O resgate da memória em tempos de ataque à educação no Brasil

 O resgate da memória em tempos de ataque à educação no Brasil

Créditos: Robert Nyman (Unsplash)

Há mais de duas semanas que os assuntos nos principais jornais do Brasil estão relacionados ao Ministério da Educação (MEC), que, durante um ano e meio de governo, teve a escolha de quatro ministros. O último deles ocupou a cadeira há cerca de uma semana: 10 de julho.

A preocupação em torno desse cargo reflete, entre outras coisas, a ausência do Ministério na promoção de políticas para garantir uma educação plural e igualitária aos brasileiros. Da primeira indicação ao cargo até o momento, houve um retrocesso no que diz respeito a políticas públicas na educação para combater as desigualdades, disfarçadas por um discurso de “combate à ideologia”.

O educador pernambucano, Paulo Freire, declarado patrono da educação brasileira em 2012, dizia que a educação deveria ser exercida como prática da liberdade, pois era através dela que o cidadão saberia reivindicar seus direitos.

Mas desde 2015 que tanto Paulo Freire como professores e a educação, em geral, vêm sofrendo ataques. Os resultados levaram-nos aonde estamos.  E o cenário atual coloca em evidência a urgência em garantir redução do impacto da desigualdade social na educação brasileira, em todos os níveis, mais importante do que discutir o papel de quem manda e desmanda como Ministro.

A presença feminina nos bancos escolares só foi permitida por lei no Brasil a partir de 1827, e o acesso à universidade foi liberado em 1879. Pouco mais de 100 anos depois, em 1991, pela primeira vez, o nível de escolaridade feminina superou a masculina.

A educação como transformação social

Créditos: Taylor Wilcox.

Se, em 2018, o prenúncio de mais uma crise na educação brasileira se constatava nas urnas, com a eleição de um governo que logo no início promoveu um contingenciamento de R$ 5,8 bilhões de reais no Ministério da Educação –  dizendo que o corte era para combater a “balbúrdia” nas Universidades –, por outro lado, os dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostravam que a desigualdade na educação entre homens e mulheres conquistava mudanças significativas.

Esses dados coletados mostram que, em 2018, o percentual de mulheres analfabetas ainda é maior (19,1%) que o dos homens (18%), mas quando a análise é entre 15 ou mais anos, as mulheres têm taxa menor (6,6%) do que estes (7%).

A presença feminina nos bancos escolares só foi permitida por lei no Brasil a partir de 1827, e o acesso à universidade foi liberado em 1879. Pouco mais de 100 anos depois, em 1991, pela primeira vez, o nível de escolaridade feminina superou a masculina.

Paulo Freire dizia que “a Educação não transforma o mundo, a Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.

A conquista histórica das mulheres brasileiras ao direito à educação reflete-se na transformação social do seu papel na sociedade, seja ocupando cargos outrora masculinos, ou participando ativamente na construção democrática. Entender um pouco dessa trajetória pode trazer luz sobre a importância de uma educação ampla e igualitária, dentro do contexto atual para despertar as parcelas excluídas.  

Paulo Freire dizia que “a Educação não transforma o mundo, a Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”. E ao conversar um pouco com algumas dessas mulheres, que mudaram as estatísticas educacionais femininas, sem nenhuma política pública para ajudá-las, compreendemos como a educação amplia os horizontes e forma pessoas capazes de colaborar com um futuro diferente.

Um século, três estórias, e situações semelhantes. Dentro da escola, ou no mercado de trabalho, as imposições sobre o papel da mulher seguem similares; mas, transformadas pelo conhecimento, cada uma delas construiu uma nova realidade e esforçam-se para despertar outras ao seu redor.

Créditos: Joshua Hoehne (Unsplash)

O resgate da memória

Foi com a Proclamação da República que se deu a criação do Ministério da Educação no nosso país, chamado na época de Ministério da Educação, Correios e Telégrafos, mais tarde integrado no Ministério da Justiça. A pasta surgiu devido ao ideal republicano, que carregava entusiasmo sobre o tema. Jorge Nagle descreve na obra Educação e Sociedade na Primeira República esse sentimento: “Na medida em que se torna a instituição mais importante do sistema social brasileiro, a escola primária se transforma no principal ponto de preocupação de educadores e homens públicos: procurou-se em especial mostrar o significado profundamente democrático da educação primária, pois é por meio dela que a massa se transforma em povo”.

