Luís Carlos Patraquim: “A minha política é o trabalho poético”

 Luís Carlos Patraquim: “A minha política é o trabalho poético”

Luís Carlos Patraquim (Fotografia de Alfredo Cunha)

Desengane-se quem pensa que vem aqui encontrar respostas definitivas para as perguntas e dúvidas colocadas. É certamente alguém que não conhece — e por isso precisa conhecer Luís Carlos Patraquim, natural de Lourenço Marques/Maputo desde 1953. Antes dessa data não sabe nada. Depois dela ainda menos. Perdeu-se na “Monção” (1980), sua primeira obra, colecção Autores Moçambicanos. Tem naufragado muito a cada livro: poesia, crónica, teatro, novela, crítica, jornalismo, cinema, intervenção cultural. Gosta dos amigos. Ama a terra e as suas palavras, as das línguas todas, cantando. Se nisso houver poema, só ele vive. Pelo meio, vai dizer-nos a certa altura que “quem me tramou foi o Antero de Quental. Posso dizer assim. Ler os sonetos dele aos doze anos, sentado num muro do Alto Maé, com o livrinho de capa cartonada, azul, da Sá da Costa, não se recomenda”. Mais adiante nesta conversa com o poeta João Rasteiro, para sinalAberto, Patraquim dirá ainda que “Mandela é uma figura moral única” e, na passada, a propósito do mundo e do seu país, vai acrescentar: “pior do que o partido único é o capitalismo da vigilância. Já nem produtos somos! É aí que a poesia é necessária! E o resto das malasartes”.

João Rasteiro à conversa com Luis Carlos Patraquim (Foto: Ana Nazaré).

sinalAberto – Caro Luís, este mundo de hoje, arrogante pela ilusão da tecnologia e altivo na confusão do ruído, ainda tem lugar para o indizível compasso da literatura, especialmente da Poesia?

Luís Carlos Patraquim – Não faço ideia. Talvez Ela, caprichosa Senhora, tenha a reminiscência de um eco qualquer. Talvez haja uma biografia íntima das línguas e da linguagem onde ressoa esse “indizível”. Eco, na mitologia grega falava demais e foi castigado com o silêncio quase. Restou-lhe não um “indizível” mas um estado intermédio. Quem não anda ajoujado de “like” e “clic”, um coquetel igual à cicuta, sabe que “há noites” em que ouve e faz dos signos uma coluna dórica, uma máscara, um teto de colmo por onde o senhor Pneuma, com apelido o mais desvairado no desvairado mundo, entra. E esse espaço-tempo a rodopiar à volta do corpo, a aquecê-lo ou a esfriá-lo, pode ser a dita cuja, que o poema ele mesmo transforma num devir.

sA – Quanto ao lugar do escritor no centro do espaço público, como é ele encarado pelo poeta Luís Carlos Patraquim, tendo em conta não só a tua essência de jornalista, mas sobretudo, de cidadão que “navega e paira” entre dois continentes, por entre a feroz voz dos homens que tragicamente “conduzem” esta Europa e este mundo, onde cada vez mais parecemos uma multidão de zombies?

LCP – O espaço público? Essência de jornalista? Tento fugir do primeiro e desdenho da segunda. Talvez prefira a eminência, sem púrpura hierárquica nenhuma – aquela que o tal espaço obriga -, a eminência, digo, de uma Imanência. Nem sei se a pressinto ou se é só um cismar apalermado. Sou disjuntivo e pressinto que o “Sujeito” já foi atropelado pelo tráfego. E já falei demais utilizando este “Je”. O gajo chateia-me todos os dias. Prefiro a irmandade de que falava San Juan de la Cruz.

Do jornalista, nem lembro. Resumo-o como um naïf que deveio copywriter político e só hoje sabe disso.

Os dois continentes? Pois, atão?! Com o lado esquerdo sempre a pulsar com o imenso Sul onde nasci. A ouvir-lhe as vozes. As Todas. Do Mundo.

sA – Já afirmaste que a “poesia é um estado contraditório de maravilhamento e de angústia”. Explicita um pouco mais esta afirmação e quais as tuas “ferramentas” para emergires dessa aparente estranha e árdua simbiose?

