Na cama com Ofélia

 Na cama com Ofélia

Henrique Fialho: “Ao estarmos na cama com Ofélia não estamos, porém, no divã com Ofélia. A cama é o lugar por excelência das duas melhores coisas que a vida tem, o sono e o sexo. De ambos se espera muita criatividade. Em matéria de sonho, Ofélia tem criatividade de sobra. Resta saber que criatividade tem em matéria de sexo”.

É um encontro entre dois velhos cúmplices das artes de palco, com especialidade em teatro. O pretexto é Ofélia e a sua relação amorosa com Pessoa, agora dramatizada e mostrada publicamente. Afinal que Ofélia é esta, a quem Pessoa, segundo se crê, declarou-se durante uma falha de luz no escritório, citando Hamlet?…

O Fernando, ator e encenador, dialoga em forma de entrevista com o Henrique, dramaturgo e escritor — amigos de longa data e ambos apaixonados pela escrita e pela representação. É um daqueles encontros — poderia ser de conversa à lareira — à moda antiga, sem pressa e sem olhar para o relógio ou atender o telemóvel. Aqui o que importa é a palavra, o que se diz e pensa sobre o ato criativo, a natureza humana, a linguagem, a vida.

Esta é também uma peça jornalística à maneira antiga, sem cortes desnecessários nem preocupações exacerbadas com a extensão do parágrafo ou do texto. O que importa, já foi dito, é a palavra e a reflexão, numa era de intenso ruído. Vamos a ela, começando por uma breve apresentação dos intervenientes.

Henrique Manuel Bento Fialho (Rio Maior, 1974) é licenciado em Filosofia, variante de ensino. Tinha 19 anos quando começou a publicar em revistas locais. Estreou-se em livro em 1997. Desde então, publicou obras de poesia, ficção e ensaio. Os seus livros mais recentes são a colectânea de contos A Festa dos Caçadores (Abysmo, 2018) e o livro de poemas Estalagem (Medula, 2019). Em 2019 também reeditou, em versão revista e aumentada, os contos de Call Center (Companhia das Ilhas, 2014, 2019). Tem colaboração dispersa por variadíssimas publicações colectivas, revistas e antologias. Entre as várias obras que prefaciou destaca a Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa (Exodus/7 Dias 6 Noites, 2008), reeditada em Marrocos no ano de 2010. Na Cama Com Ofélia é a sua primeira peça para teatro.

Fernando Mora Ramos (Lisboa, 1955) é Director do Teatro da Rainha desde 1985. Iniciou a sua experiência teatral em 1972, no Teatro dos Estudantes Universitários de Moçambique. Frequentou o Conservatório Nacional entre 1973 e 1975, passando a integrar nesse ano a equipa fundadora do Centro Cultural de Évora. Fez um estágio no Piccolo Teatro de Milão como bolseiro da Fundação Gulbenkian e tem um Masters em Estudos Teatrais pela Universidade de Paris III / Sorbonne Nouvelle. Vem, desde então, desempenhando vários cargos de relevo na área teatral. Realizou e participou, como encenador e actor, em mais de uma centena de criações em Portugal e no estrangeiro. Encontramo-lo igualmente, como actor, em filmes de João César Monteiro e de Jorge Silva Melo. Coordenou e foi autor do livro “Quatro ensaios à boca de cena / Para uma política teatral e da programação”, com José Luís Ferreira, Américo Rodrigues e Manuel Portela, editado pela Livros Cotovia em 2009.


Fernando Mora Ramos — Henrique, a perspectiva de um drama heteronímico, no início, era um acto supostamente muito implosivo — pensando drama igual a conflito — ou seria o contrário…? Pano para multiplicar mangas, já que a criatura do criador em causa é em si a de um multiplicador de casos e biografias, apenas tendo como limite o próprio tempo físico?

Henrique Fialho — Pano para mangas dá esta pergunta. O “drama heteronímico”, que, no caso pessoano, assume contornos de “drama em gente”, vai ao ponto de colocar em causa a existência do seu próprio criador. É Álvaro de Campos quem o diz: «Fernando Pessoa não existe». A minha sugestão é que desconfiemos desta assertividade. Julgo preferível partir de um princípio crítico, profilacticamente distanciado, para não sermos contaminados pelo vírus do deslumbramento que facilmente se contrai ao lidar com o fingimento autofágico da obra em causa.

