo de o tema e o modo como é pensado merecer discussão.

“A nossa balança comercial é composta por bens e serviços, e a balança de bens é deficitária em quase oito por cento do PIB”.

sA —  “Cuidar de Portugal”: além de ser o título do seu livro surge aqui como ideia para a necessidade de introdução de um programa de  políticas económicas diferentes, no combate às assimetrias e desigualdades.

JR — A principal prioridade que deveríamos escolher seria uma política económica que tivesse no topo das suas prioridades superar as dependências mais graves do país face ao exterior. Quais são elas? O défice de bens; uma dependência muito forte relativamente a setores que nunca foram criadores de valor nem de emprego estável (o que significa que se deve discutir a especialização em torno do turismo); e olhar com muita atenção para a nossa grande dependência, que é o emprego. Se formos analisar os dados recentes da emigração ficamos estupefactos. Temos vários anos durante a última década, nos quais o INE regista 100 mil emigrantes por ano; dir-se-ia, visto assim, que teríamos uma cidade como Coimbra a ficar vazia todos os anos. Mas não é assim, porque a estatística divide-se em emigração definitiva e temporária. Portanto, muitos dos que saem regressam passado algum tempo. Isto significa que temos um sistema de emprego frágil, porque as pessoas, embora não emigrando em definitivo, vão lá fora durante um período trabalhar e depois regressam. Portanto, este objetivo que se traduz, afinal, na criação de emprego, isto é, num sistema de saber como organizamos a vida num território é uma enorme prioridade.

sA — No seu livro, a dado passo, exorta-nos a “reorganizar internamente o país”. Acredita mesmo nessa possibilidade ou refere-a como uma hipótese de caminho?

JR — É uma possibilidade urgente e altamente necessária, porque temos um problema sério, do ponto de vista territorial. E mais uma vez ele está na cabeça das pessoas, na organização das ideias. A linguagem, como sabe, é um instrumento poderosíssimo. Pois bem: o grande problema neste país para entendermos o território, é a recorrência, o peso que a palavra “interior” possui na discussão pública sobre o território. Quero com isto dizer que não existe um problema no interior do país? Não, não é isso que digo. Claro que existe. Mas é esse o nosso principal problema territorial? Não, não é. O nosso principal problema territorial é a fragilização das cidades médias. Repare: nós vivemos em Coimbra, na única cidade que tem mais de 100 mil habitantes que não está em qualquer das duas áreas metropolitanas nem na sua proximidade e essa cidade tem um comportamento demográfico alentejano.


sA — Que comportamento é esse?

JR — Quer dizer que entre 2001 e 2019 encontramos uma diminuição de população de nove e meio por cento (dados do INE), como encontramos por exemplo no Alentejo ou no interior.

sA — E a que se deve esse fenómeno?

JR — Ao que eu estava a dizer: as nossas cidades médias — em que se inclui Coimbra, como eu referia antes — ficaram com as suas economias fragilizadas. Repare: nós temos a ideia de que o país era bicéfalo — Lisboa e Porto e as respetivas áreas metropolitanas. Outro mito, não é verdade. Se olharmos para os números reparamos que a área metropolitana do Porto perde população; embora citando de cor, direi que dos seus concelhos apenas dois ou três crescem em população, todos os outros decrescem e a zona metropolitana no seu conjunto tem vindo a diminuir de população.  Inversamente, os concelhos da área metropolitana de Lisboa têm crescido de forma assimétrica e muito periférica, o que significa que há concelhos com 30, 40 e até 50% de aumento de população. Estou com isto a dizer que Braga perdeu a capacidade de crescimento demográfico que tinha, que Aveiro tem baixo crescimento e que Leiria não tem crescimento algum. Portanto, o nosso sistema urbano composto por cidades médias é o primeiro problema territorial. Daí eu insistir na ideia de que o grande problema do interior não é a sua localização geográfica, mas sim vermos que, por exemplo, Chaves, Vila Real, Bragança, Guarda, Castelo Branco, Beja e Covilhã são cidades em definhamento. Este é que é o verdadeiro problema, sublinho, porque o grande recurso do interior são as suas cidades.


sA —   Está a dizer, então, que é um erro de perspetiva continuar-se a discutir o assunto em termos de litoral-interior.

