Luís Reis Torgal: Nenhum Estado é inteiramente laico

 Luís Reis Torgal: Nenhum Estado é inteiramente laico

Acerta altura diz-nos: “As religiões hegemónicas acabam sempre por exercer uma pressão que, consciente ou inconscientemente, se fazem sentir no espaço civil”. E na continuidade desta construção argumentativa dirá um pouco mais à frente que “mais grave” ainda, é que personalidades do Estado, enquanto tal, tenham estado em cerimónias religiosas tão discutíveis como a beatificação dos pastorinhos de Fátima. Poderiam ter estado enquanto crentes, mas não como representantes de um país que deve ter um sentido ecuménico.”

Quem assim fala é Luís Reis Torgal, professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a propósito das relações entre Estado e Igreja, e o seu impacto nos respetivos contextos sociais. É por estas águas, de resto, que navega a sua mais recente obra, “Separação e colaboração do Estado e da Igreja no tempo de Salazar. O caso dos feriados”, que serviu de feliz pretexto a esta entrevista. E dizemos “feliz” porque se é certo que hoje é imperioso escutar os historiadores e regressar à leitura e estudo da História, a verdade é que não fora o lançamento do livro e, provavelmente, teríamos perdido esta oportunidade para escutar as reflexões de alguém que pensa criticamente o presente, a partir e com base nas lições do passado.  Não se admirem por isso, de ler uns parágrafos adiante, a chamada de atenção que nos faz, quando refere que “numa democracia cometem-se erros constantes e o importante é que sejam reconhecidos pelos próprios poderes e pelos cidadãos, o que nem sempre sucede.” 

O Estado Novo e o Liberalismo, a par da Teoria da História, constituem áreas privilegiadas da sua vasta investigação académica, de que o livro “Estados Novos, Estado Novo”, editado em 2009, é uma obra de referência. Como não falar, então, do trabalho de investigação histórica que atualmente se faz, quando aos académicos se pede, como aos jornalistas, que escrevam e publiquem muito — o máximo possível?… Mais uma vez se ouvirá a sua voz crítica contra a quantidade, em detrimento da qualidade, embora não deixe de afirmar que “com as condições favoráveis de hoje, em termos de informação, de investigação e de escrita, se podia fazer muito mais e melhor”. Ainda sobre este tempo presente no qual vamos respirando, o professor volta a ser frontal e direto como sempre, aproveitando uma pergunta genérica final sobre História, para lamentar que o 25 de abril tenha aberto as portas ao “capitalismo monopolista e consumista que conhecemos.”

SinalAberto — Regressa, neste mais recente livro, à questão dos feriados religiosos e à discussão que eles proporcionam no quadro de um Estado laico. À luz das suas conclusões é correto dizer-se que Portugal é um Estado inteiramente  laico?

Luis Reis Torgal — Voltei, na verdade, neste novo livro, à questão dos feriados religiosos, mas também dos feriados cívicos, na continuação de uma pesquisa iniciada pelo Professor Luís Oliveira Andrade, da Universidade de Aveiro, que foi meu orientando de doutoramento, grande amigo e que faleceu prematuramente com 41 anos. Publiquei, depois da sua morte, em 2012, em co-autoria, o livro Feriados em Portugal. Mas, relativamente à sua pergunta essencial, se Portugal constitui um “Estado laico”, respondo-lhe: só até certo ponto.

SA — Quer explicar, por favor?

LRT — Saliento que em lado algum da Constituição se diz que o Estado é laico, embora isso seja suposto — os constitucionalistas de 1975-76 e durante as revisões constitucionais (sete, a última das quais em 2005) tiveram, sim, a preocupação de nunca prejudicar os cidadãos pelo exercício de qualquer religião e tiveram também a finalidade de garantir que nenhuma actividade fundamental se regesse por princípios religiosos (educação, partidos, sindicatos, etc.). Apesar de poder vigorar o princípio da “separação”, do Estado da Igreja ou das Igrejas, nenhum Estado é inteiramente laico, até porque acaba por ceder ao poder religioso, seja através das Concordatas ou dos costumes que estão bem integrados na mentalidade popular. As religiões hegemónicas acabam sempre por exercer uma pressão que, consciente ou inconscientemente, se fazem sentir no espaço civil. Os representantes da Religião Católica, que é em Portugal a religião maioritária, podem, obviamente, ter o seu significado no espaço público, sem que a Igreja deva constituir um poder. A questão é saber se é — foi e continua a ser — ou não um poder.