O verbo “transformar” já estava interligado à educação, em 1920. E por essa razão, “as divisões de classe, etnia, e raça tinham um papel importante na determinação das formas de educação utilizadas para transformar as crianças em mulheres e homens”, como ressalta Guacira Lopes Louro, em Mulheres na Sala de Aula.

Enquanto se recorda da mãe dizendo que “a educação era o único bem que ninguém poderia tirar dela”, na opinião do pai, João Antônio, “mulher aprendia a escrever só pra mandar carta para namorado”.

As mulheres começavam a educar-se, mas havia distinções, tanto no currículo escolar quando comparado aos meninos, como na qualidade das escolas para diferentes classes sociais e etnias.

O Ministério da Educação, então, surge com o nome de Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930, na Segunda República. A educação passa a ser vista como um direito de todos. Inicia-se uma reforma dos ensinos secundário e universitário e começam a desenhar-se as bases da educação nacional.

No interior de Goiás

Foi neste contexto que, em 1942 nasceu Dinair de Souza,  caçula de treze irmãos, no interior de Goiás, no Município de Goiandira. E só aos 9 anos de idade que sua mãe conseguiu matriculá-la na escola. “No primeiro e segundo ano do primário — revela-nos —  estudei num Grupo escolar em Goiandira, uma escola muito boa. Mas no terceiro ano, meu irmão conseguiu um emprego num escritório, em uma colônia de imigrantes numa região que se chamava Cafeeira, e eu e minha mãe nos mudamos. Por lá fiz os últimos anos do primário, numa sala de aula, onde tinha meninas e meninos, todas as séries do primário juntas, com a mesma professora, Dona Yolanda”, conta.

Relembra com saudades: “Era uma escola muito boa para os padrões da época, rígida, formávamos fila para entrar na sala de aula, todos uniformizados, mas eu ia descalça, pois não tinha dinheiro para o sapato”.

Goiandira, em 1950.

Quando Dinair tinha 7 anos, o pai faleceu. Essa foi a única vez que citou o pai durante a entrevista, por outro lado, a imagem da mãe surge sempre em suas lembranças, Dona Maria Orsolini, filha de imigrantes italianos, era conhecida na cidade por sua personalidade forte, diferente das demais mulheres da época.  Foi ela a responsável pela educação de Dinair. Enquanto se recorda da mãe dizendo que “a educação era o único bem que ninguém poderia tirar dela”, na opinião do pai, João Antônio, “mulher aprendia a escrever só pra mandar carta para namorado”, como conta. Por isso foi após a viuvez da mãe que ela e a irmã que a antecede conseguiram seguir os estudos para além do primário, diferente das demais irmãs.

Para conseguir começar o Ginásio teve que retornar para a cidade de Goiandira, onde  fez uma prova de admissão, e passou a morar com uma das irmãs mais velhas, já casada. Ela relembra com saudades: “Era uma escola muito boa para os padrões da época, rígida, formávamos fila para entrar na sala de aula, todos uniformizados, mas eu ia descalça, pois não tinha dinheiro para o sapato”.

Ao começar a dar aulas havia no contrato de trabalho a estipular que, caso se casasse, teria que deixar o cargo, e isso deveria ser feito no final do ano letivo para não prejudicar os alunos.

Enquanto cursava os dois primeiros anos do Ginásio, ajudava a irmã com os deveres do lar. Mas logo a mãe mudou-se para a nova capital do Estado, Goiânia, e por lá foi terminar o Ginásio, no Instituto da Educação, onde, desta vez, teria como colegas de classe apenas mulheres, e junto fez a preparação para o magistério.  

Formatura no Normal.

A “feminização” do magistério, que ainda é vigente no país, começava a criar forma, onde a urbanização e industrialização, junto com o estereótipo de maternidade ligada ao ato de educar, deu às mulheres a oportunidade do ingresso no campo profissional.

Logo, Dinair passou em uma prova para dar aulas em uma importante escola particular da cidade. E assim seguiu até seu último ano de magistério, quando ficou noiva. Prestou vestibular para Matemática e Física na Universidade Católica de Goiás, foi aprovada, mas matriculou e trancou a faculdade por dois anos, enquanto trabalhava como educadora infantil em três empregos para conseguir comprar seu enxoval.

Na instituição privada em que trabalhava, havia um empecilho: ao começar a dar aulas havia no contrato de trabalho a estipular que, caso se casasse, teria que deixar o cargo, e isso deveria ser feito no final do ano letivo para não prejudicar os alunos. Resquícios de normas que já fizeram parte do Brasil no passado. O casamento e a gravidez eram o lugar da mulher na sociedade, e o trabalho fora de casa não deveria atrapalhar isso.

