O negro futuro do passado digital

 O negro futuro do passado digital

Tistio (Unsplash)

Há algum tempo perguntaram-me se eu ainda teria alguma informação sobre a atividade desenvolvida no final da década de 1980 por um grupo técnico do qual fiz parte. Como me prezo de arquivar zelosamente esse tipo de informação, estava plenamente convencido de que poderia responder afirmativamente, pelo que iniciei, de imediato, uma expedição de “arqueologia digital” às profundezas do meu computador portátil, escavando camada após camada de sedimentos de dados, deixadas pelo passar do tempo. Infelizmente, tal como se passa em muitas outras expedições arqueológicas, também esta resultou em nada. Na realidade, ao princípio os indícios eram fortes. Encontrei sem esforço várias pastas, logicamente organizadas, sobre o assunto em causa. O problema é que muitos dos ficheiros nelas contidos eram ilegíveis e não consegui encontrar qualquer aplicativo que os pudesse decifrar.

É claro que, tendo passado pouco mais de 30 anos, com algum esforço de pesquisa e algum dinheiro, julgo que não seria impossível descobrir soluções para ler ficheiros antigos, mas este episódio fez-me pensar no que acontecerá daqui a alguns séculos ou milénios ao incrível manancial de informação que se encontra hoje em formato digital por esse mundo fora, em dispositivos que, no futuro, não funcionarão e/ou ninguém conseguirá ler.

O problema não é novo e vários arqueólogos já o identificaram. Por exemplo, citando Andrew Reinhard, daqui a mil anos ninguém poderá ver as fotos que se encontram no telemóvel de determinada pessoa, por muita relevância histórica que essa pessoa tenha tido. A nuvem computacional não existirá e com ela desaparecerá informação preciosa. São afirmações preocupantes de um especialista em arqueologia, que levantam várias outras questões. O que se passará com a chamada ‘arte digital’? E os chamados NFT (non-fungible tokens) de que tanto se fala agora ainda existirão? Será que a nossa era irá ficar para o futuro como uma nova idade das trevas?

Andamos tão preocupados com o presente que perdemos a perspetiva do tempo. Afanosamente, as organizações apressam-se a construir o seu “edifício digital”, uma arquitetura de sistemas de informação capaz de dar resposta à inexorável transição para um mundo que se quer inteiramente digital. O que se passará com esse “edifício digital” num futuro mais ou menos distante? Quão depressa ruirá, sobe o peso da evolução tecnológica? Que soluções estão agora a ser adotadas para garantir a perenidade da informação? Não nos podemos esquecer de que o nosso presente rapidamente se transformará num passado digital, cujo negro futuro será o de se volatilizar se não for alvo de constante manutenção e evolução. Será tecnológica e economicamente viável manter o passado digital vivo e acessível? É essa a grande questão.

20/07/2021

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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