LCP – Desculpa. Não consigo explicar nada. A poesia é uma anomalia e sobre esse “aleijão” escreveu Silvina Rodrigues Lopes. O Sebastião Alba dizia que o poeta era um doente. Claro que sabia que também era um duende. O homem mais simples da minha terra (enfim… como se houvesse “homem simples”) costuma dizer, quando se sente mal, que “tem cobra na barriga”. Não descaio para nenhum folclorismo indigenista. Olha a sacana da cobra que lixa a Senhora Eva e o Senhor Adão. Em Moçambique as mambas (nhocas, cobras) sobem às árvores. A nossa sorte é que não temos maçãs. Para compensar, sobram-nos maningues azares. Quem lá estiver, no futuro, “contar-me-nos-á” as muitas acontecências e elas serão, já são, o Aleph.

Da Europa mais recente, registo os impropérios germânicos contra a Acrópole. Foi muito feio utilizar a crise do euro, utilizar troikas, etc. Portugal, enfim… sabemos.

sA – Como foi o teu processo de despertar para a criação literária? Quando é que começaste a ter a noção de que isso se iria tornar algo absolutamente inevitável e vital até tendo em conta o teu mergulho no cinema, televisão, jornalismo, roteirista, etc.?

LCP – Não me fales em “processo”, “Kamarada”. Grafo com K porque é bué de africano… como já dizia o senhor professor Topsius. Quem me tramou foi o Antero de Quental. Posso dizer assim. Ler os sonetos dele aos doze anos, sentado num muro do Alto Maé, com o livrinho de capa cartonada, azul, da Sá da Costa, não se recomenda. O resto tem sido uma sucessão de tropeços.

O cinema… não sendo a caverna de Platão, é um fascínio de sempre. E tem a ver com a cidade de Lourenço Marques, onde havia um movimento cine-clubista forte. Ir à “matiné” ver o Couraçado Pomtenkine ou o Bergman era ver o Couraçado e o Bergman mas estar atento à namoradinha, impossível tantas vezes. Era usar o chapadão” do close-up para quase sussurrar à pita, com o cachimbo a desenhar uma aura de odores propícios à grande metafísica dos costumes, a sussurrar, volto a dizer, o diálogo do Johnny Guitar a Ema: “diz que me amas”.

Não resisto a uma estorinha contada pelo grande Carlos Adrião Rodrigues que a viveu:

Um pré-visionamento do filme “Outubro”, de Eisenstein. O senhor capitão da censura que, na cena do assalto ao Palácio de Inverno, se vira para o Adrião Rodrigues e lhe diz que, claro, pois “ó, sôtor, esta cena cheira-me a comunismo”. Resposta: “por amor de Deus, senhor capitão, não vê que são piratas?!”.

sA – Pode-se afirmar que a rasura da dicção de uma poesia ideológica proposta por grande parte dos teus antecessores, recriando uma peculiar feição de “barroquismo estético” que evidencia a sua “poética dos afetos” é talvez o vetor principal da tua poética. Fala-nos não só um pouco sobre esta asserção, bem como das tuas motivações criativas.

LCP – Se eu tivesse “poética” “e não morresse nunca”… Para ser sincero (um chavão) não sei como falar do que escrevo. Acho que estás a ver bem. Mas será que fixo aí? Mais do que o barroco, gosto do barro. Digo como o Knopfli em “Mangas Verdes com Sal”: roubo a todos”. Roubo-me. Finjo. Não Finjo. É isso… com os passos desencontrados e a pergunta do Rilke logo a abrir a Primeira Elegia. E a do Craveirinha: “nascer mulato assim é bom?” Eu acho que é. Embora não o seja, na classificação estapafúrdia, mas tão “misturado como mandam todos os nomadismos, migrações e a biologia. Mais os eco-sistemas e a miséria e o lugar mais aprazível e a inquietação e a arte de fuga, musical ou outra.

sA – Poderemos afirmar hoje que o lirismo de Luís Carlos Patraquim, após uma já extensa e profícua obra poética, tem como vetor primordial, ou um dos primordiais, a “cidade compreendida como um reino por reinventar”?

