Mafarricos e gambuzinos

 Mafarricos e gambuzinos

Tenho andado a ler um livro sobre espíritos e criaturas sobrenaturais do Japão chamados Yōkai que, embora tenham origem na mais longínqua história do país, continuam a ser parte integrante da cultura japonesa. De facto, muitos dos temas que nos fazem pensar no Japão — anime, manga, videojogos — têm raízes nestes seres saídos do folclore local.

Tanto quanto as criaturas em si — desde as kitsune (raposas que se transformam em mulheres sedutoras para ludibriar pessoas) até aos kappa (espíritos anfíbios de cabeça côncava que atacam nos rios) — acho muito interessante o esforço feito para capturar estes pedaços de mitologia num país onde durante muito tempo o foco na ciência suplantou qualquer outro interesse. Há séculos que se criam enciclopédias sobre os Yōkai que continuam, ainda hoje, a ser alvo de estudo.

O Japão tem uma tradição animista — de acordo com a qual qualquer coisa pode ter um espírito e estar “vivo” — o que contribui para a abertura à personificação do sobrenatural. Se tudo pode ter uma alma, então é mais fácil atribuir causas sobrenaturais a problemas reais. Por exemplo, quando um lenhador se perde de volta a casa ou nem consegue caminhar mais ao final do dia, não é exaustão, foi culpa de um nurikabe. E houve um Yōkai em particular que me fez pensar em Portugal, o kodama.

Um kodama é um espírito que, de acordo com o folclore japonês, começa a residir numa árvore quando esta chega aos cem anos. É um ser que ajuda a passar uma ideia de respeito pela natureza e a pensar duas vezes antes de cortar o que quer que seja. Também nos faz pensar que o que nos rodeia é parte da nossa cultura e merece respeito, seja humano ou não. E se qualquer coisa pode ter alma, a primeira da qual me lembrei foi o castelo de Montemor-o-Velho.

Eu cresci ao lado desta vila, a meio caminho entre Coimbra e Figueira da Foz, e o castelo domina toda a povoação, tendo sido uma fortificação decisiva na linha do Mondego e na criação de Portugal. Quando era miúdo imaginava muitas histórias no castelo que é um elemento marcante do imaginário local. Visto pelo prisma de um kodama, até cumpre com muita folga o prazo de cem anos para ter uma alma, já que o castelo existe (em mãos cristãs) desde 1064.

Existem histórias associadas ao espaço, como a Lenda das Arcas, uma espécie de caixa de Pandora à portuguesa. Conta o mito que, debaixo do castelo, existem duas arcas, iguais em tudo menos no conteúdo. Uma tem a “peste” dentro, enquanto a outra está cheia de ouro. Abri-las é a única maneira de descobrir qual é qual, assim que a linha entre a morte e a riqueza é muito fina. Embora estes contos façam parte do imaginário popular, penso que nunca ninguém se lembrou de dar uma personalidade ao castelo, que é um fio condutor entre o passado e o presente.

Um castelo assim é o símbolo da alma de um lugar, da cultura criada ao longo dos séculos pelas pessoas que habitaram o território. O que une uma comunidade são elementos como este e, numa época em que os heróis são cada vez menos regionais e cada vez mais globais (ou globalizados), é importante não perder estes detalhes.

No nosso país existem muitos espaços com a mesma carga histórica que o castelo de Montemor-o-Velho, por isso seria bom que em Portugal se visse o mesmo carinho por manter a cultura e o folclore vivo como no Japão. Quantas histórias parecidas aos Yōkai que mencionei não terão passado pelas bocas de lavadeiras numa fonte no meio de um bosque ou ao lado do rio? Ou das pessoas escondidas ao lado de um castelo enquanto passa uma trovoada?

José Hermano Saraiva, historiador já falecido, terminou um dos seus programas — filmado em Montemor — dizendo que “a lenda é uma história, mesmo quando a lenda não tem realidade por detrás é uma criação literária do grande autor anónimo que é o povo. E vocês acham que a gente deve desprezar a literatura do povo?”.

Quando o passado é um elemento que marca a diferença, temos que nos esforçar mais por documentar e manter a nossa mitologia viva. Acredito que podemos fazer muito mais e, quem sabe, criar uns Yōkai à portuguesa. Até já tenho nome. Mafarricos e Gambuzinos, o que será mais português que isto?

06/10/2020

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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