O enfeirar em Castelo Rodrigo

 O enfeirar em Castelo Rodrigo

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Ah, a antiga feira das quintas, em Figueira de Castelo Rodrigo… Lembro a carreira da Lopes & Filhos, Lda., a buzinar de impaciência, posto alguns passageiros se atardarem no besuntar dos gorgomilos de vinho honesto. Os pontuais, rente ao chafariz erguido em 1925 abrigavam-se sob a ramada, enquanto iam mostrando aos conterrâneos as cestas e os taleigos das compras. Vinham à baila os preços regateados mais os descontos conseguidos que levavam o cunho de conquistas arrancadas a ferro.

A duas canchas, “casas brasileiras”, a Pensão Riba Côa, nome pintado no telhado, e o Gymnasio Club Figueirense dos famosos bailes servidos de lambarices e que muitos derriços e casamentos originaram. Torna a camioneta da carreira a buzinar, o motor ron, ron, ronronando, «onde se terão metido? Sempre os mesmos, não respeitam ninguém» e os retardatários, apressados, lá aparecem com desculpas de mau pagador amortecendo arrelias passageiras.

Durante a inverniça, impiedosa inverniça atiçada pela ventania da meseta castelhana, na feira das frieiras os aldeões traziam o cabo do chuço dependurado da gola da samarra e estreavam as botas cosidas à mão contra as intempéries da cordilheira da Marofa. No dia do enfeirar rondava-se o comércio local, portas abertas para as finezas do Augusto Gil, do Bordalo e de outros estabelecimentos do mesmo ramo. Atrás do balcão das fazendas, miudezas e retrós guardavam-se as primeiras aquisições. Alguns, apelintrados, iam tirar o retrato no Estúdio Moreira, fitando, em pose, a máquina de fole a cargo de dona Águeda.

– Atenção, não pisque os olhos. Está quase, não se mexa.

Click!, o instante congelado.

No bulício do largo sobressaía a mancha escura de povo da terra e dos arredores: elas, faladeiras, de xailes e lenços pretos na cabeça; eles, folgazões, de fato e chapéu ou boina basca. De bengala, os mais velhos e alquebrados.

– Está tudo uma careza. Vá, uma atençãozinha. Já o meu pai que Deus guarda só gastava daqui.

– Por quem é! Estou a perder dinheiro, mas faço um abatimento.

Tenta impingir sapatorros a ciganada burriqueira.

– De calfe, miren usted. Ai, una perfeicione! Há pouquito vendi cinco pares a caballero de Mata de Lobos.

O casal de Vilar do Torpim pisca o olho em sinal de desconfia e desanda após ter murmurado tímido vamos dar uma voltinha, depois se verá. E haverá de voltar com o pauzinho do tamanho do pé do filho. Na verdade, quem desdenha sempre quer comprar. De seguida revolve montanhas de roupa e de louça, trinca tremoços e ensaca pão de Pinhel e de Escalhão, pão de quartos e também pão espanhol de crosta lisa e miolo branco, fininho, encomenda da vizinhança.

Pomada para o reumático, cirroses e tuberculoses, pneumonias e dores de garganta. Quem já andou não tem para andar.

– A mim doem-me os queixais.

– Mais uma razão para não deixar fugir o desinço. Aproveite, minha senhora, compre, compre, antes que se esgote. Está ao preço da uva mijona, desculpando o termo.

– E serve para as lombrigas?

– Também. As propriedades desta maravilhosa pomada foram testadas pelos mais prestigiados cientistas alemães e americanos.

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Hora almoçadeira.

Fumarada e odores anunciam febras assadas no largo de terra batida, chicha suculenta, tenrinha, a saborear nos bancos corridos, entre farta algazarra. Iscas de bacalhau na tascaria das imediações. Vinho abundoso. Os mais possidentes dão entrada na Pensão Santos, grande e saudoso Santos que, num dia de Janeiro assim me contou:

– Só bebi água uma vez na vida. Foi quando caí a um ribeiro e quase morri. Serviu-me de emenda.

De tarde, compenetrada, a freguesia detém-se no toldo do Celestino, ourives de quilate. Montado numa Sachs com turbina de ar e maleta de couro amarrada atrás, vendia artigos de ouro e prata de povoado em povoado. Aos de bolsa menos amoedada, somente cobrava quando tornasse à aldeia com o cintilar de trancelins, braceletes, gargantilhas, voltas, brincos de fuso, cruzes, corações de filigrana, rosetas e borboletas, pulseiras, berloques e anéis. Na feira, estendia os estojos de veludo preto pulverizados de peças destinadas a enfeitar orelhas, pescoços, pulsos e mãos do concelho raiano.