SA — E é?

LRT — O problema é saber se esse poder só existiu na Monarquia e no Estado Novo, o qual também proclamava na Constituição a separação do Estado da Igreja (artigo 46.º da Constituição de 1933), mas ia cedendo ao poder eclesiástico (nomeadamente depois da Concordata de 1940) e aproveitando-se dele, ou se continua hoje a existir. Isso, apesar de a Constituição de 1976 reforçar essa separação numa perspectiva mais alargada, falando da separação das “comunidades religiosas” em relação ao Estado e não apenas da religião católica (Constituição actual, artigo 41.º). O certo é que existe uma nova Concordata (de 2004) que concede certos direitos especiais à Igreja Católica, além de existir alguma legislação comprovativa da maior importância concedida à religião hegemónica. Mas o perigo da intervenção na área civil de outras religiões é também evidente. Não falo das outras religiões fundamentais, como a Religião Hebraica ou a Religião Islamita, que se mantêm discretamente, exercendo a liberdade religiosa a que têm direito, nem das Religiões Evangélicas antigas, mas das novas religiões evangélicas chamadas pentecostais, que procuram ser verdadeiros poderes do ponto de vista espiritual, económico e até talvez político, como tem sucedido noutros países, nomeadamente no Brasil.

Considero mais grave que personalidades do Estado, enquanto tal, tenham estado em cerimónias religiosas tão discutíveis como a beatificação dos pastorinhos de Fátima. Poderiam ter estado enquanto crentes, mas não como representantes de um país que deve ter um sentido ecuménico

Luís Reis Torgal: Há uma história religiosa feita por crentes, que só vale para os crentes, e uma história religiosa feita por profissionais (que até podem ser crentes, mas têm de ser sobretudo cientistas).

SA — Faz sentido que um país, embora maioritariamente católico, mas ecuménico no sentido de uma ampla e sã convivência com todas as religiões, consagre no seu calendário festividades unicamente católicas?

LRT — É o que sucede noutros países maioritariamente católicos. Veja, por exemplo, o caso da França, da Espanha ou da Itália.

SA — Porque é que nenhum ator político ou social (individual ou coletivo) suscita a discussão desta matéria? Seria anti-popular debater algo que vai contra o senso comum?

LRT — A laicidade pura e simples dos feriados oficiais já existiu em Portugal, não só no tempo da I República, como no tempo do Estado Novo. Luís Andrade, que fez dos feriados um objecto de investigação do historiador, foi quem primeiro chamou a atenção para o facto de até 1952, com o decreto de Salazar de 4 de Janeiro, ou, se se quiser, 1948 (feriado da Imaculada Conceição por lei da Assembleia Nacional de 5 de Junho), não existirem feriados oficiais de tipo religioso. Salazar entendia, com o seu sentido legalista, que não era ao Estado que competia legislar sobre uma temática de carácter religioso. Ele próprio o diz no citado decreto. Hoje seria muito difícil debater uma questão desse tipo e nem sei se seria legítima, porque (como digo em determinada altura do meu livro) a religião é também uma questão de natureza social e até política (porque pertence ao domínio da pólis). Por exemplo, seria possível eliminar algumas procissões que fazem parte do sentir religioso e da festa das várias comunidades? Considero muito mais grave que instituições como a Universidade de Coimbra — que, como todas as escolas de ensino público, devem ser arreligiosas — façam certas concessões à Igreja e à Religião Católica, com convites formais para cerimónias religiosas por parte dos seus órgãos de gestão reitoral, embora aceite (ao contrário do que sucedeu na I República) que tenha uma capela católica, como poderia existir no seu seio, por exemplo, como se chegou a pensar no tempo do Reitor Rui Alarcão e foi discutido no Senado, um espaço ecuménico. Considero mais grave que personalidades do Estado, enquanto tal, tenham estado em cerimónias religiosas tão discutíveis como a beatificação dos pastorinhos de Fátima. Poderiam ter estado enquanto crentes, mas não como representantes de um país que deve ter um sentido ecuménico. De resto, recordar-se-á que foram concedidos feriados nacionais aquando da visita de papas, o que é igualmente discutível. Mais grave ainda será, talvez, a concessão de determinados privilégios a uma Universidade confessional, como é a Universidade Católica, que é equiparada, em certos aspectos, a uma universidade pública e, noutras, tem os privilégios e os direitos das universidades privadas. Como diz, seria antipopular pôr algumas questões, embora conceda que alguns erros (assim os considero) foram e são cometidos não por demagogia, mas sim por exagero de cuidados políticos ou até por ignorância ou falta de reflexão sobre as questões que se devem pôr constantemente aos poderes públicos. Numa democracia cometem-se erros constantes e o importante é que sejam reconhecidos pelos próprios poderes e pelos cidadãos, o que nem sempre sucede. 

