O queimador de incenso de Tenochtitlán

 O queimador de incenso de Tenochtitlán

Rodrigo de la Torre (Pixabay)

Mas [Cortés] não contou com o facto de as pedras [de Tenochtitlán] conterem uma verdade para além daquilo que a visão consegue captar. Possuem uma energia própria, que não se vê, só se sente. Uma energia que não pode ser encerrada numa casa ou numa igreja.

LAURA ESQUIVEL
A lei do amor

O pior pesadelo de Pablo era a noite do campus. Durante o dia a vida e o trabalho eram divertidos.

No laboratório Martin ensinava-o a encontrar soluções viáveis, embora frágeis. Sobreviveriam um par de anos a Thatcher, mas não mais.

Ele, por seu lado, reforçava a face solar de Martin. Dava-lhe mais alegria e energia. Formavam um par imbatível, que suscitava invejas.

Os colegas da artrite reumatoide compravam o seu equipamento à custa das farmacêuticas e não precisavam de intrusos. Contudo, quando avariava, contornavam os técnicos do departamento e recorriam a Martin-Pablo. Para Martin a eletrónica e para Pablo o código.

Às 5 pm o sino tocava a rebate e o pub chamava. Não havia tempo para cursos de eletrónica ou código. Como conseguiriam?

No piso de cima, onde se concentravam os recursos de biologia molecular, havia uma câmara de liofilização. Sensitive, stuff only. Authorization required. Felizmente a sensibilidade não era só para os outros. Pablo aproveitou o fim de tarde para colocar a sua amostra.

Na manhã seguinte, bem cedo, já Martin circulava nervoso entre os dois pisos, a apagar incêndios, sem saber que fazer. Mas a amostra já estava seca e o problema resolveu-se.

O verdadeiro problema era a noite.

Vivia num quarto da residência de estudantes do campus e não havia segredos. O quarto estava bem plantado no relvado, rodeado de lagos e arbustos. O espaço exterior era amplo.

Michael M. (Unsplash)

De vez em quando ouviam-se longos gritos, talhados a desespero. Os gritos fendiam a noite. Chegou a sair em pijama, disposto a enfrentar os fantasmas. Os gritos reverberavam. Nunca chegou a perceber donde vinham.

Os gansos deslizavam suavemente nos lagos, impassíveis. Estariam a dormir? Ou será que comunicavam por ondas de rádio?

O melhor foi a vinda de Klaus N. Era estudante de linguística e usava uma barba espessa.

Ficavam longas horas a conversar lá fora, alheios a frio e gritos. Foi aí que conheceu Wittgenstein, explicado em direto, e aprendeu verdadeiramente a língua, que mais tarde dominaria como a sua.

Klaus foi mestre e companheiro. Partilhava gulosamente uma refeição preparada na cozinha comum. Tomava banho em grupo, aproveitando a ausência dos ingleses durante a semana. Ia em manada ao pub, onde interpretava as onomatopeias dos greasy dagos.

Vahid Kanani (Unsplash)

Sempre sentiu que os jovens alemães eram os mais genuínos, os mais suaves, os mais tolerantes e os mais cultos. Chegou a pensar que se queriam ver livres da culpa.

Mas Klaus foi sempre um irmão, um irmão incondicional. Nunca viu sinais de expiação de culpa.

Percebeu-se bem quem era quando Thijs, um amigo holandês, resolveu trazer a companheira contra os regulamentos. Liv era alta, musculada e tensa. Os quartos eram curtos e tinham as paredes finas.

Paso-doble num arame. Klaus anunciou uma rodada livre e levou-os ao pub.

Conversaram, beberam e sonharam. Quando regressaram Thijs e Liv tomavam um chá. Liv estava estranhamente solta e brilhante. O chá passou de mão em mão.

Uma vez percebeu melhor que Klaus não era bem um alemão típico. Os cabelos eram negros e os olhos escuros. Parecia por vezes um cigano, ao despir-se na sauna.

Mas a prova de fogo chegou quando conheceu Alejandra. Alejandra era um puro-sangue da Ciudad de Mexico. Uma cascata de cabelos negros aos caracóis que vertia sobre a cintura. Parecia improvável que sobrevivesse a Tenochtitlán se tivesse vivido nos tempos do jaguar, tal era a sua doçura.

Omid Armin (Unsplash)

Veio a convite do departamento e iria passar três meses.

Pablo, Thijs e todos os amigos tiveram que rumar ao pub várias vezes. Klaus saudava-os com o seu ar doce e oferecia-lhes uma rodada de kuemmerling, em pequenos copos. Era uma festa privada, que só eles conheciam.

Aproximava-se o dia da partida e Alejandra acelerou as experiências.

Klaus rondava, inquieto. Pareceu-lhe que os seus olhos endureceram e que os cabelos se eriçaram um pouco. Tiveram que o fazer sair, mansamente.

Parece que o ouviram sonhar com Dachau, camisas-pardas, kapos e marchas militares. Havia no ar notas soltas de Horst-Wessel-Lied. Unhas a escavar na madeira. Vozes de crianças, coadas por túneis. E apitos de comboios a partir. Klaus partiu logo a seguir a Alejandra, sem se despedir.

Deixou o quarto intacto. Deixou ainda um queimador de incenso e uma bela estatueta de Tláloc, o deus da chuva de Tenochtitlán.

O queimador ainda tinha restos de incenso. Tinha também um par de cabelos torcidos.

No dia seguinte ficaram todos por lá, sem saber que fazer. Martin chamou-o, mas não atendeu.

Passou três dias de cama, com febre dos fenos. Não imaginava que as ervas fizessem tão mal.

Tentou encontrar Klaus N. várias vezes. Pesquisou nomes e pediu a colaboração da Bundespolizei.

Até hoje não conseguiu.

Para contactar o autor do conto: pratas-young@theyeofhorus.net

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José Pratas-Young

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