Casamento com Adão.

Deixou o emprego, em 1965, e casou-se. No ano seguinte, engravidou. Mas, ao contrário do que era esperado socialmente, trabalhou durante toda a gestação dando aulas à tarde e à noite em instituições públicas de ensino, enquanto cursava pela manhã Física e Matemática.

Formou-se, mas só pegou o diploma dois meses depois, pois não conseguia quitar mensalidades em atraso. O curso trouxe-lhe mais dinheiro, pois podia agora lecionar para o ensino médio. A filha ficava sempre um período sozinha em casa, até que ela ou o marido retornasse do trabalho.  

E quando as outras duas filhas nasceram, a mais velha cuidava delas, para que ela pudesse trabalhar. A educação delas também sempre foi priorizada. Tiveram aulas de música, línguas. E, apesar das cargas horárias de trabalho, decidiu cursar Direito, para estimular o marido, que com o curso conseguiria subir de cargo, formou-se um ano antes dele. Aposentada, após 26 anos lecionando, foi readmitida pelo Estado na Secretaria de Estatística, pois era uma das poucas pessoas à época com capacidade para o cargo.  Foi transferida para o Tribunal de Contas do Estado, onde hoje é aposentada também.

Dona Maria Orsolini, uma mulher que se insurgiu contra a mentalidade hegemônica da época, deixou o seu impacto na vida da filha. Seu legado foi dar a ela a vida que não pôde ter.

Dinair e a mãe, Maria.

Ao contar sobre sua trajetória, agora aos 78 anos, Dinair ainda se lembra dos nomes, cenários e histórias que cruzaram seu caminho. Mas a emoção é evidente ao falar da mãe: “Se não fosse por ela, eu estaria lá em Goiandira, como os meus amigos que ainda estão vivos. Sempre que eu e minhas irmãs vamos lá, comentamos o quanto nossa mãe foi essencial, para estarmos onde estamos hoje”.

Dona Maria Orsolini, uma mulher que se insurgiu contra a mentalidade hegemônica da época, deixou o seu impacto na vida da filha. Seu legado foi dar a ela a vida que não pode ter. Dinair ousou seguir o conselho da mãe e plantou, diariamente, a mesma semente na vida das filhas e de suas alunas.

No interior duro do Maranhão

Acompanhemos agora a trajetória de uma nordestina. Edna Regina nasceu em 1963, em uma fazenda no interior do Maranhão, chamada Ponta D’Água, em um contexto onde quase metade da população brasileira com 15 anos de idade era analfabeta, tendo um índice ainda maior nas regiões Norte e Nordeste e na zona rural onde viviam cerca de 60% dos brasileiros.

Edna e mãe, Antonieta.

O processo migratório causado pela urbanização começava a criar forças, um fenômeno que repercutiu na vida de Edna. “Meus pais são do interior do Maranhão, da zona rural. O meu avô, pai da mamãe, teve 15 filhos, destes, 11 eram mulheres, foi ele que teve a preocupação inicial de sair da zona rural e ir para a cidade para dar educação às filhas” conta.

A sua mãe, Dona Antonieta, herdou essa inquietação, a vontade de ir além das imposições sociais da época. Apesar de logo após casar-se ter ido viver com o marido na fazenda Ponta D`Água, assim que Edna nasceu, Antonieta sentiu a necessidade de migrar para cidade de Buriti Bravo, mas com o nascimento de mais dois filhos foram para a cidade de Imperatriz, para que pudessem ter melhores condições.

“Meu pai ele é diferente, ele tem um jeito mais dócil, e ele acabou aceitando as decisões da mamãe”, conta Edna. As extensões territoriais brasileiras começavam a tomar nova forma com a construção da rodovia Belém-Brasília, que ligava o Norte do país à nova capital, Brasília, no Centro-Oeste. E acabou influenciando alguns núcleos urbanos, como o caso de Imperatriz do Maranhão, cidade que começava a crescer.

Assim que chegou em Imperatriz, seu José, pai de Edna, conseguiu um emprego como vendedor de café, e logo subiu para a gerência. Mas Dona Antonieta não acreditava que o domínio da casa era seu único ofício, relata Edna: “minha mãe, como tem essa alma inquieta, não conseguiu ficar cuidando só da casa, então montou uma banquinha na frente de casa onde vendia comidas típicas nordestinas e cigarro”. Com a venda dos quitutes, em pouco tempo conseguiram alugar um ponto comercial, onde montaram uma sorveteria e uma mercearia. Os novos negócios de Dona Antonieta tornaram-se tão lucrativos que Seu José foi trabalhar com ela.