SA — Mais uma razão para ser a Academia ou os seus investigadores, como sucede agora com este seu livro, trazerem o assunto para o espaço público.

LRT — O historiador deve obviamente trazer à luz o que pensa ser a “realidade” (na verdade a realidade histórica é uma ficção, mas uma ficção científica), com toda a objectividade e com base em documentos de todo o tipo. O nosso papel interventivo consiste precisamente nisso e na desmistificação do que se diz ser a “história”, quando se trata apenas da “memória” sem investigação. Apenas cumprimos o dever da nossa profissão. Por isso é que há uma história religiosa feita por crentes, que só vale para os crentes, e uma história religiosa feita por profissionais (que até podem ser crentes, mas têm de ser sobretudo cientistas).

SA — O espaço público mediatizado é, hoje, uma fonte de estudo e de crescente trabalho dos historiadores. Como olha e convive o historiador Reis Torgal com a história do quotidiano, às vezes do instante, que os media nos dão?

LRT — Uma coisa é o jornalismo de informação, outra é o jornalismo de intervenção e outra ainda o de investigação. São todos legítimos, embora o terceiro seja o que mais se aproxima da história, história do presente ou do passado-presente e até com abertura ao futuro. Mas hoje o que mais aparece não é o jornalismo propriamente dito, mas a opinião, muitas vezes em cima do acontecimento. Devo confessar que cada vez menos convivo bem com esta, apresentada por qualquer pessoa que diz alguma coisa sobre tudo. As redes sociais (que não frequento) dão-nos então exemplos lamentáveis, assim como programas de televisão e de rádio em que tudo se pode dizer. Portanto, sou um leitor constante dos jornais (de papel) e de um jornalismo profissional, que muito me estimula e ensina.

Qualquer informação jornalística ou qualquer informação que se apresente num meio de comunicação, especialmente do tipo “conversa de café”, que são agora as redes sociais ou os programas de pseudodebates radiofónicos ou televisivos de “fazedores de opinião”, precisa de ser analisada através das fontes que têm de ser objeto de pesquisa e de análise crítica

SA — Uma das críticas que atualmente se faz ao jornalismo é a ausência de (re)confirmação do que noticia. Como é que um historiador lida com uma potencial fonte histórica, perante a incerteza da fiabilidade da informação recolhida?

LRT — Claro que o jornalismo tem que confirmar a notícia. Caso contrário não é jornalismo. Sempre existiu um jornalismo de reportagem superficial, por exemplo em jornais regionais (em que muitas vezes os jornalistas não são profissionais, embora alguns desempenhem a sua função com esforço e muita correcção e honestidade). Claro que o historiador convive com um jornalismo profissional, seja ele qual for, como disse. Se visse as minhas pastas de recortes de jornais compreendia melhor que não estou a dizer isso apenas para ser simpático. De resto, quando criei o CEIS20, incluí logo uma área de jornalismo e pertenci ao primeiro secretariado do curso na Faculdade de Letras que eu, alguns colegas e o jornalista Mário Mesquita, que foi ali um professor justamente muito considerado, desejávamos que fosse sobretudo de jornalismo de investigação. Mas isso não sucedeu e talvez por isso o nosso jornalismo de Coimbra — a mais antiga cidade universitária portuguesa — seja praticamente só um jornalismo regionalista, com alguns plumitivos espontâneos, entre os quais me incluí. Repare que nesses jornais não há uma página de crítica literária ou de cinema ou de teatro ou de arte… Recordo ainda que uma das primeiras obras publicadas pelo centro que criei foi um dicionário do jornalismo diário português, da autoria de um antigo jornalista e historiador, Mário Matos e Lemos, de que vai agora sair a segunda edição pela Imprensa da Universidade de Coimbra. Portanto, como vê, convivo bem com o jornalismo, assim como com uma História que não faço (pelo menos de forma dedicada) mas aprecio, desde que seja bem feita. Refiro-me a uma história de divulgação e mesmo ao que se chama hoje “história global”. Por isso me perguntava num artigo do Público se a História tal qual a fazíamos tende ou não a morrer. Meras considerações críticas e autocríticas. Mas é óbvio que — para responder directamente à última parte da sua questão — qualquer informação jornalística ou qualquer informação que se apresente num meio de comunicação, especialmente do tipo “conversa de café”, que são agora as redes sociais ou os programas de pseudodebates radiofónicos ou televisivos de “fazedores de opinião”, precisa de ser analisada através das fontes que têm de ser objecto de pesquisa e de análise crítica.

