Memória e historiografia face ao Holocausto

 Memória e historiografia face ao Holocausto

Mika (Unsplash)

Publicada pela Editora Contexto (de São Paulo) em 2020, a obra “Holocausto e memória”, de Marcos Guterman, que aqui se procura apresentar seria, na minha perspetiva, o resultado sincrético de um esforço de síntese e de divulgação historiográfica, de uma abordagem jornalística sobre uma problemática relevante quer em termos da relação com o passado quer no que concerne ao equacionar de dilemas do presente, de uma tomada de posição por parte de um portador de pós-memória. Consciente ou inconscientemente, Marcos Guterman contribui, ainda, para a maior participação do Brasil — Estado-Nação predominante na América Latina e espaço de afirmação de diferentes sub-universos  socioculturais — no âmbito globalizado dos transdisciplinares cultural studies.

O autor do livro, historiador, jornalista e professor de jornalismo, é, igualmente, cidadão brasileiro de origem judaica e polaca, neto de cidadãos brasileiros que foram, também, cidadãos polacos de origem judaica numa primeira metade do século XX marcada, de forma impressiva, pelos antissemitismos. Os avós maternos de Marcos Guterman foram, mesmo, vítimas diretas e sobreviventes do Holocausto antes de emigrarem para o Brasil. A obra em apreço decorre, pois, deliberadamente, do olhar de um indivíduo, cidadão, historiador e jornalista estruturado a partir dessa pós-memória intensa e complexa.

Quanto à identificação dos fundamentos deontológico-epistemológicos e teórico-metodológicos de Holocausto e memória, trata-se de uma tarefa difícil. Fruto da sua experiência de vida e da sua multi-filiação intelectual e profissional, de acordo com os pressupostos dos cultural studies, Marcos Guterman opta por cruzar diversos registos. Destacaria, nomeadamente, as abordagens de resgate da memória e de homenagem a um determinado segmento de vítimas de várias modalidades de violência (os seus avós maternos e, através deles, milhões de outros seres humanos de origem judaica), de reflexão filosófica — no seguimento de Hannah Arendt — e de posicionamento cívico nos contextos da diáspora judaica e do Estado-Nação(ões) de Israel, de síntese/divulgação historiográfica e de caracterização/enquadramento jornalístico.

Segundo o autor, “O objectivo deste livro é, portanto, descrever e analisar as muitas formas de interpretar o Holocausto. Não se pretende, aqui, denunciar fraudes e distorções, embora, sempre quando for o caso, a natureza mentirosa ou preversa de determinadas “memórias”, destinadas a confundir os incautos e alimentar o negacionismo ou o antissemitismo, será ressaltada. A intenção é que a leitura dessas possibilidades de interpretação, em seu conjunto, permita que se dimensione melhor a enorme complexidade do tema, especialmente em atenção àqueles que sofreram na carne o que nem mesmo eles conseguem definir. Somente dessa maneira seremos capazes de começar a entender a intrincada trama emocional que envolve o Holocausto, que não pode ser descrito, em toda a sua profundidade, nem mesmo se pudéssemos usar todas as palavras do mundo.” (p. 23)

Face à multiplicidade de condicionalismos relevantes para a compreensão de cada fenómeno social global, será necessário que elenque e fundamente alguns dos vectores de contextualização do livro de Marcos Guterman, Holocausto e memória. Cito, em primeiro lugar, a reprodução ou a emergência de modalidades de antissemitismo e de filossemitismo, de revisionismo ou de negacionismo relativamente ao Holocausto. Correlacionam-se as mesmas, ainda, de forma mais ou menos directa, com diversos posicionamentos perante a actual crise dos regimes democráticos e face aos correlatos fenómenos de radicalização ideológico-política; perante a actuação, face ao conflito israelo-palestiniano e à situação nos Territórios Palestinianos Ocupados, por parte quer da “sociedade civil” e do Estado de Israel, quer dos múltiplos segmentos da Diáspora Judaica.

Refiro, em segundo lugar, por um lado, os debates sobre a função dos testemunhos das vítimas de violações sistemáticas de direitos humanos nos processos de estruturação da memória social acerca desses mesmos fenómenos; por outro, a relação entre historiografia ou outras ciências sociais e vivência cívica, nomeadamente quando se trata de reconstituir e analisar — ou de valorar e julgar — situações extremas de dominação e exploração ou, mesmo, processos de violência de massas. As expressões “história oral” ou, em alternativa, “documentação oral” representam, de alguma forma, as duas principais atitudes presentes nas referidas polémicas.