“Há uma exacerbação do desejo de contacto com o outro que se alimenta de reacções puramente abstractas, cada vez mais reduzidas à significância emoji. Depois temos o discurso de ódio protegido pela distância, muito alimentado pelos chamados “perfis falsos”.

Henrique Fialho: “O que há de radical em Pessoa é o “drama em gente” ser acompanhado por biografias, horóscopos, aspectos físicos”.

O que supomos saber é ter havido um homem chamado Fernando Pessoa, que viveu entre 1888 e 1935, que sobrevivia das cartas comerciais que escrevia em inglês e francês para várias firmas, ao mesmo tempo que se matava a escrever poemas, ficções, ensaios. Uso o verbo matar no sentido em que o poeta Ruy Belo o usou, para designar esta coisa de escrever como um suicídio: «Ao escrever, mato-me e mato». O próprio Bernardo Soares, “semi-heterónimo” que em muito se confunde com o próprio Pessoa, escreve a certa altura no Livro do Desassossego: «Para criar, destruí-me».  Nada disto é especialmente original naquela transição do século XIX para o século XX. Tenhamos em vista o je est un autre, de Rimbaud, ou o eu próprio o outro, de Mário de Sá-Carneiro. O desenvolvimento da Psicanálise terá contribuído sobremaneira para a descoberta desta alteridade inerente ao sujeito, que tem no mito de Narciso uma matriz simbólica muito forte. Outro exemplo extraordinário de criação heteronímica foi levado a cabo pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. A dúzia de autores que arquitectou para se expressar não eram apenas nomes diferentes do seu, abordavam os temas sob perspectivas diversas. Quinze títulos em dois anos é obra.

O que há de radical em Pessoa é o “drama em gente” ser acompanhado por biografias, horóscopos, aspectos físicos. A certa altura fala-se até na possibilidade de virem a ser divulgadas fotografias do triunvirato mais conhecido. Teria sido curioso ver as fotografias. Agora a ideia de uma obra heterónima «do autor fora da sua pessoa» não pega. Tudo se passa dentro da pessoa Pessoa, como uma implosão da personalidade, a dado momento ameaçada pela loucura, certo, mas também enquanto encontro do ser com a sua alteridade intrínseca. Nenhum de nós é uma e a mesma coisa a todo o momento. Para isso inventaram-se robots.

O eu-filho não é o mesmo que o eu-pai, o eu-amante não é o mesmo que o eu-amado, e, não obstante a adequação do comportamento às circunstâncias, este eu é sempre uma e a mesma entidade. Bernardo Soares, que é também Álvaro de Campos, que é também Fernando Pessoa, talvez seja quem melhor definiu a natureza desse “drama em gente”: «Sou a cena nua/viva onde passam vários actores representando várias peças». De maneira que Bernardo criou em si várias personalidades, tal como Fernando o fez. Por exemplo, criando Bernardo. O resto é jogo: Caeiro teve por discípulos Reis e de Campos. Este irritava Pessoa, talvez porque nele se revia. É irritante concluir que somos mais nós numa criação nossa do que em nós mesmos.

Notemos que, a despeito do estilo desigual, em toda essa gente se cruzam pensamentos comuns, encontramos até por vezes alguns decalques. Se a memória não me falha, Ricardo Reis diz: «Prazer, mas devagar». Já Álvaro de Campos, afirma: «Romantismo, sim, mas devagar». São todos contemporâneos uns dos outros, nenhum deles nasceu na Idade Média ou na Grécia Clássica. Existem num mesmo tempo histórico. Na célebre carta a Adolfo Casais Monteiro, datada de 1935, fala-se nas «várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo». E explica-se: em Caeiro está todo o poder de despersonalização dramática, em Reis toda a disciplina mental, em Álvaro de Campos, «a emoção que não dou nem a mim nem à vida». O problema é: devemos confiar neste desenho?

A problemática da despersonalização é muito contemporânea e obriga-nos a repensar a verdade do sujeito. Quem é quem na rede? O ser desmultiplica-se aí em inúmeros avatares, alter-ergos, ficcionando o eu, geralmente embelezando-o, decorando-o, para fazer passar de si mesmo uma imagem atraente e sedutora. Há uma exacerbação do desejo de contacto com o outro que se alimenta de reacções puramente abstractas, cada vez mais reduzidas à significância emoji. Depois temos o discurso de ódio protegido pela distância, muito alimentado pelos chamados “perfis falsos”.

