O doce pesadelo de Ingrid Viklund

 O doce pesadelo de Ingrid Viklund

Andrew Seaman (Unsplash)

Ingrid Viklund tateou instintivamente a segunda metade da cama, com dedinhos de lã, como se receasse tocar numa rara cerâmica Ming, mas só encontrou um cobertor e uma almofada, frios e enovelados. Se alguém lá esteve já tinha saído há pelo menos uma hora.

Pôs-se de joelhos e cheirou nervosamente a fronha. Chegaram-lhe notas de bergamota e rosa, devia ser a Hanna.

As gelosias deixavam passar a luz rala dos néones das lojas do outro lado da rua, que logo se derramava pela cómoda e pelos tapetes, fazendo com que a enorme floreira de cerâmica fosse o fantasma de serviço, com uma enorme cabeleira de violetas secas.

O relógio, esse, piscava-lhe o olho com um barrigudo 5 e dois zeros, como se os minutos importassem. Dois zeros redondos. São cinco horas, menina Ingrid, toca a saltar da cama, murmurou-lhe o chip. Cala-te, pannkaka, e derrubou-o com o mindinho. Já tinha idade para não ser menina.

Portanto a Hanna tinha saído às 4. Mas era sábado e só estaria de volta ao trabalho lá mais para o fim da tarde, depois de um jantarzinho com jeitos de pequeno-almoço, de duas chávenas de café bem forte e de meio batom. De que tiveste medo, Hanna?

Ou poderia ter sido Max, Max Forsberg.

Na última semana tinha tido várias reuniões de trabalho com ele e outros colegas, que normalmente acabavam tarde. Saiam então todos menos Max, que inventava todos os pretextos para ir arrastando os pés. O último foi que tinha de analisar, com Ingrid, o anexo ao relatório financeiro da Nordin Pharma. Tinha 53 e vinha de um divórcio, desses que eram celebrados com papeis de advogado e que davam direito à rua, por não ter regado as flores.

Sempre gostou de Max, tinha um olhar límpido e usava óculos ovais à Larsson, o refinado herói da intrépida Lisbeth Salander. (Dava estranhamente consigo a pensar na ex-mulher de Max, que não conhecia, como se fosse a gémea Camilla, a anti-Lisbeth.)

Ficava-se para um aperitivo e um copo, que depois eram dois, ou três, ou muitos, e um jantar a dois, que ela fazia no micro-ondas e que ele completava com kladdkaka, que trazia num saco de papel de uma pastelaria da Stortorget, escondido na pasta.

E riam-se muito, e diziam disparates, como se estivessem na Plaza de España numa noite tórrida de Sevilla, a tal ponto que ‘Rioja de Sevilla’ se converteu num private joke. Bastava um dizê-lo, ou só dizer ‘Rioja’, com um piscar de olhos, em qualquer lugar, para logos os dois se rirem aos tropeções, com falta de ar, como uma criança a quem fazem cócegas.

Ingrid e Max passavam a maior parte do tempo em Uppsala, mas por vezes tinham reuniões de trabalho em Stockholm com os principais executivos nacionais.

Nessas alturas Ingrid alugava um pequeno estúdio na Drottninggatan, bem no centro. Era mais barato, porque ficava mesmo ao lado de uma resplandecente fábrica de luz técnica que parecia ter sido feita por marcianos assexuados, na verdade uma sex shop com montra a abarrotar de vibradores, cintos de castidade, bombásticas peças de lingerie vermelha e rechonchudas bonecas de silicone. Ninguém de bom tom gostava de morar ali.

O marido, Olof, velho companheiro de 32 anos de vida em comum, ficava para trás com o gato e um exuberante lagarto castanho com grandes pernas, que trouxeram na última visita ao deserto do Mar Vermelho.

Davam-se bem, mas Olof tomava religiosamente essas visitas como uma rara oportunidade para se livrar do humor pesado da mulher, e raramente lhe telefonava. Ela retribuía da mesma forma, enviando-lhe SMSs com fotos da cidade e do Moderna Museet, lembrando-lhe as bizarras e policêntricas criações de Fahlström, que ele demorava horas a decifrar.