Tendeiros, peleiros e bufarinheiros. Queijeiras e doceiras. Cestaria. Vassouras de piaçaba, chapéus de palha centeia com faixa de cita para prender peninha de perdiz. Assentos de cozinha, talheres de ferro. Braseiras com pazinha e estrado em madeira.

Os lazarentos, mão estendida ao esmolar, “pela alma de quem lá tem” perseguem os mais ataviados. Há-os cegos, estropiados e maluquinhos da cabeça, comentam os passantes com ar de comiseração.

Regadores, baldes, almotolias, crivos e ferragens. Assadeiras, alguidares, púcaros, pucarinhos e cântaros dos oleiros de Santa Comba, matéria-prima catada à mão das margens do Côa. Talhas e talhões e cantarinhas de Felgar, muito graciosas, da geração dos Rebouta. Sementes, feijão-frade e repolhos de encher as vistas.

Pregões, escudos e tostões.

E pesos, contas e medidas.

Risotas, juras e discussões.

Honrados e pantomineiros.

Alfenim, tolos e burgessos.

Arados, enxadas e charruas; albardas e arreios. Balires, relinchares, mugires. E chocalhares.

De varapau nas mãos calejadas, os lavradores, quase todos embigodados, agrupam-se no recinto dos animais de carga. Abrem a boca aos machos para lhes espreitarem as ventas. Sim, têm todos os molares, encontram-se sãos os colmilhos. Reparam se as patas não batem uma na outra, ao moverem-se; averiguam os cascos que se querem lisos e sem rachas. Nos bois, tacteiam os bem enramados, de cornadura robusta, levantada e simétrica. Má rês, rumina o vendedor perante as exigências e impertinências de potencial interessado.

Vozearia e chamares. Furgões e furgonetas com carroçaria em madeira. Carroças e carro de praça.

Fim do dia.

Desmanchar da feira.

Debandada.

Pela estrada fora, toc, toc, carros de machos – arrre machos! – rebanhos de ovelhas, alguns porcos. Gente a pé, sarrafos para o que desse e viesse no decorrer da andadura. Burros ajoujados, homens de alforge passado ao ombro; mocinhas namoradeiras e mulheraças parideiras sentadas de banda, sobre as cavalgaduras. Rolos de liteiros, cobertores, um covejão. O sacristão Elisiário, com calças de pana contrabandeadas, segue escarranchado numa pileca a dar-se ares de fidalgo da casa da palha – valha-nos Deus!

Bicicletas pedaleiras carregadas de embrulhos, quantas com um raparigo alapado no quadro, rabinho amolgado por tanto solavanco e saltaricos. O que vai ele de contentinho, viva raparigo, refresca a carinha na brisa do entardecer, fixa o olhar nas curvas da estrada, encanta-te com as árvores, os pássaros, os horizontes de cereal, as figuras dos pedregulhos, os brancos novelos de nuvens, as grandes montanhas azuis e castanhas, além, além ao longe, inundadas de luz…

Os raparigos da minha aldeia pensavam então no gigantesco pão de granito poisado à beira da estrada com uma cruz no topo. Aquela fraga entre Almendra e Figueira de Castelo Rodrigo teria sido escachada por trovoada seca que matou um pastor ali abrigado. Que não, recalcitravam outros. Servia de lápide a caminheiro anavalhado à traição. Mistérios.

Pensavam também no ninho de cegonha-branca no cimo da torre da igreja de Figueira, ah, as elegantes cegonhas. Em caso de feira de ano, os rapazinhos iam esperando, cheios de ansiedade, as camionetas de madeira, os redondos espelhinhos de bolso com jogos de paciência, os canivetes, os piões, os realejos e as gaitinhas trazidas pelos pais, lá pelo crepúsculo. Depois, empanturrados de felicidade, desatavam a correr por ruas, largos e quelhas numa assuada irritadiça.

– Tuá! Tuá! A minha gaita toca mais alto do que a tua.

– Coche-coche. É que te calhava!

– Toca, pois então!

– Bô-bô! – repontava o filho dos Grulhas, a mão direita enconchada às partes.

– Orolhai: A minha gaita é a maior de todas. Uma bisarma!

Mal isto ouviu, assomou ao postigo a avó, esganiçada:

– Ah, burro castelhano! Vou contar a tê pai que andas a dizer cuchinices.

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05/09/2020

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Alfredo Mendes

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