Com o sucesso dos negócios, os pais pagaram para todos os sete filhos escolas particulares, a prioridade em casa era a qualidade do ensino. “Eu não estudei em escola pública, porque em Imperatriz elas eram muito ruins. Tive uma formação em uma Escola de Freira, que era muito boa. Como eu convivia com muitas colegas com um poder aquisitivo melhor, ao finalizar o ensino fundamental, elas iam para outras cidades para cursar o Ensino Médio para ir para faculdade”.

A sala de aula proporcionou-lhe muito. Da fazenda Ponta D’Água até tornar-se a Dra. Edna Pereira. Por isso, segue cumprindo a missão de devolver tudo que recebeu por se dedicar aos estudos — hoje já tem 28 anos dedicados à docência, a sua única filha segue seus passos na medicina.

Edna e a mãe, Antonieta, na formatura.

Seguindo os passos das colegas de classe, quando chegou a hora de ir para o Ensino Médio, foi questionar a mãe, relata Edna: “E agora, para onde eu vou?” Dona Antonieta conversou com um primo distante, que ofereceu a casa em Teresina, capital do Piauí para Edna morar com ele, e a família. Como ela era boa aluna, não teve grandes dificuldades na nova escola. No fim de dois anos, prestou vestibular para Medicina na cidade e não passou.

A mãe pediu para que Edna retornasse para casa, ela lembra sorrindo: “Eu só tinha uma chance para passar numa Universidade Federal, de acordo com a mamãe, então voltei para casa. E tinha que ganhar dinheiro, ajudar. Aí comecei a dar aula para o Jardim de Infância. E eu me sai tão bem que a diretora queria que eu tirasse medicina da cabeça e continuasse a lecionar”.

A partir da feminização do magistério, a historiadora Guacira Lopes Lobo narra que “o trabalho externo para lecionar era visto por muitos como um trabalho de mulher, pois era um emprego de um turno, o que permitia que elas cumprissem “sua obrigação doméstica” em outro período”. Tal característica não se enquadrava com  Edna Regina que, nos demais turnos, se dedicava aos estudos para entrar na Universidade.

Chefe do Departamento de Clínica Médica.

E no exame vestibular seguinte foi aprovada para Medicina, desta vez na capital do seu Estado, na cidade de São Luís do Maranhão. O processo migratório educacional não parou por aí, veio a residência em São Paulo. O casamento e a mudança para Goiânia, e a chegada da filha. Começou a lecionar na Universidade Federal de Goiás (UFG). Retornou a São Paulo para fazer o mestrado e doutorado.

A sala de aula proporcionou-lhe muito. Da fazenda Ponta D’Água até tornar-se a Dra. Edna Pereira. Por isso, segue cumprindo a missão de devolver tudo que recebeu por se dedicar aos estudos — hoje já tem 28 anos dedicados à docência, a sua única filha segue seus passos na medicina.  Na base, a descendência de uma mulher forte, empreendedora, à frente do seu tempo, que lhe serviu de exemplo para construir seu caminho.

O presente ainda carrega o passado

Na Segunda República, Dinair consegue superar as expectativas da época, incentivada pela mãe. Em meio ao Golpe Militar, a menina Edna nasce na zona rural e constrói seu caminho até o doutorado. Ao fim de um século, em 1991, o nível de escolaridade feminina torna-se maior que a masculina, uma vitória do protagonismo de mulheres, que, na sua luta individual, conquistam um novo patamar coletivo, mesmo com as oscilações legais para garantir uma educação ampla e universal.

A década de noventa começa com a democracia restaurada, e uma nova Constituição no Brasil. Renasce no país o sentimento de uma educação que ultrapasse os limites sociais, para a construção de cidadãos ativos. E, em 1992, a terceira protagonista desta reportagem, Flaviana Alves, nasce em Governador Nunes Freitas, no norte do Maranhão.  Caçula de 5 irmãos, perdeu o pai ainda criança. E por isso, a presença de Dona Neusa Alves Santos, sua mãe, surge como a bússola norteadora de seus passos, logo no início do seu depoimento. “Você precisa estudar, é isso que vai levar você para frente”, uma frase que marcou seu destino, e de que se recorda ainda hoje.  

