Neuropolítica da leitura

 Neuropolítica da leitura

Kim Sergeev (Unsplash)

Alguns leem mais, outros menos e outros ainda não leem de todo. Refiro-me a material estruturado e complexo, que pode ser um artigo de análise de jornal, físico ou online, um bom manual de instruções, um sumarento relatório ou – cereja no topo do bolo! – um bom livro, em papel ou na forma de ebook.

Claramente não me refiro a textos frívolos e passageiros, embora declarados necessários por alguns nos tempos acelerados de hoje, como sms(s), posts sincopados de facebook, rótulos de produtos comerciais, rodapés de TV e anúncios. Estes, infelizmente, constituem o portefólio preferencial de uma parte não negligenciável da população portuguesa, senão a maioria, cuja extensão importaria apurar. Muitos raramente leem um livro e poucos recorrem a bibliotecas ou subscrevem jornais online*.

Leitura e cognição

E no entanto… Todos compreendem instintivamente que a leitura regular de materiais complexos representa, não só uma ferramenta cognitiva essencial a título pessoal, capaz de reforçar as competências de aquisição de conhecimentos e de compreensão de processos complexos, mas também um instrumento crítico para o desenvolvimento intelectual da comunidade e para o progresso global do país, a nível social, económico, cultural e ainda político. O mesmo se aplica aliás à prática regular da escrita estruturada.

Uma pessoa cuja atividade de leitura se resuma, ao longo do ano, a decifrar textos de mensagens curtas e a ler as “gordas” dos jornais, não pode esperar que o giro angular do lobo parietal, a área de Wernicke do lobo temporal e o córtex insular, três das muitas áreas do hemisfério esquerdo claramente envolvidas no processamento da linguagem, incluindo a compreensão de palavras escritas, conceitos e contextos, tenham o “músculo” cerebral de outra pessoa que mantenha a leitura regular de livros, devore jornais e revistas, ou tire notas abundantes em aulas, workshops, debates e conferências.

Anna Pritchard (Unsplash)

Um produto da evolução cultural

A escrita (e por inerência a leitura) é um produto recente da evolução cultural humana. Pensa-se que começou na antiga Mesopotâmia e no Egito, no período 3500-3200 a.C. (a agricultura iniciou-se há cerca de 12,000 anos). Tal como qualquer outro produto da evolução cultural, ter-se-á desenvolvido para amenizar as condições de vida e, em última análise, para aumentar a probabilidade de sobrevivência do indivíduo, no contexto da sua relação cultural com a comunidade.

Um indivíduo que escrevia e lia há 2,000 anos atrás estava claramente melhor equipado para responder aos desafios complexos da criação de novas tecnologias, por rudimentares que fossem, do sofrimento causado pela doença, da falta de códigos morais e de justiça, da insuficiência de organização social e de governação e, mesmo, da dor psicológica suscitada pela inevitabilidade da morte. Não há qualquer razão para crer que o mesmo não se passe hoje.

Bem pelo contrário. Ler e escrever não só aumenta o corpo de conhecimentos à disposição de cada um, como aprofunda as ideias, conceitos e emoções, tornando-se indispensável no contexto das complexas relações contemporâneas. Estimula a criação de novas conexões neuronais e a adoção de novos padrões mentais, otimizando a resposta aos desafios. Oferece ao cérebro mais tempo para pensar, pausar, processar e imaginar a narrativa que se desenrola à nossa frente, preparando-nos para outras, ficcionais ou reais.

Escrita, leitura e “inteligência fluida”

Logan Fisher (Unsplash)

E promove a “inteligência fluida” – essa capacidade de resolver problemas, compreender e detetar padrões coerentes -, o que exerce um efeito de feedback positivo, reforçando a leitura e escrita (quem mais lê mais quer ler). Reforça a inteligência emocional, aumentando a competência para detetar e compreender as emoções alheias, um aspeto crucial da navegação no complexo tecido social. E melhora a atenção, bem como a capacidade de focagem e concentração, o que é crucial na vida em sociedade, desde logo no processo ensino-aprendizagem.