A quantidade e a urgência da realização do trabalho convivem mal com a qualidade. Mesmo com o chamado referee, há por aí muitos artigos de carácter histórico que não deveriam ser publicados

SA — Até que ponto a pressão que hoje existe sobre os investigadores e os professores, a quem se exige que publiquem muito e, desejavelmente, sejam bastante citados, se assemelha ao destino dos jornalistas, cujas empresas lhes exigem a produção máxima de peças e o maior número de partilhas (e clickbaites) dos seus trabalhos?

LRT — Há muito que digo isso. A quantidade e a urgência da realização do trabalho convivem mal com a qualidade. Mesmo com o chamado referee, há por aí muitos artigos de carácter histórico que não deveriam ser publicados. Aliás deixei de fazer parte (salvo raras excepções) desse grupo de arbitragem, porque não concordo com a leitura de textos que nos aparecem sem sabermos o autor e sempre discordei que as análises dos artigos não sejam assinadas. A crítica e o debate só existem quando damos o nome às nossas reflexões. Também evito agora escrever para revistas, não porque possa aparecer uma análise crítica (o tal referee) de um antigo aluno (sempre aprendi com os estudantes), mas porque muitas vezes os “árbitros” das revistas nem conhecem o contexto em que um autor escreveu um artigo. Todos os textos têm um autor, um contexto e têm de ser revistos por autores de que se conhece o nome.

Há tantos temas para explorar e poucos lhe pegam com profissionalismo e com a leitura de documentos de todo o tipo, que por vezes nos parece que a História, como investigação e interpretação de fontes, acabou

SA — Deseja-se que o jornalista seja o mais objetivo possível, sem perda do direito à sua subjetividade. Vê aqui pontos de convergência com a atitude e o papel do historiador?

LRT — Para ser sincero não sei se gosto aí da palavra “subjectividade”, pelo menos referente ao historiador. Ou seja, a finalidade do historiador (e, por certo, do jornalista de investigação e de informação) é a objectividade. Isso não significa que não faça parte da sua cultura, por exemplo, a sua ideologia. A História nunca poderá ser uma ciência se for subjectiva ou — como às vezes se diz — intersubjectiva. O juízo crítico, que deve fazer parte da prática histórica e jornalística, não pode confundir-se com a opinião. Não digo que a opinião não possa e não deva existir no jornalismo. Claro que tem de existir — é fundamental numa democracia. Por exemplo, gosto de ouvir na Antena 1 a “Antena Aberta”, mas sei, antecipadamente, que o que vou ouvir são opiniões, mais ou menos imediatas, de pessoas de todos os meios sociais e de todas as culturas. De outro modo, gostaria de gostar (o pleonasmo é intencional) do programa da RTP1 “Prós e Contras”, mas gosto pouco e raras vezes, em especial nos casos em que não se apresenta apenas como um programa de opiniões, pró e contra. Muitas vezes tem a pretensão de ser um debate de “especialistas”. Porém, vê-se facilmente que quem lá vai são geralmente os “amigos” que estão à porta e a selecção não passa por uma escolha criteriosa. Por isso muitas vezes o programa é uma chatice, com toda a formalidade intelectual, e redunda em “Prós e prós”.