Era mesmo normal Ingrid avisar Olof de que estava prestes a ir de volta, com pelo menos dois dias de antecedência. Da última vez esqueceu-se de o avisar e o marido quase desfez o seu velho Volvo 840 na circular de Uppsala, ao saber que seria necessário recolhê-la quando estava mesmo, mesmo a finalizar um endiabrado algoritmo para machine learning, que o empolgava há meses. Era um tipo meticuloso e precisava de tempo para se adaptar a mudanças.

Ingrid não se esqueceria dessa vez. Chegou a obter uma pulseira de pele para hippies numa loja de artesanato, para não se esquecer. (Rapidamente concluiu que o expediente era inútil, pois teve de comprar uma segunda pulseira, desta vez de corais de plástico, para se lembrar da primeira.)

O último encontro com Max teve um significado muito especial, que lhe passou quase despercebido na altura.

Já tinham bebido uns copos e estavam na fase kladdkaka. Também já tinham inventado todas as variantes possíveis do seu ‘Rioja’, para poderem surpreender os amigos na primeira ocasião, sempre desejosos de conhecer os melhores truques para melhorar o humor.

Max teve então a ideia de enfiar o seu melhor dedo, o indicador, no interior mole da kladdkaka, e de lho dar a saborear. Mas desafinou o gesto, tocando-lhe na úvula. O resultado foi um movimento automático que quase lhe arrancou o dedo. (Mais tarde comparou-o ao disparo de uma armadilha para ratos, mas decerto exagerou.)

A coisa não se ficou por aí. A tensão latente tem todo o potencial explosivo de uma deflagração de TNT numa pedreira, e assim aconteceu.

Em vez de gritar Max atraiu-a fortemente para si, pressionando o indicador nas costas para aliviar a dor, e beijou-a com veemência. Depois, compreensivo, ajeitou-lhe a cabeça com ambas as mãos, suavizando a postura.

Ingrid foi apanhada desprevenida e disparou os braços como molas, varrendo os restos de lasanha, kladdkaka e rioja. Uma parte verteu-se sobre as calças claras de Max, convertendo-o numa vítima de esfaqueamento. A visão de sangue turvou-lhes ainda mais os espíritos, fazendo-os tombar sobre o tapete florido, lentamente, como se alguém desbobinasse um filme antigo com uma manivela emperrada.

Rolaram os dois abraçados e entrelaçados, limpando nervosamente os dedos do chocolate e da lasanha, para o que se serviram da camisa e da blusa, primeiro, e das calças, logo a seguir, que se amontoaram a um canto, desgrenhadas.

«Max, que desenhos fizeste aí?», perguntou Ingrid, apontando para os slips com peixes de aquário pintalgados de vermelho e amarelo. «Já te mostro, doce», e exibiu-os a 10 cm do nariz.

Ingrid aproveitou para sorver um pouco de kladdkaka e Max, por seu turno, aliviou-lhe os restos das costas com a própria língua, em suaves movimentos para cima e para baixo sobre a coluna, como se fizesse uma pequena massagem.

Demorou uns inefáveis cinco minutos a retirar o soutien, vertendo sempre sem querer um pouco de rioja, que segurava com a mão esquerda. A última peça saiu mesmo à bruta, a quatro mãos.

Depois foi uma sequência interminável de gestos bruscos e carinhosos, verticais e horizontais, no chão, sofá e almofadas, com pausas e rioja, sempre mais rioja, e novos gestos, cada vez mais tontos, até se estatelarem os dois sobre a cama, como mortos.

Ingrid, onde é que estamos?

Estamos nas Fiji a cavalgar uma tartaruga gigante, doce, e mais rioja sobre os lençóis, e um som abafado que parecia vir de uma cornucópia no teto, ring-ring, que quer este agora, e adormeceram. Era o carteiro, pelos vistos, constataram depois.

Ingrid não costumava ser assim. Era normalmente ensimesmada e taciturna, a ponto de ter tido de consultar vários psiquiatras ao longo dos anos. Todos lhe davam antidepressivos e nada funcionava. De facto, as drogas roubavam-lhe o sono, matavam-lhe o sexo ou tornavam-na acabrunhada e vazia, quase inútil.