Os defensores — pós-modernos — da abordagem da “história oral” consideram que, existindo vítimas vivas e intelectualmente lúcidas, os respectivos testemunhos devem constituir a base (essencial ou exclusiva), tanto de todos os discursos não revisionistas e não negacionistas acerca das temáticas em apreço, como para todas as iniciativas de homenagem cívica. Quem adopta a lógica da “documentação oral” — neo-modernos — assume que os testemunhos das vítimas são, no âmbito de projectos de investigação, um dos sub-universos de documentação utilizáveis; que o contributo da investigação científica para a qualificação do debate cívico e da intervenção na realidade decorre da produção de um conhecimento tão objectivante quanto possível acerca de cada objecto de estudo delimitado.

Eelco Böhtlingk (Unsplash)

Destaco, em terceiro lugar, desde o imediato pós-Segunda Guerra Mundial, o peso do assassinato de mais de seis milhões de cidadãos de diversos países europeus, pelo facto de serem de origem judaica, quer no aumento da influência do ideário e das organizações sionistas na Diáspora Judaica, quer no apoio (ou na não oposição) de muitos países à criação na Palestina do Estado de Israel. Significativas são, ainda, as diferentes posturas assumidas em Israel — “sociedade civil” e aparelho de Estado —, bem como na Diáspora Judaica, relativamente às posturas observáveis, nas “comunidades judaicas”,  durante as décadas de 1920 e 1930 (aos “assimilados”, aos sionistas, aos “religiosos”); no que concerne às vítimas do Holocausto (aos ‘resignados’ assassinados, aos ‘resignados’ sobreviventes, aos resistentes).

Elenco, finalmente, a propósito da relação entre passado, presente e futuro, os confrontos em torno das “políticas de memória”. Neste caso, teríamos, por um lado, o debate acerca da legitimidade ou da operatividade da comparação entre o Holocausto e outras formas de genocídio anteriores à, coevas da ou posteriores à Segunda Guerra Mundial. Depararíamos, num outro plano, com a análise dos graus de instrumentalização da investigação e da divulgação, do ensino e da patrimonialização da memória do Holocausto em favor ou por parte, quer “dos judeus” — em Israel e na diáspora —, quer de todos daqueles que criticam regimes políticos (de direita, de centro ou de esquerda) responsáveis por processos de violação sistemática de direitos humanos — de violência de massas.

Almejando intervir, simultaneamente, nas qualidades de cidadão brasileiro de origem judaica e polaca e de neto de sobreviventes do Holocausto, de historiador e de jornalista, Marcos Guterman tentaria, pois, em Holocausto e memória, à maneira dos cultural studies, conciliar registos de difícil compatibilização. Analisa, em primeiro lugar, os condicionalismos e as características dos testemunhos prestados por sobreviventes do Holocausto. Considera, a este propósito, o modo como muitos dos sobreviventes ‘resignados’ (ou seja, não activamente resistentes) foram encarados, pelo menos até ao início da década de 1990, quer nos países de acolhimento em geral, quer mesmo em Israel e por estruturas associativas criadas no âmbito da Diáspora Judaica.

O autor de Holocausto e memória chama a atenção para a profunda contradição existente entre duas perspectivas diferentes. De um lado estariam aqueles que defendem a superioridade moral e cognitiva dos relatos explicitados por sobreviventes do Holocausto, bem como o dever ético de os mesmos prestarem testemunho. Em alternativa, Marcos Guterman evoca as limitações inerentes à memória informal, em particular quando se trata de vítimas de violência extrema; reivindica o direito das vítimas ao silêncio, quer por razões de ordem pessoal, quer sempre que os sobreviventes vivem em sociedades que optam por ignorar o antissemitismo radical/o Holocausto ou que são potencialmente hostis a indivíduos de origem judaica.

Nas palavras de Marcos Guterman, nem “tudo pode ser dito, seja porque a experiência do sobrevivente envolve situações incompreensíveis, extremamente dolorosas ou moralmente abjectas, seja porque há o imenso fardo da culpa de ter sobrevivido, enquanto toda a família e todos os amigos pereceram, seja porque a memória, afinal, é muitas vezes o repositório não de fatos concretos, mas de traumas insuperáveis. A ninguém neste mundo é permitido fazer julgamentos acerca desse comportamento ou dessas limitações; resta-nos, como historiadores de boa-fé, tentar apenas compreender de que modo essa experiência absolutamente excruciante molda a memória do Holocausto.” (p. 11)

Josh Appel (Unsplash)

Em Holocausto e memória, Marcos Guterman procura, também, posicionar-se relativamente à questão da possibilidade ou da inviabilidade de reconstituição do sofrimento sentido pelas vítimas do antissemitismo radical e do Holocausto. Defendo que este seria, no entanto, um propósito existencial ou filosófico, mas não historiográfico. Efectivamente, penso que a historiografia — tal como todas as outras áreas do conhecimento científico — não pretende recriar parcelas da realidade. Tem por objectivos produzir conhecimento o mais objectivante possível acerca da realidade e divulgar os resultados consolidados em cada momento, de forma a que os indivíduos e as organizações possam tê-los em conta para qualificarem as respectivas concepções e actuações.