JR — Estou com isto a dizer que nenhum território se organiza sem ter elementos de aglomeração e de capacidade económica e social que depois incorpora nos seus territórios de proximidade. Pois bem: as cidades que acabei de referir perdem população há anos. Daí que colocar-se a questão em termos de litoral-interior, é um pouco folclórico; embora para um lisboeta que, como sabe, acha que o interior começa ali a seguir a Vila Franca de Xira, ele até goste desta dicotomia que, como tento explicar, está longe de ser o cerne da questão.

Mais: o conceito de interior desligado da noção de território, além de algo indefinido, indistinto e por vezes chamativo — designadamente, quando se vem proclamar que “foram para o interior não sei quantas famílias”—, não resolve o problema de fundo. O que faz o território é a economia. Considero, aliás, que os problemas das regiões não se resolvem dando dinheiro ou descentralizando alguns serviços, mas sim estabelecendo uma economia nessas zonas. Donde, o modo como se executam as políticas públicas é essencial.


sA  E entre essas políticas públicas podemos falar de quais?

JR — Desde logo da regionalização, que eu defendo, como sabe.


sA — Faz sentido, hoje, defender a regionalização?

JR — Todo o sentido. Mas já agora permita que a explicite: a regionalização não é para que as pessoas do Porto fiquem mais contentes, ou as gentes de Trás-os-Montes, Coimbra ou Alentejo vejam fazer-se aquilo que óbvio e que desejam. A regionalização faz-se para reorganizar o Estado — ela é, desde logo, um instrumento de reforma do Estado. Mas há outra coisa essencial: precisamos que dentro de cada região (correspondendo, no fundo ao tal sistema urbano de que eu falava há pouco) existam políticas comprometidas com certas lógicas e objetivos de desenvolvimento a escalas que são inferiores (ou superiores) à própria região.  As instâncias do estado, através das suas políticas públicas, devem dizer-nos qual é a sua visão sobre Viseu, ou sobre o Douro, ou ainda sobre o eixo Vila Real-Régua-Lamego; ou Guarda-Covilhã-Fundão-Castelo Branco. Quer dizer, precisamos ter uma noção integrada de desenvolvimento para cada território. Por exemplo: a Covilhã, passe o exagero, teria fechado, se não fosse a sua universidade.

“O grande problema do interior não é a sua localização geográfica, mas sim vermos que, por exemplo, Chaves, Vila Real, Bragança, Guarda, Castelo Branco, Beja e Covilhã são cidades em definhamento”.

sA — O seu pensamento está muito focado em políticas de territorialização, mas o país parece pouco inclinado para isso. Há algum exemplo que possa ser referido?

JR — Provavelmente, nos últimos 50 anos, em Portugal tivemos uma única política pública que foi territorializada, que é a rede de ensino superior. Temos universidades e politécnicos em Portalegre, em Bragança, Tomar, Chaves, Covilhã, Guarda, etc. Ou seja, o território faz-se com estruturas: com economia, com atividades, com algo que leve para lá pessoas. Nunca fiz as contas, mas provavelmente o politécnico de Portalegre é o que mais pessoas de fora tem. Portanto, a regionalização é uma peça essencial do ponto de vista do estado e, também, do desafio que é reconstituir com economia o sistema urbano. E este está dentro das regiões. Ora, é para isto que temos de ter ideias e políticas públicas.


sA — Acredito que qualquer cidadão que nos leia apoie aquilo que está a dizer. Donde, porque é que algo que parece tão óbvio nunca foi posto em prática?

JR — Essa é a pergunta a que nenhum de nós sabe responder integralmente. Podemos, todavia, colocar algumas hipóteses. Desde logo, porque as cabeças dos nossos governantes, desde há muito, abandonaram este debate. E, no entanto, a batalha, a discussão sobre o território, sobre a regionalização, deveria ser uma questão consensual. A verdade, porém, é que hoje esse não é um assunto que ocupe as pessoas. Portanto, a discussão sobre o território perdeu-se e não está reassumida. O que constitui um obstáculo.

sA — Recentemente num artigo que publicou na imprensa diária diz a certa altura: “falta-nos uma cultura de autonomia pública”. Quer explicar melhor essa ideia?