LCP – Fosse eu arquitecto, “os que vão construir as casas”. Herberto dixit.

sA – Como é que estás a lidar individualmente com este momento dramático que estamos a viver? E como sentes que todos vamos sair – esperemos que até ao final de 2021 seja possível isso ocorrer – quer sejamos os povos, quer sejam os estados, quando o fio que separa estados ditos democráticos de estados ditatoriais, com esta trágica pandemia é cada vez mais frágil e turvo?

LCP – Não exploro literariamente. Já se escreveram muitas pestes. Todas úteis. Algumas com “grande literatura”… como se pode conceder em amena falatura de fim de tarde, num pavilhão de inverno, com chá de menta. Eu já fui à Bukovski: um engarrafado.

Que há a porca da política nisto tudo? Claro! Mas não acredito em reinos virtuosos. Sei que é melhor não levar com umas cacetadas nos costados por um “assim dizer que ofende sempre as ditaduras, formalmente consideradas” mas… eia, pá!, ele é cada bufo e cada verdugo no calabouço das taxas de juro, nas leis do trabalho, etc.!… Enfim… Uma espécie de aforismo de Brecht, aquele sobre o rio e as margens.

sA – Como já afirmaste: “Do ‘vírus chinês’ ao ‘vírus estrangeiro’, o discurso populista e xenófobo tem fulgido em todo o seu esplendor. Mas o inferno é ele, esse discurso, não o Outro, esse que também somos nós.” Podes explicitar um pouco mais?

LCP – Olha, não posso, porque estou totalmente de acordo com esse gajo que citas.

“O nomadismo é a demanda. Há o lugar, o seu espírito. Gostava de ser como o ‘fazer de tendas’, o Káyyam. Mas não passo de um bicho da terra, piquinininho.”

sA – Até partindo desta pandemia – viral, mas sobretudo de discurso – como olhas para Moçambique hoje? O que em determinado momento denominaste como 2º República a partir dos acordos de paz, é algo que evoluiu ou regrediu? Moçambique estará, passado vinte anos no século XXI, mais próximo de uma 3º República?

LCP – Não me fales de Moçambique. É a minha alegria e a minha angústia. Aconteceu o que sabemos: a captura do Estado (agora quase informal… e quanto perigo nisso!) pelos “ten years”. Não todos, é verdade. Os “ten years” era a nossa designação para os guerrilheiros dos dez anos de luta armada. Sobretudo os chefes, as “estruturas”. Estou com Luís Bernardo Honwana quando considera que a luta armada de libertação nacional é o acontecimento mais importante e definidor da história de Moçambique. Mas algo se perdeu pelo caminho.

Espero que aconteça alguma coisa no sentido de que falas. O que se vive agora é inadmissível. O comportamento dos dirigentes, o Partido único que continua, embora disfarçado. O delírio pelas riquezas materiais. O greed, a usura, o crime, tudo. Com o consolo que no meio disto – fraco consolo mas consolo -, as novas gerações que surgem de ativistas, de poetas, de pintores, músicos, escritores, tudo, a pensarem e sentirem diferente. A quererem mundo. A rasgarem a “grande noite”, como pediu Achille Mbembe.

sA – Com que outros artistas – desde escritores, pintores, músicos, dançarinos, escultores, cineastas, etc. – eventualmente tens procurado dialogar nas tuas obras, quais são as suas grandes referências, literárias, culturais e não só, julgando saber que Mandela é uma referência absolutamente incomparável na tua vida?

LCP – Mandela era amigo do Craveirinha… “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi morar para Robben Island, quatro milhões de only brancos…” é o começo de um poema do autor de Karingana Wa Karingana, só publicado depois da independência.

Mandela é uma figura moral! Única.