A última, no entanto, foi-lhe apagando as sombras e devolvendo a vida, num espaço de dias. Ao fim de uma semana já se sentia quase normal, como quando tinha 30 anos. Ao fim de duas semanas sentia-se mesmo eufórica e positiva, cheia de planos para a vida. E ao fim de três semanas já não tinha planos, queria só vivê-los, com urgência.

A existência passou a ser um permanente voo às costas de uma possante e deslumbrante fénix, olhando os pobres mortais cá em baixo. Cessaram os obstáculos. A vida passou a sorrir-lhe de todos os recantos e esquinas, mesmo os mais sombrios, aos olhos de ontem.

Os psiquiatras já não eram necessários, e despediu-os sem compaixão.

Olof foi o primeiro a notar e fez-lhe uma pergunta difícil. Com perícia, para não espantar o pássaro, perguntou-lhe se não se estaria a sentir um pouco como O’Connor, Plath, Redgrave, Whinehouse, Woolf… Génios um pouco extravagantes, enfim… Que certos medicamentos…

Não, impossível. Já tinha lido Redfield Jamison e não tinha os sintomas.

De forma que durante muito tempo escondeu a cabeça. Sentia-se bem, muito bem mesmo. O mundo deixou de ter fronteiras e, de facto, já era demasiado pequeno para ela. Queria mesmo estar assim, entre os anjos, ou entre os diabos.

E esteve.

Na última visita a um bar viu pela primeira vez Hanna no varão de strip. Enamorou-se à primeira vista.

A música levava-a para planaltos nunca vistos, delirantes, donde só saia bebendo, bebendo cada vez mais, Hanna, por que é que as estrelas estão hoje no teto, e esticava-se para apanhar uma, tentando subir o varão, para logo se estatelar em cima de uma bailarina, que tentava beijar sofregamente.

I’m your private dancer, já dizia Tina Turner há mais de vinte anos, a dancer for money, e Ingrid replicava não, por amor, e ela continuava na sua voz sensual, poderosa, felina, que a enchia por dentro, fazendo dançar os neurónios, I’ll do what you want me to do, e Ingrid murmurava e eu também, podes crer, para logo a Tina replicar, bem alto, I’m your private dancer, e ela perguntar, morrendo de felicidade, podes ser só minha?

O bar, primeiro em Stockholm, depois em Uppsala, passou a ser a sua casa, o seu jardim, até mesmo o seu escritório.

Era lá que fazia as suas amigas e amigos, que os beijava, que os tocava, por vezes com a intimidade que só os amigos permitem, que sonhava, que viajava no tempo e no espaço para lugares nunca antes navegados, que delirava, sem medo de censura, que se transfigurava com cores, roupas, sapatos e pés nus, que gritava mais alto do que a música, mais alto do que Tina, que exortava os mortos que jamais conheceria, que era imortal.

Que visitava em palavras coadas os exóticos países das amigas bailarinas, as suas amigas de vida e infortúnio, de graça e desgraça, de confiança e medo, de meninas e mulheres, de usos e abusos, de saúde e doença, de santos, ladrões e piratas, de carecas e bigodudos, de ateus e padres, de homos e héteros, nesses tempos ignotos dos novos espaços europeus, a Czechia, Eesti, Latvia, Lietuva, Slovensko, até mesmo a Magyar e România, e também dos remotos Brasil, Mexico, Venezuela…

Tudo. Aquele mundo, o seu mundo, era tudo.

Olof de novo: Tomas mais alguma droga, Ingrid? E ela: Não, querido. Só aquilo. E ele dizia-lhe: Um dia quererás parar, querida.

Ele, nessas alturas, parecia-lhe muito distante, como um velho índio a falar para alguém fora do seu cemitério sagrado, no meio de totens, árvores esquálidas e espíritos quase palpáveis. 

Um dia saiu do bar, já madrugada dentro, e encontrou Max num café ainda aberto. Parecia sozinho e desorientado.

Levou-o a ver a cidade de um ponto alto, pequenina nas suas luzes difusas. As casas iluminadas, ao longe, pareciam almas perdidas nas intraduzíveis tecnologias de farmacêuticas, biotecnológicas, redes sociais e start-ups de software. O mundo, dali, via-se a preto-e-branco.