Nada disto parece criativo, mas em certa medida é pura literatura, a vida transformada em ficção sem direito a contraditório, debate ou discussão. É puro exibicionismo. Daí que seja cada vez mais difícil destrinçar a realidade da ficção, aquela parece-se muito mais com esta do que é suposto esta se parecer com aquela. Arno Gruen fala da loucura da normalidade, mas está na hora de falarmos de uma normalização da loucura que leva a que passemos pela vida como heterónimos de nós próprios. E para tal basta-nos um nome.

FMR — E de repente Ofélia, a do Pessoa e a Ofélia das Ofélias, toma conta do território a ficcionar, cama dentro e cama fora… foi ela que se impôs como acontecia com as personagens de Pirandello que o cercavam no escritório, nascidos das paredes, vozes que se sobrepunham, implorando existência por vezes?

HF — Nenhuma personagem alguma vez me implorou para existir tanto quanto eu lhes imploro para viver nelas. Em Janeiro de 2011 publiquei um livrinho de poemas intitulado A Dança das Feridas, onde encenei cartas ou simples mensagens trocadas entre pares amorosos que, de uma forma ou de outra, passaram a integrar o meu imaginário. Reparei, entretanto, que me tinha esquecido de Fernando Pessoa e de Ofélia Queiroz. A Ofélia de que agora falamos surge da necessidade de preencher esta lacuna.

Há uma coincidência engraçada na revisitação, os 9 anos que passaram. Normalmente costuma-se falar em duas fases na relação mantida ente Pessoa e Ofélia. A primeira é fixada pelas cartas trocadas entre 1919 e 1920, a segunda pelas cartas datadas do período que vai de Setembro de 1929 a Janeiro de 1930. Há, todavia, uma terceira fase, a do hiato compreendido entre 1920 e 1929. Ou seja, 9 anos. Esse período de silêncio interessa-me mais do que qualquer outro, já que, como é sabido, a ausência e o silêncio alimentam o desejo.

Mas dizes bem, Ofélia das Ofélias. O ponto de partida são as famigeradas Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, com as quais mantenho uma relação ambivalente. Há muitos anos, quando as folheava, chegavam a repugnar-me pelo que revelavam de uma intimidade que eu julgava preferível manter-se oculta. Com o passar dos anos, a repugnância deu lugar a algo que não sei explicar muito bem o que é. Aquela retórica amorosa acriançada irrita-me, mas o jogo exercido entre o par amoroso, tendo como intermédio privilegiado a escrita, fascina-me.

Há um ensaio de José Gil, intitulado A máquina de amor de Ofélia-Fernando Pessoa, que influenciou a renovação da leitura que agora faço das Cartas, pelo que nele fui encontrar de um plano da escrita entendido como prova de verdade. Gil chama-lhe «jogo da sinceridade das palavras». Começa com Ofélia a exigir um compromisso por escrito, desenvolve-se com Pessoa acedendo ao jogo, mas fazendo uso das suas tácticas de prestidigitação, e termina com a incapacidade deste para sair de si mesmo e se entregar a um outro que não todos esses outros que dentro dele o “marionetavam”. Ofélia ganhou, apesar de não ter ficado com o prémio.

Mas se é verdade ter sido este o meu ponto de partida, também é verdade que a minha Ofélia tem pouco de Queiroz. Apropriei-me de um certo linguajar e de excertos, eventualmente de alguma angústia que terá oleado aquela máquina amorosa, mas ofereci-lhe uma poesia que fui respigar noutras latitudes.

Há nisto acasos que são deliciosos. Conta-se que a relação começou com uma falta de luz no escritório onde ambos trabalhavam, aproveitada por Pessoa para se declarar citando Hamlet. Depois terá beijado a sua Ofélia como um louco. Questiono-me se Pessoa teria citado Dante caso Ofélia se chamasse Beatriz, questiono-me sobre o que teria ele citado se Ofélia se chamasse Maria Albertina. Este início da relação com uma invocação de Hamlet, deslocou-me, como não podia deixar de ser, para a Ofélia de Shakespeare. E desta parti para a Ofélia pintada por John Everett Millais, que teve como modelo a incrível Elizabeth Siddal, a cuja história cheguei através do romance Adoecer, de Hélia Correia. Todas estas mulheres serviram para compor a minha Ofélia, sendo certo haver nesta algo de mim que escapou a todas as outras.

