Na existência deliberada da minha Liberdade

 Na existência deliberada da minha Liberdade

Arte de rua, Lagos.

Faz hoje anos, cantei a canção de parabéns ao meu pai.

Naquele pedaço de letra que diz: “muitos anos de vidaaaa” o meu pai e eu trocamos um revirar de olhos que queria dizer “bem sabemos que é capaz de não ser exatamente assim, não é?”, mas cantámos com convicção e cantámos alto e o dia foi grande e bom.

No ano anterior estava bestial. São que nem um pêro. Forte como o Ferro.

No ano anterior o tempo não era sequer uma consideração. Teríamos todo o tempo.

Naquele ano sabíamos que não haveria muito mais.

A verdade é que isto de ser Humano se preenche de esperanças e, mesmo quando as evidências informam que a vida é contada, só a esperança ganha alento.

Só que a esperança para um existencialista nunca é alheada dos factos e o facto era que ele sabia (e eu também) que os dias não seriam muitos, ariscávamos ter 2 a 5 anos. Era a nossa meta e, entretanto, muito se poderia fazer.

A vida é feita de sentidos para os dias. De sentidos lá mais à frente desde que cada passo se experimente com entrega.

A ideia de ser em autenticidade obriga a encarar de frente as coisas. Diz que são os factos. E o facto era que o sacana do cancro o tinha apanhado bem, apesar de parecer que, naquele dia, estava controlado.

Na verdade, era chegada a hora de falar sobre o fundo da vida, o que tem de ser dito antes que ela nos fuja.

Então um dia resolvi perguntar-lhe se tinha voltado a Deus.

Olhou para mim como se eu estivesse maluca! Respondeu-me assim (quase) ipsis verbis:

Parece que não me conheces! Que pergunta é essa? Sabes muito bem que esse foi um assunto que resolvi na minha cabeça por volta dos 19, 20 anos. Quando as coisas ficam bem resolvidas não se deve voltar a elas. A minha espiritualidade não passa por uma religião, serei, quando muito agnóstico, mas sou essencialmente aquilo em que acredito dos valores, da vida, da dignidade, da liberdade… não de uma qualquer confissão. Como é que isso faria sentido agora?

Falámos, como sempre, do sentido da vida e de como a morte é uma evidência mesmo quando distante. Então, como fingir não a ver se ela se põe mesmo à nossa frente?

De outra vez, ouvi-lhe outra afirmação lapidar:

Isto é o que é. Reparem, para mim não vai custar nada. Para vocês, que “cá” ficam… para vocês é que a coisa será difícil. Cada um terá de fazer o seu luto, à sua maneira. Eu não perco nada. eu simplesmente vou acabar.

Enquanto a iminência do fim da vida faz muita gente negar qualquer evidência, eu e o meu pai ficávamos a falar, sem tempo, sobre essa visão desassombrada de tudo.

As coisas são o que são. Viver e saborear cada dia, viver e cada dia saber que a seguir tudo poderíamos fazer ou cumprir melhor. Existir em plenitude. Ser! Indubitavelmente sós, tantas vezes. Condenados à nossa própria liberdade sem a temer.

Fazer, o que quer que seja que se faça na vida, por que é o que se sabe que se tem de fazer.

Cumprir quem se é.

A morte é só mais um instante que nos garante o valor de tudo. A morte não é difícil, Viver é.

Neste século a humanidade melhorou? Eu atrevo-me a dizer que nem por sombras. Apesar de se saber cada vez mais, apesar de se conhecer, cada vez melhor, tudo, desde a origem ao amanhã, isto da criatura humana não é coisa fácil de perceber

Uns anos antes, a propósito do estado a que víamos chegar o mundo, os conflitos incessantes (na altura os noticiados horrores na Síria), a percentagem dos mais escandalosamente ricos do planeta por comparação com a percentagem escandalosa dos mais desafortunados do “mesmo” mundo, a cegueira do consumo e dos excessos, os abusos, a estupidez… Dizia o meu pai que não percebia como é que estes tipos (essa entidade estranha e sem rosto a quem nos referimos como os ‘donos disto tudo’), como os tais tipos conseguiam dormir com os dramas à solta no mundo. Nessa ocasião, lembro-me de lhe ter dito que aquela interrogação não fazia sentido, não fazia sentido nenhum porque jogava com percepções e valores distintos sobre a vida.

Se “esses tipos” fossem como ele, não dormiriam porque a vida como a víamos estava podre, estragada, alheada de qualquer sentido ético (quanto mais prático) da dignidade humana. Se ele fosse como “esses tipos”, dormiria em paz porque a vida dos outros lhe não faria qualquer diferença. E esse era ainda, pleno século xxi entrado, o drama para que não víamos saída. fosse como fosse, o meu pai era daqueles que diziam sempre “a História não anda para trás. Seja como for, o mundo vai sempre melhorando…” (ando a ver se não me esqueço disto).

Neste século a humanidade melhorou? Eu atrevo-me a dizer que nem por sombras. Apesar de se saber cada vez mais, apesar de se conhecer, cada vez melhor, tudo, desde a origem ao amanhã, isto da criatura humana não é coisa fácil de perceber.

Parece que nos tornámos superficiais, parece que já só lemos a linha de chamada e seguimos para outra coisa qualquer, sempre com pressa. Tenta adiar-se o fim não o pronunciando e isso, em vez de o diferir, afasta-nos do sentido de tudo

Se desde sempre me lembro das discussões acerca do papel da ciência, da importância da tecnologia, do tempo para ocupar nos diversos afazeres que conferem senso de pertença, de realidade e ilusão aos indivíduos, esse tempo de pensar (mesmo) a vida nunca se alcançou.

Parece que nos tornámos superficiais, parece que já só lemos a linha de chamada e seguimos para outra coisa qualquer, sempre com pressa.

Tenta adiar-se o fim não o pronunciando e isso, em vez de o diferir, afasta-nos do sentido de tudo.

Há palavras urgentes. Vida é uma delas, certamente. Morte também. E penso num dos trabalhos mais marcantes do Miguel Fragata e da Inês Barahona (A Caminhada dos Elefantes, 2013). Em palco, o Miguel, sozinho no meio de figuras de elefantes em marcha para se despedirem de um amigo, pede várias vezes que a miudagem o diga: “a morte”, “a morte”… para quê? Para a olharmos nos olhos e lhe dizermos – Não tenho medo de ti! Fiz a minha vida. Sei o que vivi. Fui e existi cumprindo-me.

Definitivamente só a Arte nos faz suportar a vida.

Naquele ano, um mês e três dias depois, o meu pai morreu.

Um dia, todos terminaremos. Importa mesmo é que, enquanto aqui andamos, o que fazemos nos cumpra: que viver é que custa, mas custa menos se, na existência deliberada da minha liberdade, eu nunca esquecer a responsabilidade pelo coletivo que em mim se tem também de cumprir.

A verdade é que a Terra gira, apesar de tudo. E a vida segue, todos os dias. Como se todos os nossos mais caros por aqui estivessem sempre… quando já nada é a mesma coisa.

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Maria Jorge Ferro

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