O Pantanal pede socorro

 O Pantanal pede socorro

Pouco depois do resultado eleitoral de 2018, o diário britânico The Guardian classificou a eleição de Jair Bolsonaro como “um perigo global”. Enquanto a grande imprensa brasileira perdia tempo com comparações esdrúxulas entre Bolsonaro e o candidato do Partido dos Trabalhadores Fernando Haddad – “Uma escolha muito difícil”, como escreveu o Estado de S. Paulo, em editorial já célebre – o editorialista inglês demonstrava preocupação com as políticas ambientais anunciadas na campanha do ex-capitão-expulso-da-corporação. Uma vez implementadas, em vez de contribuir para a contenção, as medidas ajudariam a acelerar o aquecimento do planeta. Passados quase dois anos desde aquele – para mim, triste e melancólico –  dia de eleição, a ameaça tornou-se realidade.

Além das trágicas queimadas na Amazônia, vistas mundo afora pelas lentes dos meios de comunicação, agora é o Pantanal que pede socorro. Nas últimas semanas, centenas de queimadas atingiram parte considerável da região. Maior planície alagada do globo, com uma extensão de cerca de 250 mil quilômetros quadrados, divididos entre Brasil, Paraguai e Bolívia – 150.000 quilômetros (km) em solo brasileiro – o bioma  concentra parte importante da biodiversidade do país. Na vasta extensão situada entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o Pantanal abriga centenas de espécies, muitas já ameaçadas de extinção, como a arara-azul-grande, um dos símbolos da região. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, já foram catalogadas no bioma 263 espécies de peixes, 41 espécies de anfíbios, 113 de répteis, 463 espécies de aves e 132 de mamíferos.

O Pantanal reúne, ainda, quase duas mil espécies de plantas, algumas com grande potencial medicinal, segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Além da fauna e da flora, o solo pantaneiro é o lar de diversos povos tradicionais, entre indígenas e quilombolas, e de comunidades que vivem às margens do Rio Paraguai, que banha a região. Uma beleza natural e cultural de grande exuberância que agora sofre, vítima da política ambiental praticada pelo governo de Jair Bolsonaro.

As fotografias e vídeos que nos chegam dão conta do tamanho da devastação e da situação de desespero de moradores que vivem próximos aos locais atingidos pelo fogo. Eles tentam salvar o que é possível, com os poucos meios que possuem. Em Poconé, cidade de 30 mil habitantes, localizada em plena região pantaneira, no estado de Mato Grosso, o fogo atingiu parte da zona rural da cidade, a pouco mais de 15 km da área urbana.

Professor na Universidade Federal de Mato Grosso, Cristóvão Almeida nasceu na cidade, aonde vai com frequência visitar os pais. Diante do avanço do fogo, ele passou dias, ao lado de outros moradores, tentando diminuir as chamas com os escassos meios que tinham em mãos. Recorreram a métodos tradicionais, como o uso de bombas d’água, que os moradores carregavam nas costas, e uma espécie de vassoura verde que serve para abafar o fogo. Mas nada disso resolvia, já que o fogo se mantinha vivo nos subterrâneos da vegetação densa e seca e não demorava muito para voltar a ganhar força. O professor relata “um cenário assustador” ao ver as chamas se espalharem com a força do vento. Depois de dias no local, ele gravou um vídeo em que apela à consciência das pessoas para não promoverem queimadas. Os moradores só puderam contar com a ajuda de aviões com água depois de vários dias de queimadas imparáveis. Os impactos foram imensos. Na área urbana de Poconé, a população sofre com a fumaça e com a falta de abastecimento. A água da principal bacia de abastecimento da cidade secou.

Para se ter uma ideia do impacto ambiental das queimadas, durante o mês de setembro, a capital de Mato Grosso, Cuiabá, a 100 km de Poconé, amanheceu, durante vários dias, com uma nuvem densa de fumaça no ar. Da janela de casa, via-se uma cidade envolta na fumaça, que chegava trazida pelo vento. A umidade do ar caiu a menos de 10% em muitos dias, agravada pelo calor intenso, que atingiu, na última semana, o recorde histórico de 44ºC na sombra.  

Apesar da gravidade da situação, Jair Bolsonaro fez vista grossa e considerou o fogo na região como “inevitável”. No discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 22 de setembro, o presidente culpou indígenas e caboclos pelas queimadas, sem apresentar nenhum dado que comprove a afirmação. Palavras jogadas ao vento. Mentiras contadas a torto e a direito. A imprensa, segundo o presidente, seria responsável por propagandear uma imagem negativa do Brasil no exterior sobre a política ambiental.

Como sempre, a culpa nunca é do governo. Como bom populista autoritário, Bolsonaro anda sempre à procura do inimigo imaginário – de preferência que possa ser chamado de comunista – que servirá de bode expiatório de todas as desumanidades praticadas por ele e seu governo. Antes era o PT; agora são todos os que contestam suas posições. Mesmo que a contestação venha dos órgãos do próprio governo…

De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão governamental do qual o próprio governo discorda, houve um aumento de 200% no índice de queimadas no Pantanal entre 2019 e 2020. Até o momento, o órgão confirma que 23% da vegetação pantaneira ardeu somente este ano. As informações do Inpe, que são de domínio público, incomodam Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, desde a divulgação pela entidade dos dados sobre o desmatamento na Amazônia. Foi essa a causa da demissão de Ricardo Galvão da presidência do Inpe. Com muita dignidade, Galvão teve a coragem de defender os dados que ele e a equipe sistematizaram com base em informações de satélite.