De fato a neurobiologia ensina-nos que a densificação de redes neuronais, proporcionada pela prática reiterada de leitura e escrita, vai muito para além do giro angular e da área de Wernicke, modulando áreas cerebrais envolvidas no processamento visual e auditivo, reconhecimento de fonemas, fluência, compreensão, inteligência, perceção emocional, atenção e concentração. A neurobiologia da cognição tem sido alvo de pesquisa de legiões de neurocientistas, em particular durante as últimas duas década, em que foram descobertas ou apuradas técnicas inovadoras do estudo não invasivo do cérebro, com destaque para a fMRI (imagem por ressonância magnética funcional), PET (tomografia por emissão de positrões) e MEG (magnetoencefalografia).

Pode hoje afirmar-se que os diferentes lobos cerebrais interagem dinamicamente, dentro do mesmo hemisfério ou entre hemisférios, sendo modulados pela experiência. É como se o cérebro pulsasse sincronicamente numa grande onda global que se expande ou contrai, em função das vivências significativas. Alguém dirá que a experiência proporcionada pela leitura e escrita é uma entre várias. Assim acontece de fato, mas é uma experiência altamente estruturada, poderosa e determinante.

Revolução 4.0 e colapso do sistema educativo

Qual a razão, então, por que a generalidade das pessoas lê pouco e escreve menos? Qual a razão por que a grande maioria dos jovens, em particular, rejeita o desafio de um livro de poesia, de um romance ou de um ensaio?

A razão não é uma, mas várias. Abordarei no entanto apenas uma, a que me parece mais nuclear.

Tem a ver, na minha ótica, com o colapso do sistema educativo, dos media e das instituições em geral face ao profundo desafio da nova revolução tecnológica, que alguns gostam de apelidar “revolução industrial 4.0” e que de fato já começou há muito. O mundo analógico é demasiado lento para responder à rapidez devoradora das transformações tecnológicas, que reduzem o homem a um número comunicante, um ínfimo nó de uma vasta rede automática, que só aceita a comunicação por bits.

O mundo digital da cidadania, esse, ainda não se apropriou dos instrumentos que lhe permitiriam repor alguma humanização. Os impérios digitais são amplos, invasivos e impositivos. As “redes sociais” comportam-se como polvos transnacionais, ditando as suas leis castradoras, desdenhando os direitos de autor e os media tradicionais, sustentando traços rudimentares de “cultura” instantânea e nivelando por baixo as relações entre cidadãos. Os socialbots não dão descanso, manipulando e falsificando. E, para cúmulo, não pagam impostos.

O “instantismo”

Franck V. (Unsplash)

Escolas e outras instituições, incluindo organismos do estado, sucumbem ao canto de sereia e submetem-se ao imediatismo das plataformas tecnológicas.

São prova disso as “avaliações de desempenho” burocráticas dos profissionais baseadas em algoritmos, que premeiam objetivamente a “produção ao quilo” (ou seja, a produção incoerente de indicadores e não de conteúdos perenes, de difícil quantificação em muitos casos). É ainda prova disso, mais recentemente, a absoluta inépcia com que o sistema de ensino respondeu à necessidade de avaliação de estudantes à distância, utilizando em muitos casos “testes à americana” e outros sistemas ineficazes, simplistas e vulneráveis à fraude. Os dirigentes parecem ter optado pela demissão, atraídos pelo facilitismo.

Muitos professores contemplam o colapso com displicência. Sob pressão de alguns pais, também eles condicionados pelo “instantismo”, não puxam pelo brio residual dos estudantes, esse estertor da glória da juventude, convocando-os a produzir trabalhos em que tenham que escrever e ler a sério. Os textos assim produzidos são muitas vezes residuais, roçando a vulgaridade e a indigência, senão mesmo a cópia ou a falsificação. Os conteúdos e métodos de ensino são obsoletos, capitulando rotundamente sob a pressão do “instantismo” galopante que se apoderou da sociedade.

Numa trama algo kafkiana, há muito que muitos professores desistiram, eles próprios, de ler e escrever. Não ajuda.

O rolo compressor

Os estudantes chegam ao primeiro ano da universidade reduzidos, na grande maioria, a um estado intelectual primário e simplificado, com pouca alma e imaginação. Vê-se que são jovens com potencial mas que não creem nele, recorrendo ao subterfúgio da evasão pelo facilitismo. Recusam consistentemente o estudo por livros de texto originais, preferindo as notas fotocopiadas de colegas e as inenarráveis “sebentas”, que alguns professores, lamentavelmente, ainda proporcionam.

Vê-se que foram submetidos a um implacável e duradouro sistema de uniformização e supressão mental, um verdadeiro rolo compressor, que provavelmente começou a rolar no primeiro dia em que chegaram à escola.