Há um ensaio de José Gil, intitulado A máquina de amor de Ofélia-Fernando Pessoa, que influenciou a renovação da leitura que agora faço das Cartas, pelo que nele fui encontrar de um plano da escrita entendido como prova de verdade. Gil chama-lhe «jogo da sinceridade das palavras». Começa com Ofélia a exigir um compromisso por escrito, desenvolve-se com Pessoa acedendo ao jogo, mas fazendo uso das suas tácticas de prestidigitação, e termina com a incapacidade deste para sair de si mesmo e se entregar a um outro que não todos esses outros que dentro dele o “marionetavam”. Ofélia ganhou, apesar de não ter ficado com o prémio.

Mas se é verdade ter sido este o meu ponto de partida, também é verdade que a minha Ofélia tem pouco de Queiroz. Apropriei-me de um certo linguajar e de excertos, eventualmente de alguma angústia que terá oleado aquela máquina amorosa, mas ofereci-lhe uma poesia que fui respigar noutras latitudes.

Há nisto acasos que são deliciosos. Conta-se que a relação começou com uma falta de luz no escritório onde ambos trabalhavam, aproveitada por Pessoa para se declarar citando Hamlet. Depois terá beijado a sua Ofélia como um louco. Questiono-me se Pessoa teria citado Dante caso Ofélia se chamasse Beatriz, questiono-me sobre o que teria ele citado se Ofélia se chamasse Maria Albertina. Este início da relação com uma invocação de Hamlet, deslocou-me, como não podia deixar de ser, para a Ofélia de Shakespeare. E desta parti para a Ofélia pintada por John Everett Millais, que teve como modelo a incrível Elizabeth Siddal, a cuja história cheguei através do romance Adoecer, de Hélia Correia. Todas estas mulheres serviram para compor a minha Ofélia, sendo certo haver nesta algo de mim que escapou a todas as outras.


“Ao estarmos na cama com Ofélia não estamos, porém, no divã com Ofélia. A cama é o lugar por excelência das duas melhores coisas que a vida tem, o sono e o sexo. De ambos se espera muita criatividade. Em matéria de sonho, Ofélia tem criatividade de sobra. Resta saber que criatividade tem em matéria de sexo”.

FMR — Um lado drama estático, um certo lugar mental dos heterónimos actuando no espaço mas invisíveis, de corpo ausentes e a presença, muito corpo em sujeito, de uma Ofélia, estão colocados, confinados, por magia dramática e espírito laboratorial, em Na Cama Com Ofélia — um título que é uma blague vária. Essa dimensão entre o sonho e a realidade é também muito pessoana, não? E o desencontro masculino feminino? Ou melhor: literatura como vida e vida sem corpo como possibilidade em profunda contradição…

HF — Não direi entre o sonho e a realidade por partir do princípio de que o sonho não se opõe à realidade, é antes uma das suas dimensões. Para os surrealistas veio a transformar-se na matéria criativa por excelência, de acordo com a crença freudiana de uma verdade latente nos conteúdos oníricos. Desconfio da existência desta verdade, mas reconheço que não podemos negar os efeitos bem reais do sonho num corpo que sonha, seja quando se ejacula com um sonho erótico ou quando se acorda com uma dor horrível onde em sonhos se levou uma pancada.

Inclino-me para a leitura de Michel Onfray no seu Anti-Freud, quando ao referir-se à Interpretação dos Sonhos fala de um mundo mágico, supersticioso, um anti-mundo, «um teatro no qual os chapéus são pénis, as fechaduras vaginas, as caixas úteros». Neste sentido, algum Pessoa até pode ser lido como um surrealista anterior ao surrealismo. O que nele se passa de absolutamente freudiano é «a denegação do corpo e a recusa do real», algo que o traz cativo numa existência permanentemente assaltada pela mente, uma existência castrada pelo gozo do exercício mental.