Os diálogos? Pois, são permanentes. Circulam-me nas veias. Bebo tudo. Decanto. Tento saber quem sou embora isso talvez nem seja importante para nenhum de nós dois, os muitos. Pirandello, a heteronímia pessoana, só para ficar por aqui, já deram conta do recado.

sA – Pedro Mexia afirmou sobre “Morada Nómada” – a tua poesia reunida e teu último livro – o seguinte: “Luís Carlos Patraquim, herdeiro da tradição lírica africana, chega ao presente como habitante de uma intrincada teia de alusões e reminiscências”. Queres comentar, e nomeadamente se essa teia é propositada e trabalhada exaustivamente, ou se muitas vezes tu próprio só te apercebes dela a posteriori?

LCP – O Pedro Mexia, digo-o sem reservas, é muito generoso. Isto não traz água no bico. Não há aqui nem inferências, nem deferências, nem displicências ou demais ciências.

Somos nómadas sem o sabermos. O walking man com celular, headphones, a aljava dos satélites e das antenas, é uma variante desse nomadismo. Chateia-me é a falagem permanente, a obrigação de se estar permanentemente conectado. A superfície lisa, sem nenhuma das rugosidades da vida vai lixar-nos. Mas não sabemos. Depois, pior do que o partido único é o capitalismo da vigilância. Já nem produtos somos! É aí que a poesia é necessária! E o resto das malasartes.

sA – Como escritor que escreve em português, consideras importante manter o diálogo com autores de outros países e regiões de língua portuguesa? Se sim, porquê, até tendo em conta que já afirmaste: “A língua portuguesa não é a mais adequada para se falar da capital da famosa e mui frequentada West Coast of Europe”?

LCP – Essa “West Coast” coube numa crónica quase sarcástica… o que é feio. Em bom português, uma coisa muito uggly de se dizer. Não passou de uma nótula. Longe de mim um “abarcar compreensivo” (“a comprehensive aproach”), onde só o “abarcar” nos cai em cima quando se põe a língua de fora. Deve ser por causa da Ode Marítima e da chegada do Vasco da Gama à costa de Inhambane, o que levou à mudança do topónimo segundo a coisa outra que lhe disseram os “locais”, no seu idioma. Não foi bem deste desconcerto que Camões falou mas andamos nisto: de erro de tradução a mudança, sempre no gamanço dos equívocos. Estou com o Jorge de Sena no seu “piquinino” poema “Noções de Linguística”. Mas esta bela Língua é como às bruxas castelhanas: existe. Foi imperial? Foi! Foi mulher de vida fácil? Não! Pela simples razão de que as ditas cujas não a têm.

sA – Afirmas que “Kilimanjaro”, o inédito que integra a antologia “Morada Nómada”, é a “talvez fracassada tentativa do alpinista que vai cair”! Isso no fundo não é aplicado de forma geral ao poeta, a toda a poesia? Fala-nos um pouco sobre isso e sobre a sua analogia com o nomadismo, até tendo em conta que abres “Kilimanjaro” com uma epígrafe de George Steiner que diz: “É bem possível que o pensamento viva no exílio”.

LCP – Gramo do gajo, do Steiner! O que é que hei-de fazer? O “Kilimanjaro” é a variação do Parnaso, o seu lugar logotético. Invento-o assim. Estou a baralhar as respostas. Disciplinadamente. As coisas remetem umas para as outras.

O nomadismo é a demanda. Há o lugar, o seu espírito. Gostava de ser como o “fazer de tendas”, o Káyyam. Mas não passo de um “bicho da terra, piquinininho.

sA – E por isso e, relembrando esse magnífico último poema de “Morada Nómada”, intitulado ‘Os que vão morrer não te saúdam’ donde irrompe “Somos os que vagueiam / Entre as árvores e os quintais das casas / Água e sal  eis o nosso néctar / Ébrios das quadrigas dos four by four / Porque descurámos  o abysmo da vertigem / Sob a lua / (…) / Contempla a aura das tuas vísceras / Golfando a seiva das raízes / O seu nada”,  confrontado e confrontando-te com a arrasadora interrogação de Hölderlin: «Para que servem os poetas em tempo de indigência?», pergunto-te, para que servem eles realmente hoje nestes terríficos, estranhos e inexplicáveis tempos que vivemos?

