Não depois, mas agora

 Não depois, mas agora

Patricia de Melo Moreira/AFP

O assunto é sempre relevante, embora em alguns momentos, como agora, se destaque na ordem do dia. É um enorme equívoco considerar, com o argumento de que apenas lhe amplia a projeção, que é «perigoso» combater ideias, práticas e organizações de natureza fascista – no sentido amplo e trans-histórico conferido à palavra –, e também as de teor racista e xenófobo, com palavras bem claras e sonoras, com legislação atenta e firme, e com iniciativas enérgicas do lado da cidadania. Pior ainda é afirmar que deve aceitar-se a sua existência e circulação, invocando que o sistema democrático a todos deve integrar, ouvir e respeitar. Como se fosse dever deste aceitar e proteger os seus inimigos, aqueles que o querem desvirtuar ou destruir, e que pretendem, em primeiro lugar, combater os valores e direitos mais fundamentais sobre os quais assenta a sua existência. Uma existência, não pode esquecer-se, que tantos esforços requereu e que exigiu combates com milhões de vítimas.

Ao longo dos últimos cento e vinte anos, são inúmeros os exemplos que confirmam o erro e o perigo desta indulgência. Tanto a afirmação do fascismo italiano quanto a do nazismo alemão, vividas no período entre as duas Guerras Mundiais, fizeram-se precisamente num ambiente geral de tolerância diante dos seus processos de organização, das suas iniciativas políticas, e das suas campanhas de ódio e de intoxicação da opinião pública. Em consequência, os fascistas apoderaram-se do Estado italiano praticamente sem resistência e os nacional-socialistas chegaram ao poder vencendo com maioria absoluta, já com Hitler como chanceler, a eleição federal de março de 1933. O mesmo aconteceria nas décadas de 1960-1970 na América latina, quando os sistemas democráticos consentiram que a extrema-direita, apoiada nas forças armadas e na intervenção externa norte-americana, fizessem a sua propaganda e organizassem as sublevações que viriam a impor sanguinárias ditaduras. E algo de idêntico ocorreu agora nos EUA e no Brasil, bem como na Rússia, onde, apesar da sobrevivência do sistema representativo, a rédea curta oferecida à manipulação da opinião e à disseminação do ódio têm alimentado regimes autoritários.

Em Portugal, a memória do salazarismo, o vigor da Revolução de Abril e do regime constitucional ao qual deu lugar, e o razoável equilíbrio social do país, de um modo geral sem conflitos dramáticos e extremados, bem como o alargamento da legislação sobre a igualdade de direitos e a sua proteção, convenceram-nos durante décadas de que estaríamos completamente imunes a esse perigo. Porém, como pode verificar-se pelas notícias e alertas que nos estão a chegar, o ovo da serpente estava apenas a ser chocado e bastou uma conjugação de fatores internacionais, particularmente os associados ao renascimento do nacionalismo, aos conflitos étnicos, às movimentações de migrantes e de refugiados, ou aos fatores críticos inerentes às contradições do sistema neoliberal global, para que as crias comecem a irromper, mesmo em sociedades relativamente periféricas e «de brandos costumes» como a nossa. Vale a pena lembrar, a propósito, que este lugar-comum foi criado por António Ferro, o «Goebbels de Salazar», e que foi desmantelado por António José Saraiva logo nos anos sessenta.

Começam assim as ideias, indivíduos e organizações de extrema-direita a obter, entre nós, uma presença e uma visibilidade que até há pouco tempo se acreditava serem tão impensáveis quanto improváveis, ou mesmo impossíveis. Basta observar-se o crescimento do partido Chega nas sondagens e o surgimento de organizações violentas de natureza extraparlamentar que agora às claras multiplicam iniciativas, viradas contra as minorias ou contra os ativistas que procuram combatê-las, lançadas sobretudo a partir das redes sociais e com o apoio da atenção sensacionalista de alguma imprensa. Tudo isto justamente numa altura em que o governo do país tem uma legitimidade constitucional fundada em acordos políticos à esquerda e quando, no plano material e social, a larga maioria da população não vive sequer, mesmo no atual contexto mundial, numa fase particularmente difícil ou crítica.

O mais grave desta tendência é que, se não for combatida, por falta de iniciativa de quem deve denunciá-la e impedi-la de se propagar, ou de quem se recusa a combatê-la por julga-la aceitável, ou esperando de forma ingénua que despareça por si, ela tenderá a crescer. Chegando, entretanto, com facilidade, aos setores sociais e culturais mais vulneráveis e mais sensíveis à sua propaganda centrada no ataque aos direitos humanos, à igualdade, à proteção do trabalho, ao Estado-Providência e à existência da própria democracia. Neste processo, podem até não chegar a obter o poder – do que, ainda assim, jamais estaremos livres –, mas pelo caminho ajudarão a disseminar a instabilidade, o ódio pelo outro, a incompreensão, a ignorância e a desconfiança nas instituições sufragadas pelo voto, que tudo fazem para desautorizar e para enfraquecer. Isto deve ser combatido de frente, jamais deixado em silêncio ou metendo a cabeça na areia. Por este motivo o combate contra o fascismo, o racismo e a xenofobia, bem como contra todos aqueles que atentam contra os valores e direitos da cidadania e da democracia, requer palavras e iniciativa. Não depois, mas agora.

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Rui Bebiano

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