Ao estarmos na cama com Ofélia não estamos, porém, no divã com Ofélia. A cama é o lugar por excelência das duas melhores coisas que a vida tem, o sono e o sexo. De ambos se espera muita criatividade. Em matéria de sonho, Ofélia tem criatividade de sobra. Resta saber que criatividade tem em matéria de sexo. O estado permanentemente ambíguo em que a quero não tem que ver com nenhuma negação do mundo, mas sim com o mistério que dá forma a um amor sem corpo para amar. A minha Ofélia é corpo-desejo, é uma mulher que podia ter o destino das que a inspiraram (suicidar-se, adoecer, refazer-se), mas acaba por ter destino diferente.

A realidade é, pois, a de um corpo desesperando pelo encontro com outro corpo que não lhe chega senão sob a forma de fantasma. Lamento informar, mas os heterónimos são fantasmas, sombras de um Pessoa que trabalhava num escritório, bebia copos no Martinho da Arcada, contava anedotas ao barbeiro que lhe aparava o bigode. Os heterónimos são criaturas ou entidades que oferecem cor ao pensamento, são tons, não existem senão enquanto tons. Nas Cartas, a dada altura, provavelmente já enfastiado ou frustrado com uma relação que sabia não ir dar em nada, Pessoa socorre-se de Álvaro de Campos para encarar Ofélia. Ora, nem Álvaro de Campos nem nenhum outro heterónimo podiam dar a Ofélia aquilo que ela mais desejava: corpo.

Às tantas dei comigo a pensar no amor místico. Hamlet sugere a Ofélia que vá para um convento. O que seria de Ofélia num convento? Provavelmente ter-se-ia transformado numa Margarida Maria Alacoque, cujos êxtases surgem-nos descritos com tal rigor que chegamos a considerá-los abjectos pelo que têm de tétrico. Não consegui ir tão longe, até porque não tenho em mim esse apelo místico.

FMR — Agradou-me particularmente a misturada de níveis discursivos, cada heterónimo com a sua pancada, particularmente como, fora disso, a figura feminina voa cavalgando uma palavra poética que transcende, por assim dizer, o dramático, assumindo-se claramente uma osmose entre o desejo feminino e a palavra lírica que o pode libertar… estou a ver bem…?

 HF — Em parte.

Há, de facto, vários níveis discursivos, resultado, presumo, da minha própria história com as palavras. Formei-me em filosofia desprezando a ficção, comecei a escrever poesia para me libertar da filosofia, fui dar à ficção por haver percebido que para ela tudo conflui. É natural que hoje em dia tudo isso se misture nos meus textos.

Como leitor, sempre preferi o inclassificável, o texto que recusa a rotulagem, aquelas obras que são difíceis de arrumar nas livrarias por não corresponderem a nenhum género específico. Nas livrarias encontram-se, por vezes, secções para Outros. A principal característica destes é a sua autonomia face aos demais, que facilmente se identificam com Filosofia, Poesia, Literatura, etc. Gosto dos Outros, sempre gostei. Prefiro os Outros.

Mas tu chamas heterónimos às criaturas que surgem em torno de Ofélia, o que se deve ao facto de eu, perversamente, lhes ter atribuído palavras dos três principais heterónimos pessoanos. Estou certo de que aquelas entidades não resistirão à tentação de assim serem rotuladas, podendo até estabelecer-se um jogo de adivinhação sobre quem é quem. No entanto, são e não são heterónimos. Eu prefiro vê-los como pequenos demónios, em palco resultam como projecções de um conflito interno, mental, que não corresponde necessariamente ao “drama em gente” de que há pouco falávamos.

As criaturas que saem debaixo da cama, sentam-se aos pés da cama, ajoelham-se à cama, andam à volta da cama, mas não se metem na cama, acabam até algo ridicularizadas em toda aquela situação, pela total inaptidão que demonstram ter para lidar com o real que a ausência de corpo lhes determina. O mais que lhes dei de carne foi alergia. Ao contrário, Ofélia é carne até a sonhar, é paixão quando está sonâmbula ou em transe espírita. É mais real em qualquer um desses estados do que as criaturas o são de olhos abertos.