A crítica e o debate só existem quando damos o nome às nossas reflexões

“Há tantos temas para explorar e poucos lhe pegam com profissionalismo e com a leitura de documentos de todo o tipo, que por vezes nos parece que a História, como investigação e interpretação de fontes, acabou.”

SA  — Quais as principais diferenças que observa na investigação histórica que se fazia há 20 ou 30 anos e a atual?

LRT — Já, de algum modo, pude dizer qualquer coisa sobre o que penso. Não gosto que se julgue que digo que no meu tempo — qual “velho do Restelo” — é que era bom e hoje não se faz como deve ser. O que julgo é que, com as condições favoráveis de hoje, em termos de informação, de investigação e de escrita, se podia fazer muito mais e melhor e que, lamentavelmente, se considera que fazer história como se pretendia fazer há uns anos atrás não interessa a quem a faz e a quem a lê. Para dar uma opinião com um certo rigor profissional, devo lembrar que a história que aprendíamos nos anos 50 no ensino liceal e nos anos 60 na Universidade (falo da minha geração) era muito má, porque era meramente narrativa e era capaz de passar páginas e páginas, horas e horas, à volta de documentos, apenas para discutir um acontecimento ou uma simples data. Nada se falava, em termos de história económica, social ou política, no sentido profundo que devem ter esses conceitos. Por isso veio a falar-se, criticamente, de “história narrativista”, “documentalista” ou “acontecimental”. Foi nesse contexto que comecei a aprender história e a fazer história, embora deva salientar que tive alguns (poucos) grandes professores, até no liceu (como o Dr. Alberto Martins de Carvalho), que me criaram uma ideia diferente de História por que era necessário lutar.

SA — Essa ideia diferente de história, como refere, representa uma noção nova acerca do entendimento que se tem sobre a própria História. Quer isso dizer que surgiram estudos sobre áreas até então pouco conhecidas?

LRT — Lembro os Professores Sílvio Lima, Maria Helena da Rocha Pereira ou Silva Dias e mesmo alguns então assistentes que me davam uma noção diferente do que era a História. Lutámos por ela, tendo como referência a história dos Annales — que depois, numa visão (a meu ver) incorrecta e até pretensiosa, se chamou “História Nova” —, sempre com um sentido crítico em relação ao que íamos fazendo. E com isto surgiram obras em campos novos quase totalmente desconhecidos, como o Liberalismo, a República, o Estado Novo… E também em áreas como a Antiguidade (recorde-se a importância da Arqueologia de Jorge Alarcão, que não foi meu professor), na chamada “Idade Média” e na Época Moderna (em que foram especialistas de “nova vaga”, em campos diferentes, Silva Dias, Borges de Macedo ou Vitorino Magalhães Godinho). Tinha-se consciência que havia muito para fazer e fez-se muito, a começar com os próprios dicionários, como o Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, dos anos 60, que é um marco de viragem. Felizmente essa área fundamental teve a sua sequência em dicionários relativos a vários períodos e temas. O mesmo sucedeu com novas Histórias de Portugal, dirigidas por João Medina, José Mattoso, não esquecendo, em moldes diferentes, a de um só autor, Veríssimo Serrão. Mas hoje, creio que há a noção de que o passado é passado e só interessa o presente e o futuro, que, de resto, nos aparece muito sombrio, depois deste cataclismo da COVID-19. Há tantos temas para explorar e poucos lhe pegam com profissionalismo e com a leitura de documentos de todo o tipo, que por vezes nos parece que a História, como investigação e interpretação de fontes, acabou. Tudo, por vezes, se parece reduzir a “histórias” (que toda a gente faz, mesmo sem formação), porque é mais fácil fazer e ler, porque é mais sedutor.

O que se sabe de história do colonialismo, do anticolonialismo e da formação dos países independentes, sem passar por meras noções ideológicas? Quando vou à Torre do Tombo vejo lá uma meia dúzia de esforçados investigadores. Nada mais. Isto porque muitas vezes não se investiga tanto como seria possível na capital (sempre centralista e centralizadora) e não é possível a alguém de fora estar dias e dias em Lisboa — onde estão os nossos principais arquivos — a investigar

SA — São mais sedutores e fáceis de contar os “fait-divers” da história, para usar uma expressão do jornalismo?