Com muito em comum com as duas mulheres de décadas à sua frente, a jovem cresceria em um ambiente desigual, mas uma oportunidade mudaria as expectativas sociais do seu caminho.

“Nossas roupas, éramos nós que fazíamos, os modelos eram saias até o joelho de preguinha, blusas com golas enormes. Cada uma das meninas tinha uma função, prato, louças, cama”

Flaviana Alves

Na quinta-série, na escola pública onde estudava na sua cidade, um grupo de freiras apresenta uma oportunidade para as alunas: ir estudar em um internato para meninas. Os pré-requisitos eram: passar em uma prova e vir de uma família humilde. Um momento divisor de águas na vida de Flaviana, como conta: “Esse ponto foi fundamental na minha vida. Lá eu tive uma boa base de língua portuguesa. Quando cheguei na faculdade meus professores comentavam que era raro alguém tão bom na escrita vir de colégio público.”

Créditos: Vila das Crianças.

A Escola Vila das Crianças, situada no Núcleo Rural Alagados, em Santa Maria, no Distrito Federal, é administrada pela igreja Católica, por meio das Irmãs de Maria de Banneux. Um resquício vivo dos primórdios da educação feminina no país, que teve suas primeiras escolas fundadas por congregações religiosas. O ambiente de aprendizado, que também se torna um lar, e retrata que o processo de educação de meninos e meninas não são universais, na sociedade atual.

Flaviana relembra da grelha curricular que teve, para além das matérias como Língua Portuguesa, História, Matemática… “lá você aprende corte e costura, a prática de esportes também é bem diversa. Cada semestre aprendemos um esporte diferente. Nossas roupas, éramos nós que fazíamos, os modelos eram saias até o joelho de preguinha, blusas com golas enormes. Cada uma das meninas tinha uma função, prato, louças, cama. Havia funcionárias que cuidavam da alimentação. Para muitas a alimentação era bem melhor do que a de casa, variavam as carnes, as verduras. Nós éramos responsáveis pela limpeza e fazer o pão. Amávamos quando era nossa vez. Passávamos o ano todo lá, morávamos e estudávamos. Só voltávamos para casa pertinho do natal, e tínhamos com a família duas, três semanas no máximo”.

A distância da família foi um ponto que pesou tanto para Flaviana quanto para a sua mãe, embora Dona Neusa, por fim, decidiu que o melhor para o futuro da filha seria ir. A vivência de carinho em casa não era a realidade das colegas da escola: “muitas meninas que estavam lá sofriam abuso e vinham de péssimas famílias, era recorrente. No meu caso não, eu tinha uma mãe muito carinhosa”.

Ao rever o passado compreendeu que as distinções e desigualdades que habitam o Brasil e que enfrentaria mais à frente são transportadas para dentro dos muros da escola.

Nos primeiros anos, as alunas só podem ter contato com a família uma vez por mês. Cada semana uma série escolar recebia ligação dos pais, relembra Flaviana: “No final de semana era o telefone tocando o dia inteiro, e as irmãs anunciando o nome da aluna, cada uma podia falar por 10 minutos. Minha mãe não tinha telefone, aí nem sempre eu recebia ligação. Para falar comigo, ela tinha que ir à casa de uma comadre dela, que também tinha uma filha que estudava lá, e ela priorizava ligar para filha dela. Eu lembro que eu ficava bastante chateada, quando não conseguia falar com a minha mãe”.

No fim do oitavo ano, Flaviana já não queria continuar a cursar o Ensino Médio longe da família, as meninas que ficavam para concluir o ensino eram escolhidas por seu comportamento no dia-a-dia. Embora fosse uma aluna exemplar, ela queria voltar.  “Eu já estava muito descontente. Então, no oitavo eu falei para a Irmã, não precisa me escolher que eu não vou continuar. Como eu era uma aluna exemplar, a irmã não entendeu e tentou me convencer, mas eu não queria, não sabia explicar o porquê, mas hoje eu vejo”.

Flaviana e a mãe Neusa.

O regresso a casa é caracterizado por Flaviana como “uma crise existencial”. Ao explicar as dores que só compreendeu depois, ela justifica: “você se adequa tanto ao local, é tão grato pela oportunidade, que acaba por não questionar”. Mas ao rever o passado compreendeu que as distinções e desigualdades que habitam o Brasil e que enfrentaria mais à frente são transportadas para dentro dos muros da escola.