JR — A vida política, as políticas publicas nas últimas décadas foram marcadas pela ideia de integração. Integração, inserção, adequação a um espaço mais lato (europeu). Isto teve uma aceleração história monumental na segunda metade dos anos 90, com a União Económica e Monetária. E nós o que fizemos foi um esforço enorme para cumprir todas as regras que nos permitissem essa inserção. Ora, independentemente do balanço que fizermos, a verdade é que as vulnerabilidades e dependências foram acentuadas, desde aí. E agora mesmo, com a pandemia, todos nós observamos e concluímos que quem nos salvou foi o estado e o Serviço Nacional de Saúde. Ou seja, quem nos salvou foi uma estrutura da nossa vida coletiva que nós não desfizemos, independentemente de discutirmos se a mantivemos suficientemente forte ou não. Ora, a Saúde, como ainda esta semana a presidente da Comissão Europeia afirmava, não corresponde a uma política comunitária. E hoje penso que existe a ideia da vantagem que houve em termos uma estrutura que não diluímos, que mantivemos, que corresponde à nossa autonomia nessa área. Abreviando: temos de tirar daí ilações para o conjunto da nossa vida coletiva, com o objetivo de diminuir, se possível, superar vulnerabilidades. É neste sentido, portanto, que utilizo a expressão “cultura de autonomia pública”. Por outras palavras, é a capacidade de nós tomarmos decisões — se necessário insubmissas — para organizarmos (sem qualquer ideia ou pensamento de fechamento nacionalista) o nosso lugar, enquanto país, onde quer que estejamos.


sA — Mas há ainda espaço para pensarmos autonomamente, como país, quando as grandes decisões, hoje, dependem de Bruxelas? JR — Há espaço, claro. Para guardarmos o nosso quinhão de autonomia política. Se o não o fizermos estaremos a negar-nos como estado, como nação e como parte da Europa. Depois, se é verdade que Bruxelas tem um conjunto de poderes que evidentemente nos condicionam muito, o certo é que existem muitas instâncias de deliberação que não dependem de Bruxelas e face às quais é possível ser insubmisso. Veja o que se passou com o anterior governo, e a sua decisão de reposição de salários, de reformas, que na altura estiveram sob o cutelo de Bruxelas. Outro exemplo: a política fiscal não é condicionada por Bruxelas, e o mesmo se pode dizer da política laboral.  Embora esta seja a questão mais sensível em termos ideológicos. À esquerda e à direita — embora aqui não sei se é a direita povo, ou apenas a patronal.  E outros exemplos se poderiam acrescentar. Portanto, o que eu digo é que existe uma margem para exercermos essa tal cultura de autonomia política.

“Coimbra tem de se constituir num interlocutor principal na discussão que vai haver no país sobre a reindustrialização e sobre a reorganização territorial. É crucial ser um dos interlocutores principais e ter um programa para isso”.

sA— Falemos agora de Coimbra. Este ano vai haver eleições autárquicas. Como olha para esta sua cidade, como tem vindo ela a posicionar-se no contexto nacional?

JR — Como sabe, existe em Coimbra uma terrível cultura de não querer falar dela própria, exceto se for sob os acordes da guitarra. Mas falemos, claro. Olhe, uma coisa que não entendo neste país, é como é que a única cidade com mais de 100 mil habitantes fora das duas áreas metropolitanas — estou a repetir-me — não é um centro de racionalidade no desenvolvimento e planeamento do país. Um país decente tinha, do ponto de vista central, refletido há muito tempo sobre isto. Tal nunca sucedeu. Inversamente, diga-se, Coimbra nunca fez o gesto contrário, no sentido de obrigar ou forçar a que isso sucedesse. Assim, olhamos e vemos uma perda demográfica enorme, que se reflete numa grande perda de influência da cidade.

sA — O único problema é a perda de influência política?

Coimbra tem um problema político e um problema económico. Mas vamos por partes. Nunca teve, por exemplo, um poder político forte e que pensasse de forma aprofundada a cidade e a sua área urbana, o seu concelho. E é de recear que esta tendência prossiga. Há que assumir, portanto, que existe um problema com Coimbra e, em segundo lugar, olhando para a vertente económica, que não a resolvemos com soluções antigas. Ou seja, é precisamos formular um programa político que mobilize a cidade e o concelho, e que responda à pergunta que há pouco formulei: que economia queremos para Coimbra? Queremos apenas uma descentralização? Não há mal nisso, mas a solução tem de ser uma base produtiva industrial. Refiro-me, evidentemente, a uma indústria que assente em bases qualificadas. Repare: temos em Coimbra um setor industrial ligado às engenharias informáticas que é um grande ativo e um exemplo das indústrias mais modernas, do século XXI, que deveria ser olhado com mais atenção. Por outro lado, Coimbra tem de se constituir num interlocutor principal na discussão que vai haver no país sobre a reindustrialização e sobre a reorganização territorial. É crucial ser um dos interlocutores principais e ter um programa para isso.

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João Figueira

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