LRT — Por isso falava atrás do império da “história-divulgação” (esquecendo que só se divulga o que se sabe profundamente) ou da “história global”, que, na verdade, esteve sempre no horizonte do historiador português, que procurava ler obras em todas as línguas e de todos os países e conhecer as suas histórias, mesmo que se dedicasse, como era natural, à história de Portugal. Hoje, se não aparecem obras ou artigos em inglês é como se não existissem para um avaliador, pois só eles são considerados, e às vezes são de uma grande pobreza. E são autores estrangeiros que são traduzidos e publicados, mesmo que muito pouco acrescentem ao que se sabe, esquecendo os autores nacionais, os “clássicos” e mesmo alguns actuais e jovens historiadores.

SA — Olhando para o nosso passado mais recente, que temáticas elencaria como possíveis objeto de estudo?

LRT — Vou dar-lhe alguns exemplos de temas que poderiam ser analisados: Fala-se tanto do Serviço Nacional de Saúde, mas o que se sabe da história da assistência (ou da não assistência) antes do SNS? Sabe-se genericamente bastante sobre a imprensa diária portuguesa do século XX — e o estudo monográfico dos vários periódicos? E a imprensa regional? O que se sabe da história local e regional, que deve ser analisada através da documentação imensa que existe nos arquivos, e não por simples curiosos locais (sem esquecer que por vezes nos ajudam)? O que se sabe de história do colonialismo, do anticolonialismo e da formação dos países independentes, sem passar por meras noções ideológicas? Quando vou à Torre do Tombo vejo lá uma meia dúzia de esforçados investigadores. Nada mais. Isto porque muitas vezes não se investiga tanto como seria possível na capital (sempre centralista e centralizadora) e não é possível a alguém de fora estar dias e dias em Lisboa — onde estão os nossos principais arquivos — a investigar. Mas, além disso, considera-se que temas como estes levam muitas horas a pesquisar e opta-se por temas e métodos fáceis onde às vezes não sabemos se estamos a falar de História ou de áreas confusas que arrumamos no título vago de “Ciências Sociais”. E, como sabe, eu sou daqueles que consideram que se devia estudar a sociedade através da colaboração e do filtro de ciências diversas que se entrelaçam.

Os acontecimentos mais significativos da época contemporânea são o liberalismo de 1820 e o republicanismo de 1910, a digressão fascista do Estado Novo e o 25 de Abril que deveria ter aberto as portas ao aprofundamento da democracia e ao desenvolvimento estrutural do país e não ao capitalismo monopolista e consumista que conhecemos

SA — Está a pensar no Centro de Investigação que criou…

LRT — Criei o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20), que desejava, em 1998, estudar o século que ia acabar, e também os séculos anteriores que o explicavam e o século que estava para vir. O que não aceito é uma espécie de “presentismo” temático e metodológico, que inclusivamente leva a esquecer o que outros fizeram. Será possível, por exemplo, falar da época Moderna sem citar os livros de Silva Dias? Digo isto porque me escandalizei com uma história que aí se publicou de novos historiadores, com o anúncio de novidade, em que nunca se citava o autor (e não só ele) que revolucionou o conhecimento da Época Moderna, na sua vertente ideológica, social e política, e abriu as portas ao estudo da Época Contemporânea na Universidade.

“Como sabe, eu sou daqueles que consideram que se devia estudar a sociedade através da colaboração e do filtro de ciências diversas que se entrelaçam”

SA — Em seu entender, quais os três momentos/acontecimentos da história contemporânea portuguesa que qualquer jovem deve conhecer bem?

LRT — Claro que ao falar de acontecimentos/momentos estamos a falar do início de períodos ou épocas muito mais extensas e complexas. Por isso não me custa dizer-lhe, de uma forma simples (mas gosto de fugir do simplismo), que os acontecimentos mais significativos da época contemporânea são o liberalismo de 1820 e o republicanismo de 1910, a digressão fascista do Estado Novo e o 25 de Abril que deveria ter aberto as portas ao aprofundamento da democracia e ao desenvolvimento estrutural do país e não ao capitalismo monopolista e consumista que conhecemos. E digo isto sem nenhum preconceito ideológico (sou um homem independente), mas numa concepção fundamentalmente objectiva, que demoraria a explicar.

Fotografias cedidas por Luís Reis Torgal

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João Figueira

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