Não fosse a vergonha que a demissão de Galvão representou para o país, em agosto de 2019, poucos meses depois, o físico seria incluído na lista dos dez cientistas com maior impacto na ciência naquele ano, premiação da prestigiada revista Nature. Assim como os dois ministros da saúde que defenderam as medidas da Organização Mundial da Saúde e foram mandados embora no auge da pandemia do coronavírus, substituídos por um general, o ex-presidente do Inpe foi alvo do discurso anticientífico que predomina no governo Bolsonaro.

Até 29 de setembro, o Inpe calculou um total de 17.500 focos de incêndio no Pantanal em face dos 5.941 identificados no mesmo período de 2019. Mesmo que Bolsonaro os negue, os dados oficiais são incontestáveis e nem o seu negacionismo autoritário será capaz de escondê-los. O aumento nesta triste estatística não é um fenômeno isolado, tampouco se deve apenas ao clima quente da região, como quer Bolsonaro e acreditam os incautos. Houve fogo criminoso na Amazônia; há crime, agora, no Pantanal.

É verdade que, nesta época do ano, as temperaturas mais elevadas e o ar seco na região são um terreno fértil para a formação de queimadas. Mas não há como fechar os olhos às muitas evidências de práticas criminosas de ateamento de fogo – o que, aliás, tem sido pouquíssimo dito na cobertura jornalística em Mato Grosso. Nas últimas duas semanas, a Polícia Federal indiciou fazendeiros suspeitos de promoverem queimadas na região. Neste 6 de outubro, segundo avançou o portal de notícias G1, a polícia ambiental aplicou mais de um milhão de reais em multas na região de Sud Mennucci, interior de São Paulo, pela degradação de 92 hectares em área protegida e 393 hectares de cultura canavieira. As razões do incêndio teriam sido as fagulhas de uma carvoaria em atividade na região.

Toda essa gente vibrou com a eleição de Jair Bolsonaro em outubro de 2018 e agora age impulsionada pelo discurso de destruição do ambiente, diariamente reiterado pelo presidente da república e pelo próprio ministro da pasta. Para Ricardo Salles, ele próprio ligado ao agronegócio, a legislação ambiental atrapalha a vida dos empresários. Não tardará para ele propor a troca no nome da pasta: Ministério do Antiambiente ou coisa que o valha…

Foi esta a lógica que estimulou Conselho Nacional do Meio Ambiente, o CONAMA, comandado pelo próprio ministro Salles, a revogar, há poucos dias, as regras, vigentes desde 2002, de proteção de manguezais e restingas, dois importantes ecossistemas do litoral brasileiro, que compreendem parte da Mata Atlântica. Um Conselho adaptado sob medida, com a participação de diversos membros ligados aos interesses agropecuários e à indústria, decidiu pelo vale tudo naquelas áreas.

O Brasil possui cerca de 14 mil quilômetros quadrados de manguezais ao longo de sua costa, atrás apenas da Indonésia, que lidera o ranking. Esses espaços são um verdadeiro refúgio para muitas espécies marinhas, entre peixes, crustáceos e moluscos, que buscam o sossego das águas dos manguezais em busca alimentos, para reproduzir-se ou fugir de predadores. Nos manguezais brasileiros estão caranguejos, jacarés, tubarões, cavalos-marinhos, tartarugas e o conhecido peixe-boi. As restingas, por sua vez, são um ecossistema sombreado, que fixa a área e dificulta a erosão das praias. São uma vegetação muito procurada por tartarugas marinhas para o depósito de ovos. Uma riqueza inigualável que a legislação agora revogada procurada manter intacta.

Mas o ministro do meio ambiente diz que a revogação das normas é essencial para a “promoção do turismo” em detrimento da proteção de 1,6 milhão de quilômetros de área preservada. Em boa verdade, o CONAMA atendeu ao lobby de empresários do setor hoteleiro e abriu caminho à construção de hotéis de luxo na região. Ricaços, gente sem qualquer empatia, que pretende pisar literalmente nas espécies que ali vivem. Salles, o braço bolsonarista, faz o que sugeriu na reunião ministerial de 22 de abril no Palácio do Planalto, olhos postos no chefe Jair Bolsonaro: “temos de aproveitar este momento em que a imprensa está focada na pandemia de covid-19, para para ir passando a boiada.” A tosca expressão “passar a boiada” foi a maneira que o ministro encontrou para resumir a intenção nefasta de revogar a legislação ambiental que, de novo, segundo ele, atrapalha a vida da boa gente do mercado. 

Tudo isso é triste demais para o Brasil. Levaremos longo tempo a sentir os efeitos de tantas medidas desastrosas, que atentam contra a nossa própria vida. Bolsonaro não merece o adjetivo de genocida apenas pelas atitudes que tomou diante da pandemia do novo coronavírus, que já matou 140 mil brasileiros e brasileiras e continua vivíssima no país. Jair Bolsonaro é isso também por tudo o que tem feito, por ação e omissão, contra a vida das e nas florestas, matas, rios  e mares deste país agraciado, como poucos, com tanta diversidade; por tudo o que tem feito contra os nossos povos originários e suas culturas. O país que sediou a Rio-92, conferência da ONU para o meio ambiente, um marco na discussão sobre desenvolvimento com sustentabilidade, tem hoje um presidente determinado a destruir a nossa biodiversidade e o que conquistamos até aqui nesta matéria. E sabem o pior disso tudo? Parte da população acha mesmo que a defesa do meio ambiente é coisa de comunista.

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Bruno Araújo

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