Pararam o carro e sentaram-se num banco de pedra. Deitou-o e segurou-lhe a cabeça sobre o colo, alisando-lhe os caracóis.

«Ainda continuas a voar, Ingrid?»

«Sim, Max. Há quem diga que sou uma ameaça à liberdade dos outros. Felizmente o Olof tem sido um amor. Há muito poucos como ele, Max.»

«Eu casei-me há dois meses, Ingrid. Descobri finalmente alguém que me ama, mas é vinte anos mais nova do que eu. É uma antiga estudante. Por vezes fico um pouco sem jeito nos sítios em que ela está. Fora isso amo-a muito».

«Lembras-te do ‘Rioja’, Max? Provavelmente tens de te rir com ela aos tropeções, com falta de ar, como uma criança a quem fazem cócegas».

Afagou-lhe os caracóis e tranquilizou-o. Teve-o consigo durante longas horas, enquanto ele dormitava, pairando sobre os espíritos mortos da cidade. Levou-o a casa quando começou a clarear e os mortos já não caminhavam pelas ruas.

Continuou a viver no bar à noite. Tinha os seus amigos, a sua música e os seus sonhos. A Tina continuava a dizer, sem a menor hesitação, que faria o que ela quisesse. Por vezes exagerava. Havia dias em que inventava coisas para fazer no trabalho, só para prolongar o tempo até à abertura do bar. Era então a primeira a chegar.

Um dia cumpriu-se a visão de Olof, e isso ficou gravado a fogo no seu diário.

Aconteceu por acaso.

Tencionava enviar um email aos colegas, convocando-os para uma reunião alargada de quadros da Pharma. Em vez disso, por engano, enviou a seguinte mensagem:

Querida Hanna. Sei que estás cá e gostava muito que aparecesses hoje no bar. Longe vão os tempos de Stockholm e tenho muitas saudades tuas. Podíamos subir ao varão as duas! Depois podíamos jantar como nos velhos tempos. O Max Forsberg, que tu já conheces, casou-se há pouco tempo e prometeu passar por lá com a mulher. Vais gostar de o ver outra vez. Ri-se muito quando conto uma pequena piada que só nós conhecemos.

O email correu como fogo numa pradaria e teve de utilizar os seus melhores recursos para o apagar. Max ajudou como pode e, sem ele, não teria sido possível.

Reconheceu finalmente que tinha mesmo de esquecer o bar. E, talvez, de pedir ajuda.

Conseguia ver agora que já tinha passado muito, muito tempo…

Os espantosos vermelhos e amarelos da velha fénix tinham-se fundido, entretanto, com os vastos azuis dos céus; o castanho enjoado das suas novas penas já não parecia atrair o olhar das crianças.

Pareceu-lhe aliás, em certas ocasiões, que a velha ave começava a sentir a vertigem das cinzas e que insinuava, mesmo, despenhar-se sobre elas; portava-se, assim, como um mirrado milhafre a surfar na aragem e a cobiçar uma carcaça podre, cá mais em baixo.

Talvez fosse, pois, uma questão de vida. Fez psicoterapia e, aos poucos, conseguiu libertar-se de alguns medicamentos. Aprendeu a cheirar e a saborear, pela primeira vez de há muitos anos para cá.

Foi tudo conduzido por alguém verdadeiramente notável, que teve a sorte de conhecer numa festa. É psicólogo e investiga a psicologia de primatas, onde aprendeu os traços essenciais dos humanos. Chama-se Sílvio Leiberman e é hoje um dos melhores amigos, tanto seu como de Olof.

Tem uma filosofia simples, para os problemas mais simples. São problemas da vida, que é necessário enfrentar e resolver, de preferência da forma mais cândida e prática possível.

Os chimpanzés, disse-lhe uma vez, também se deprimem quando o rio da vida corre num canyon muito estreito ou desemboca num estuário pantanoso. É difícil acontecer na floresta virgem, mas é quase certo em cativeiro.

Também lhe disse que não é preciso ser extravagante. Mas que tão pouco é pecado sê-lo.


Pode contactar o autor através de: pratas-young@theyeofhorus.net

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José Pratas-Young

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