Nesse sentido, para a historiografia, tanto os antissemitismos moderado e radical das décadas de 1920/1930 como o Holocausto são problemáticas de investigação e divulgação como quaisquer outras. Deve-se delimitar o objecto de estudo e demonstrar a relevância social do mesmo, apresentar os pressupostos deontológicos e epistemológicos adoptados, fundamentar a grelha teórica considerada e a documentação/as metodologias utilizadas, reconstituir e enquadrar, comparar e analisar, explicitar as conclusões alcançadas e debater as mesmas (com historiadores e outros cientistas sociais, com outros cientistas e com especialistas de outros tipos de saberes, com outros indivíduos e organizações), incorporar as críticas e os complementos considerados correctos.

Pode-se, ainda, com as cautelas e a sobriedade acrescidos devidos às vítimas, apoiar a estruturação de soluções tecnológicas derivadas. Tendo em conta a evolução ocorrida desde o final da Segunda Guerra Mundial e da interrupção do Holocausto, referiria os âmbitos do apoio aos sobreviventes e da justiça transicional, da concretização de políticas públicas e de práticas das sociedades civis com cariz preventivo, de intervenções humanitárias por parte de Organizações Internacionais e de Estados, da didáctica da História e da animação cultural, do património cultural e da museologia, da cultura organizacional e do jornalismo, da produção artística e das comemorações históricas, do lazer e do turismo culturais.

Ao longo de Holocausto e memória, Marcos Guterman concretiza, no entanto, sobretudo, um esforço de caracterização global e histograficamente actualizada do antissemitismo radical das décadas de 1920/1930 e do Holocausto. Essa narrativa é, em simultâneo, ilustrada — potenciada — por referências frequentes a situações específicas, relacionadas com indivíduos concretos. Dedica, finalmente, alguma atenção à apreciação da qualidade intelectual e do rigor ético de alguns dos discursos artísticos e políticos gerados — também em Israel — tendo como referência o assassinato de pelo menos seis milhões de cidadãos de países europeus pelo facto de os mesmos serem de origem judaica.

Tentando concluir a presente recensão crítica, diria, assim, que Holocausto e memória é, antes de mais, uma síntese historiográfica das leituras sobre o Holocausto surgidas depois do fim da Guerra Fria. Nessa abordagem, o genocídio em causa é contextualizado na escalada de antissemitismo — moderado e radical — verificada durante as décadas anteriores, nas possibilidades ampliadas de mobilização para a violência de massas e nos constrangimentos impostos pela Segunda Guerra Mundial, na pluralidade de componentes e nas contradições existentes no seio da Diáspora Judaica (mesmo face ao antissemitismo radical, ao totalitarismo e ao genocídio).

A presente obra de Marcos Guterman demonstra, também, que, mau grado as limitações observáveis nos planos da organização e da divulgação das actividades de investigação e de patrimonialização nos âmbitos das humanidades e das artes, das ciências sociais e das tecnologias delas derivadas, o Brasil é — podendo tornar-se mais — um parceiro relevante no debate global acerca do antissemitismo e do Holocausto, sobre a análise comparada entre aquelas e outras formas de violência de massas. Contribuem para essa centralidade a dimensão e as ligações entre a comunidade judaica brasileira e Israel/o conjunto da Diáspora Judaica; a escala do Brasil enquanto Estado Nação e a respectiva capacidade potencial para mobilizar toda a América Latina; a possibilidade de realização de análises comparativas com fenómenos como a desarticulação da grande maioria das comunidades indígenas e a escravatura, a continuada e sistemática perseguição dos “cristãos-novos judaizantes” (séculos XVI a XVIII) e a vigência de regimes ditatoriais (o Estado Novo e a Ditadura Militar).

Talvez as duas vertentes mais destacáveis de Holocausto e memória sejam, no entanto, por um lado, o modo como o autor analisa questões decorrentes das formas como têm sido quer acompanhadas as vítimas das referidas modalidades de violência de massas, quer encaradas as respectivas memórias. Por outro lado, o facto de Marcos Guterman assumir, em muitas das suas cambiantes — virtualidades e contradições —, uma postura associável ao sub-universo intelectual dos cultural studies: enquanto sujeito de pós-memória do anti-semitismo/do Holocausto e na qualidade de cidadão, enquanto historiador e jornalista especializado no acompanhamentos de fenómenos ideológico-políticos.

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João Paulo Avelãs Nunes

Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra / Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes e Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEISUC).

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