O olho de Hórus

 O olho de Hórus

Fotografia de Kat J (Unsplash)

Três irmãos discutiam um contrato de arrendamento urbano junto de um notário. Um deles tinha um ar mais modesto e parecia ter viajado, quiçá de um lugar remoto, talvez rural. Vestia roupas demasiado quentes para a cidade, o que lhe dava um ar deslocado, quase frágil. Percebi que tinham vivido sob o mesmo teto, aquele teto, aquele contrato, e que hesitavam. A irmã, em particular, teimava em alargar o olhar, soltando-o, não fosse uma gota correr e alagar o chão.

Conversaram suavemente, graves e compungidos. Ao saírem, o que parecia ter viajado deixou cair um papelinho que deu uma série de voltas até se finar a um canto, mas ninguém reparou. Roído pela curiosidade, peguei nele e li. Dizia assim.

Li atentamente e, não tendo o olho treinado do jurista, pareceu-me bem como leigo, com as alterações e aditamentos produzidos pelo referido jurista.

Ficou-me no entanto uma pequena dúvida, pequenina mesmo, que é a de saber se a fração partilhada da garagem, que aqui que ninguém nos ouve me parece um pouco irrequieta, existe de facto. Ou seja, parece-me pela descrição que se anda à procura de algo que teima em não querer ser apanhada, como um gambuzino, e que, não sendo apanhada pelo segundo outorgante, pode fazer com que este, mal disposto, se vingue no primeiro outorgante.

Fotografia de jooin.com.

Ora, fazendo eu parte do primeiro outorgante, desde já declaro não possuir curso de defesa pessoal que me permitiria, havendo disposição para a vingança, expulsar o segundo outorgante do apartamento, de preferência pela janela do quarto da manita, em voo picado sobre a rua da cedofeita, com risco de apanhar o senhor francisco do talho, o que me prejudicaria sobejamente, atendendo a que me abasteço aí todas as semanas em que venho à cidade, neste período de aflitas necessidades sanitárias.

E tenho dito, manitos. Poderão vossemecês avançar para a celebração, de preferência sem testemunhas, que nos dias que correm só podem produzir emanações víricas de mau-olhado.

Fotografia de Cristian Newman (Unsplash)

Um abraço forte, principalmente para a manita, que tem aguentado valentemente todas as intempéries, tremores, deslizamentos, fanicos, esquecimentos, adiamentos e maus-olhados, próprios das várias estruturas, materiais, arrendatários, fornecedores, arranjadores, imobiliárias e quejandos, que se têm sucedido em sucessão nada meiga durante anos e anos a fio, que mais parece uma eternidade castigadora que só a alma mais pura poderia aguentar.

Fotografia de Kyle Wagnee (Unplash)

Uma eternidade que a Mãe Olinda parece contemplar etereamente lá no lugar em que habita, sem se aperceber bem do tempo que passa e dos tormentos que afligem a nossa manita, que gosta muito daquela casinha e das suas memórias, aquela casinha que o Pai António tratava assim, como se fosse um brinquedo frágil que se deve tratar como um torrãozinho de açúcar, sozinho no centro da mesa maciça da sala de jantar.

Que será feito de nós sem aquela mesa, como passará a manita sem aquela mesa? 

Diz-me a alma, sussurrando, que a manita irá continuar a precisar da mesa, e já agora do torrãozinho de açúcar, e que maus seríamos todos nós se não lhe déssemos o direito de privilégio, duramente conquistado por artes de amor, de poder desfrutar daquelas delícias sem a malícia dos maus-olhados.

Creio que o Paizinho concordaria, pelo menos é o que me diz lá dos sítios da praça carlos alberto, onde parece continuar sentado sempre que por lá passo, jornal ao lado, como se pedisse desculpa pelo ar que respira.

Saudades de todos, dos presentes e dos ausentes, é o que é.

Fotografia de Sharon Pittaway (Unsplash).

Até breve, manitos.

O papelinho tinha uma morada. Deslizei autómato, em passos de lã. Vi a rua e o talho. Olhei para cima e pareceu-me ver uma mancha branca, com asas, a borboletar até poisar na boina de um cantoneiro.

O homem, aturdido, ficou-se de bruços e foi abrindo lentamente o seu terceiro olho, o olho de Hórus, para sentir à volta e implorar clemência. Mas nada aconteceu.

Pareceu-lhe ver, por um momento, letras e números a rodopiar lá em cima. Pareceu-lhe ainda que as dobras do céu azul já se tinham endireitado, e que as aves já podiam voar, embora com passinhos de lã.

A gente da rua aproximou-se sem som. Não havia fluidos no chão. Os movimentos eram lentos, com se navegassem em óleo.

Mais tarde não soube explicar porque tinha ficado parado duas horas e vinte segundos, e porque tinha chorado no fim.



O leitor pode contactar o autor do texto, através do e-mail: pratas-young@theyeofhorus.net.

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José Pratas-Young

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