LCP – Não sei nem quero “explicar” poemas. Porque baralhei as respostas, esse poema responde à pergunta muito curial, senhor deputado, sobre a situação em Moçambique. A luta continua! A da dignidade! Inteira!

Os poetas, se servem, é para aquilo que Hölderlin disse. Passam a morte a refundar o que disseram, os seus pontos luminosos. Este “punti” é do senhor Pound, que revisitou tudo. Os poetas servem a sua geografia, vasta como o universo. Andam à velocidade da luz embora saibam que as palavras podem ser como os obstáculos nas corridas dos 110 metros. Pulam com elas, por cima, a pata na água que chapinha e lhes encharca as asas e sabem da “pésanteur et la grace” desse fazer. “Ai de mim que não pedi para nascer e sou forçado a viver”, desabafava o Reinaldo Ferreira, o filho do Repórter X, que morreu em Lourenço Marques.

sA – Como classificas hoje, e de forma geral, a poesia moçambicana, tendo em conta até alguma forte visibilidade da ficção moçambicana? E como ela se relacionou e relaciona hoje com toda a poesia em língua portuguesa?

LCP – Não classifico nada. Há poetas (poucos, dos que escrevem) que vale a pena ler. E há os dessoutros. Quando pergunto a um deles, muito elegantemente, sobre as suas influências, e ele me responde que é o Francis Ponge… porra!… para mim está tudo dito. O eixo da terra mudou. Naquela minha nossa terra. Podia ser as sagas suaílis. O que quisessem. O que querem. O que encontram.

Na poesia chinesa viaja-se muito. Há sempre montanhas ao fundo, amigos nas suas faldas, vinho. Esse nomadismo que vê raízes em todo o lado é o que me interessa.

Enfim… Cá estou eu a baralhar.

sA – Já chegaste a firmar de que não é poeta quem quer. É necessário mesmo um determinado estado de maravilhamento e de angústia associados aos poetas, ou isso é já algo um pouco esbatido e até ultrapassado no que concerne ao “poeta moderno”?

LCP – Homero é um poeta moderno. Pound percebeu isso melhor do que ninguém e apontou o “make it new!”. A nossa consciência é a de uma perda irremediável. As novas cosmogonias estão na física quântica, no que intuiu a Tábua de Esmeralda sobre o infinitamente grande e o pequeno. Que a estrutura da linguagem nos ajude a pôr o gato onde ele não está e está ao mesmo tempo. Que o edifício verbal seja nómada!

sA – És considerado hoje por muitos o grande nome da poesia moçambicana, sendo por eles, e por mim, afirmado que é uma questão inevitável de tempo a atribuição do “Prémio Camões” à tua obra. É algo em que, sinceramente, pensas e ambicionas?

LCP – Camões? Quem é esse gajo! Na Ilha, fui à capelinha manuelina. O mar brama ainda. Há um restolhar de espíritos líquidos que fogem das moreias que se acoitam nas reentrâncias dos corais. Do passadiço da muralha, como se a fortaleza fosse um barco encalhado, vê a cisterna e eu vi, claramente visto, um tipo com pala no olho – talvez o Jonhn Ford, talvez o Nicholas Ray –, a gritar “acção!” e a moçoila – Eixx! Eixx! – a iniciar uns passinhos graciosos para ir à fonte. E um deles – sempre chatos os realizadores! – a dizer “corta!”. E enganava-se no nome. “Leanor! Desculpa, Bárbara! Eu disse capulana das naharras e não saínho de chamalote! E quando te debruçares na fonte, sorry, na cisterna, deixa o pano cair lentamente!” Malandros.

Quanto a prémios, eu não sou político. A minha política é o trabalho poético.

sA – O que gostarias de dizer para finalizar? Que palavra, que verso, que frase gostarias de nos deixar para atestar que a casa é um corpo ateado, um lugar vivo?