A responsabilidade não cabe só às plataformas tecnológicas e, de uma forma mais passiva e com tons de capitulação, a professores, escolas e outras instituições, incluindo universidades e vários organismos do estado. A responsabilidade cabe também aos media. Aqui, no entanto, deixaremos que o leitor imagine, analisando o exemplo do sinalAberto.  Trata-se, ainda assim, de um tema suficientemente importante para merecer livre debate.

Uma leitura do futuro sistema de ensino

A principal solução passa pela radical transformação do sistema de ensino, começando pela base. Outros países fizeram-no ou têm o processo em marcha, e não há verdadeiramente razão para não o fazermos. Será um processo demorado, mas decisivo para a nossa viabilidade coletiva, para a nossa viabilidade como estado.

Os conteúdos e objetivos do ensino devem ser reformulados e condensados numa proposta única, simples e fundamental, que cada escola utiliza como ponto de partida para concretizar os seus objetivos, para os quais convoca os estudantes, os pais e os melhores professores, aqueles que acreditam na glória da juventude, os que estão dispostos a potenciar a sua empatia com os estudantes e a resistir ao “instantismo”.

Por “melhores professores” não se entende aqui os professores com mais experiência de ensino. Trata-se mesmo dos melhores professores, aqueles que nunca serão convocados para esta missão com base em algoritmos cegos. Aqueles que, independentemente da idade, se revelarem numa criteriosa seleção humana. (Não utilizo a palavra “excelência” pela sua irrevogável conotação burocrática.)

As escolas devem ser requalificadas, convertendo-se em locais verdadeiramente aprazíveis para o estudo sereno e para atividades multifacetadas, que preparem os estudantes para os desafios da vida. O entrelaçamento entre disciplinas deve ser um ponto-chave. Os professores devem cooperar entre si, desfazendo o egoísmo e a competição ansiosa.

A saída regular para atividades de campo deve ser outro ponto-chave. O respeito pela natureza e pelos animais, nossos companheiros de existência, deve estar na linha da frente das preocupações. Devem ser criadas as condições para que os estudantes se convertam literalmente em ativistas cívicos, pela salvaguarda do ambiente e do clima, e contra a extinção das espécies.

A inteligência emocional no sistema

Paul Green (Unsplash)

Os meios tecnológicos devem ser tenazmente requalificados, substituindo o software proprietário por software de código de fonte aberta. As plataformas tecnológicas não devem facilitar o “instantismo” e devem ser impedidas de controlar o sistema de ensino, permitindo que este respire ao ritmo de professores e estudantes, governado pelas regras não escritas da inteligência emocional.

Os professores a selecionar devem gostar de ler e ter o gosto de vir a promover recitais e leituras coletivas dos melhores textos, aqueles que fazem vibrar a alma dos estudantes, incluindo os preparados por estes. Os professores deveriam, idealmente, gostar de escrever com intensidade e clareza. Deve haver sessões de escrita criativa desde tenra idade. Os estudantes deveriam passar a ocupar, pelo menos, metade do seu tempo escolar com a leitura e a escrita, de preferência partilhada.

As bibliotecas devem ser profundamente reformuladas, subtraindo-se-lhes o ar austero e transformando-as em espaços multifuncionais onde os estudantes verdadeiramente gostem de estar. O investimento em livros (físicos e ebooks) e em jornais/revistas (em papel e eletrónicos) deve ser massivo. Os recursos necessários para o esforço devem provir dos bancos e do capital financeiro. Cada estudante deve poder levar para casa os livros, revistas e música que entender, sem limitações de conteúdo. Ebooks e jornais eletrónicos devem poder ser lidos a partir do computador de casa, que deve ser fornecido a cada estudante por um preço simbólico, com base num compromisso responsável.

Cooperação, integração e educação para o ambiente

As cantinas escolares devem proporcionar as quatro refeições do dia a todos os estudantes, a um preço subsidiado. Os estudantes mais vulneráveis devem ter refeições grátis. Os menus devem promover a alimentação saudável, incluindo a tendencialmente vegetariana.

Os ginásios e alguns espaços exteriores devem ser requalificados e preparados para o desporto sem limitações, fazendo com que os jovens ganhem o gosto pela atividade física regular, em interação com colegas e amigos, subtraindo-os à TV, aos jogos eletrónicos e à utilização excessiva de computadores e redes sociais. A atividade física programada deve ser disciplinada, embora tendo um caráter essencialmente lúdico. Os instrutores devem compreender isto.