“Tinha muito mais meninas negras lá do que brancas, até pela maioria ser proveniente do Norte e do Nordeste e, pela condição financeira. Mas nas datas comemorativas, quando a gente recebia benfeitores, que ajudam a escola manter-se financeiramente, as meninas escolhidas para entregar presentes eram sempre brancas. As irmãs falavam que as meninas para entregar tinham que ter uma boa aparência. Eu tinha uma professora que gostava muito da minha escrita, estimulava-me. Quase sempre me escolhiam para escrever as mensagens, mas não era eu que iria entregá-las” recorda.

A padronização de hábitos também não se adequava às características do corpo de Flaviana, como narra: “o shampoo e o creme para os cabelos era coletivo e não contemplavam o “Black Power”. Quando entrei na escola, meu cabelo foi cortado curtinho e foi crescendo ao longo dos anos. Eu me lembro de uma situação que me marcou nesse sentido, eu estava com o cabelo todo quebrado, por alisamento, eu tinha uma tiara que disfarçava. Mas acabei perdendo a tiara e fiquei muito triste, porque uma professora falou: Por que uma menina tão inteligente não anda arrumadinha?”

Ao retornar para casa, continuou os estudos terminando o ensino médio na sua cidade. Prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), para realizar o sonho de passar na Universidade e foi aprovada em Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC). Mas, para regressar ao Centro-Oeste do país, era preciso dinheiro. E, assim como as mulheres de outras décadas, o magistério concluído em paralelo com o ensino médio, deu a ela o ingresso no campo profissional, e a oportunidade de realizar seu sonho: “Eu fiz um concurso para ensino infantil, e assumi na cidade vizinha um trabalho com uma carga horária melhor, aí juntei dinheiro por um ano. Depois fui pra Goiânia, fiz o Enem, aí passei de novo e fui estudar na PUC.

Hoje, de volta à sua terra, Flaviana organiza uma oficina de escrita para meninas negras, trabalha como redatora “freelance” e espera a conjuntura sanitária melhorar para seguir desbravando o mundo.

Flaviana na Inglaterra

Com a finalidade de democratizar o acesso ao Ensino Superior, em 2005 foi aprovada a Lei nº 11.096, que instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas de estudos em instituições de ensino superior particulares a estudantes de escolas públicas de baixa renda e/ou estudantes de escolas particulares na condição de bolsistas, utilizando como referência a nota do Enem. Foi o caso de Flaviana, que pela primeira vez estava em uma capital, estudando em uma Universidade elitista e majoritariamente branca e, por isso, ela assume que tinha vergonha de falar que era cotista, pois, na PUC, tinha uma cultura de “cotista está tirando minha vaga”.

Inscreveu-se para estudar no período noturno e trabalhava pela manhã e à tarde para se manter.  Diante da sua vivência até aquele momento, a Universidade foi um universo novo e inacreditável. “Eu me lembro que no primeiro dia que cheguei na faculdade, toda sonhadora. Subi no andar mais alto. E falei: meu Deus, não acredito que cheguei na faculdade. E prometi que eu iria aproveitar o melhor daquele lugar” recorda.

Flaviana no dia da apresentação do TCC, com os seus professores.

Durante o curso, foi uma dos cinco alunos selecionados para uma bolsa e foi cursar um semestre em Coimbra, Portugal. “E aquele momento foi um ponto novo na minha vida. Eu tinha uma bolsa, eu não precisava trabalhar e eu parei para pensar pela primeira vez em qualidade de vida, em como eu estava vivendo. Que eu queria viajar, que eu também tinha esse direito. E de lá eu fui para a Inglaterra, para melhorar meu inglês, fiz um curso de 6 meses. Tranquei a faculdade no Brasil. Só quando voltei, fui me formar”.

Lançamento do livro “Donas de Si”.

Da pequena cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, para o mundo. Um momento que recriou seu destino. Flaviana voltou para o Brasil com o desejo de escrever sobre as histórias que conheceu. Apresentou o seu Trabalho de Conclusão de Curso em formato de livro-reportagem sobre mulheres migrantes vítimas de violência de gênero. O trabalho virou um livro “Donas de Si”.

Hoje, de volta à sua terra, Flaviana organiza uma oficina de escrita para meninas negras, trabalha como redatora “freelance”, e espera a conjuntura sanitária melhorar para seguir desbravando o mundo. Em suas redes sociais, compartilha sua história e o prenúncio de Paulo Freire sobre o poder da educação concretiza-se em um dos seus textos: “logo eu, projetada pelo sistema para ser pobre, triste e sofrida, vou fazer o oposto”.  

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Jéssica Neves

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