LCP – Vou ouvir “A Noite Transfigurada”, do Schonberg, com acompanhamento de N’Sope como um coro grego. A seguir, no campo de São Gabriel, sempre em Muhípiti (Ilha de Moçambique) atuará, aproveitando o desconfinamento, o Miles Davis. Kind of Blue, evidentemente.

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As múltiplas escritas de Luis Carlos Patraquim

Jornalista, redactor de comunicação de empresa, escritor e poeta.

Colaborador do jornal “A Voz de Moçambique”, refugia-se na Suécia em 1973. Regressa ao país em Janeiro de 75 integrando os quadros do jornal “A Tribuna”. Membro do núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique) e do Instituto Nacional de Cinema (INC) onde se mantém, de 1977 a 1986, como roteirista/argumentista e redactor principal do jornal cinematográfico “Kuxa Kanema”. Criador e coordenador da “Gazeta de Artes e Letras” (1984/86) da revista “Tempo”.

Desde 1986 residente em Portugal, colaborou na imprensa moçambicana e portuguesa, em roteiros para cinema e escreve para teatro. Copywriter e redactor de comunicação de empresa, coordenador redactorial da revista “Cadernos de Design”, do Centro Português de Design. Foi consultor para a “Lusofonia” do programa “Acontece”, de Carlos Pinto Coelho e é comentador na RDP-África.

Intrometeu-se na escrita dramática e o cinema é uma questão que tem consigo mesmo. Está traduzido e antologiado em diversas línguas.

Publicou “Monção”, INLD/AEMO (Instituto Nacional do Livro e do Disco/Associação dos Escritores Moçambicanos), Maputo, 1980; “A Inadiável Viagem”, AEMO, Maputo, 1985; “Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora” ALAC (Africa, Literatura, Arte e Cultura) , Lisboa, 1992; “Mariscando Luas”, VEGA em parceria com Chichorro e Ana Mafalda Leite, Lisboa, 1992; “Lidemburgo Blues” , Editorial Caminho, Lisboa, 1997; “O Osso Côncavo”, Editorial Caminho, Lisboa, 2005, “Pneuma”, Editorial Caminho, Lisboa, 2008; “A Canção de Zefanias Sforza”, Porto Editora, Lisboa/Maputo, 2010; “Enganações de Boca”, Alcance Editora, Maputo, 2010; “Ímpia Scripta”, Alcance Editora, Maputo, 2011; “Matéria Concentrada”, Ndjira, Maputo, 2011; Antologia “Poemas”, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, 2001, Colecção Autores Moçambicanos; “Manual para Incendiários”, crónicas, Antígona, Lisboa 2012; “O Cão na Margem”, Kapulana Editora, São Paulo, 2017; ”O Deus Restante”, Maputo, 2017; “Música Extensa”, Editora Alcance, Maputo, 2017; Antologia “Morada Nómada”, Língua Morte, 2020 e “De Cabeça para Baixo”, contos, Húmus, 2020.

Foi distinguido com o Prémio Nacional de Poesia, Moçambique, em 1995.

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João Rasteiro

Nasceu em Coimbra, no ano de 1965. É licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra, integra a Direção do PEN Clube Português. Tem poemas publicados em Itália, em França, em Espanha, na Finlândia, na Hungria, na Chéquia, no Brasil, nos USA, no México, na Argentina, no Chile, nas Honduras, na Nicarágua e na Colômbia. Entre diversos prémios, obteve o Prémio Literário Manuel António Pina (2010) e o Prémio César Vallejo 2020 (categoria Excelência Literária). Publicou 20 livros (em Portugal, no Brasil e em Espanha), que vão de “A Respiração das Vértebras” (em 2001) a “OFÍCIO Poesia: 2000 – 2020” (Porto Editora, 2021) e INCENSO (em 2022, no Brasil). Em 2020, publicou o livro de contos “Governadores de Orvalho”. Participou em diversos festivais literários, em Portugal e no estrangeiro. Vive e trabalha (Casa da Escrita/Câmara Municipal) em Coimbra.

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