O protagonismo, por assim dizer, vai para esta figura feminina que justifica a presença daquelas criaturas assexuadas naquele quarto. Ofereci-lhe a minha poesia, é um facto, mas não para que pudesse libertar-se do desejo. Para mim a poesia resulta desse desejo insatisfeito, do desconsolo. Em certo sentido pode até dizer-se que é uma poesia que se manifesta contra a poesia, a grande ladra. É uma poesia que, paradoxalmente, intenta resgatar para aquela que ama o amado que a poesia lhe roubou.

De regresso ao caso Ofélia-Pessoa, imagina o que terão sido aqueles anos de hiato. E os que se seguiram ao segundo termo da relação, até à morte de Pessoa. É verdade que esse silêncio não precisa de ser preenchido, é preferível mantê-lo calado. Não foi minha intenção preencher esse silêncio, mas não consigo deixar de pensar no que possa ele ter significado. Se «uma razão sem paixão é a ruína da alma», como assevera Michel Meyer, uma alma sem paixão pode muito bem ser a ruína de um corpo. Digo eu.

“A poesia vive muito de liberdades que servem para fugir aos porquês. Há tempos, estava a falar com um amigo que me contava a história de um editor que o deixou entalado quando lhe perguntou uma coisa tão simples como esta: mas porque é que você escreveu isto assim? Ele não soube responder, não havia como responder, aquilo tinha saído assim, não era para ter explicação”.

FMR — As tuas didascálicas são muito precisas, muito imagéticas, um certo filme nelas surge, pintura talvez… há uma dimensão pictórica nas propostas, uma certa época… um certo modo de pintar interiores e em particular o “quarto” como espaço-mundo, quadro-quarto…

HF — A precisão pode ser insegurança. É a primeira peça que escrevo. Também pode ser vício narrativo. A dado momento, senti necessidade de apagar imensas indicações. Lembrei-me que estava a escrever um texto para ser representado, não para enfiar na cabeça de um actor como num robot se enfia um chip. Aconteceu imaginar muito o como fazer, movimentos, acções, expressões corporais, possíveis relações entre objectos presentes no cenário, aspectos simbólicos… Sou obcecado por estas coisas, tudo tem que ter um sentido mesmo quando o sentido é não haver sentido algum.

A poesia vive muito de liberdades que servem para fugir aos porquês. Há tempos, estava a falar com um amigo que me contava a história de um editor que o deixou entalado quando lhe perguntou uma coisa tão simples como esta: mas por que é que você escreveu isto assim? Ele não soube responder, não havia como responder, aquilo tinha saído assim, não era para ter explicação. Eu ficaria em pânico numa situação destas. Mesmo que a coisa saia espontaneamente, tenho de inventar uma explicação para ela a posteriori. Estou sempre a analisar-me, é uma chatice, deveras cansativo. É estúpido e inútil, mas é assim.

Quando fiz a oficina de escrita com o Joseph Danan houve um exercício que me foi particularmente satisfatório, imaginar uma pequena peça a partir da observação de um quadro. Basicamente tratava-se de inventar uma história para uma pintura, um pouco como a Paula Rego faz quando é entrevistada sobre os seus quadros. Já aqui fiz uma referência ao quadro do John Everett Millais, que me serviu de mote para pensar um quarto que fosse, também, uma representação possível do lugar da natureza na acção. A cama não é mera cama, é um leito. Um leito pode ser muita coisa: curso de água, casamento, superfície inferior de uma pedra…

Tive em vista um interior que guardasse qualquer coisa de um exterior idílico, com elementos que pudessem sugerir um universo natural contrastante com o contexto supostamente antinatural em que a acção decorre. Por outro lado, quis oferecer algum conforto às criaturinhas para que não se sentissem totalmente desprovidas de sentido. Até arranjei umas flores para o pastor amoroso, embora não esteja certo de que ele as tenha apreciado.

FMR — Encaras este material como quase acabado ou imaginas desenvolvimentos outros, desde logo a partir desta primeira mise em place lida…

HF — O que está acabado não tem interesse nenhum. Olha, para não ir mais longe, o interesse do Livro do Desassossego reside precisamente no seu carácter fragmentário, para sempre inacabado e aberto a intermináveis reorganizações. Este material está no estado em que a Ofélia se encontra, desejoso de encontrar um corpo e com ele se deitar numa cama para fazerem muitos filhos e serem felizes para sempre.

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Fernando Mora Ramos

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