O sistema de direção das escolas deve ser completamente reformulado, tornando-o cooperativo e envolvendo professores comprometidos com a mudança. A burocracia inútil deve ser eliminada. O carreirismo de dirigentes deve ser terminado. A direção escolar deve dar sempre um apoio incondicional às boas iniciativas de professores e estudantes.

O sistema de avaliação deve centrar-se principalmente na monitorização do progresso das competências estudantis, envolvendo não só as matérias e os aspetos cognitivos dos conhecimentos adquiridos em áreas mais clássicas mas também nas áreas críticas da cultura geral, domínio da língua, sustentabilidade ambiental e preservação da bioesfera. O acesso ao ensino superior deve ser dominado por esta visão multicêntrica e humanista. O sistema não deve querer produzir tecnocratas de visão estreita, mas sim humanos criativos e comunicantes, claramente comprometidos com a luta contra os determinantes do Antropoceno, essa nova época geológica que o sapiens sapiens inaugurou com a sua inteligência perversa, mas que ainda poderá ser revertida, se assim o quisermos.

O acesso deve passar por um período vestibular, organizado à volta de um projeto verificável, avaliável e financiado (pelo estado e entidades parceiras em função dos rendimentos), com eventual componente de estudo e balizado pelo domínio linguístico, enriquecimento cultural e exposição à diversidade. A avaliação do período vestibular deve contribuir para a classificação final de cada estudante no ensino superior.

Finalmente, e sem querer ser exaustivo, devem ser feitos todos os esforços, escola a escola, para eliminar as desigualdades sociais no espaço escolar, bem como no seu prolongamento em casa. Isto implica um esforço coletivo sem concessões, envolvendo administrações regionais de ensino, direções escolares, professores, associações de estudantes, pais, autarquias, coletividades e outras instituições locais.

Iliteracia funcional e democracia

É necessário compreender que a dramática situação de iliteracia funcional, das pessoas que não leem e não escrevem, não as afeta só a elas. Para além do núcleo próximo de familiares, amigos e colaboradores, que sofrem as consequências diretas da iliteracia, a disfunção afeta gravemente a produtividade e a qualidade da vida social, cultural e política do país no seu conjunto.

Um país em que uma parte significativa da sua população sofre de iliteracia funcional é um país coartado na sua capacidade de produzir novos conhecimentos, tecnologias e materiais, de aprender com os erros do passado, de inovar, de exercer a liberdade do pensamento crítico e, finalmente, de construir uma textura cultural densa que suavize e impregne o tecido de tecnologias e procedimentos, tornando a vida mais humana. Tal país, a prazo, é um país morto.

A própria qualidade da democracia está em risco. A ignorância e a iliteracia são inimigas da tolerância e da sã convivência. A tendência dos ignorantes é para pensarem que detêm toda a razão, especialmente quando confrontados com os desafios do livre-pensamento, como geralmente se constata nas redes sociais dominantes, em que o esforço de auto-contenção é nulo e o lixo intelectual suprime o debate.

A ignorância e a iliteracia são, pois, terreno fértil para o autoritarismo e para a democracia musculada. E, não menos importante, são um poderoso promotor das desigualdades sociais, na medida em que tendem a reproduzir-se, alimentando um grupo hegemónico e acentuando as clivagens.


*O único estudo fiável sobre hábitos de leitura é o teste internacional PISA, segundo o qual o grau de literacia em leitura de estudantes portugueses de 15 anos era, em 2018, 492 pontos (em mil).


Referências:

Wolf, M. (2019). Reader, come home: The reading brain in a digital world. Harper Paperbacks.
Damásio, A.R. (2017). A estranha ordem das coisas: A vida, os sentimentos e as culturas humanas. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores.
Wandell, B.A., & Le, R.K. (2017).  Diagnosing the neural circuitry of reading. Neuron, 583(7816), 453-458.
Kidd, D.C., & Castano, E. (2013). Reading literary fiction improves theory of mindScience, 342(6156), 377-380.
Oppong, T. (2018, February 20). The reading brain (Why your brain needs you to read every day). Retrieved from: https://medium.com/@alltopstartups/the-reading-brain-why-your-brain-needs-you-to-read-every-day-f5307c50d979

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Luís Martinho Rosário

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