O triunfo dos porcos

 O triunfo dos porcos

GR Stocks (Unsplash)

Antes do debate entre Catarina Martins e André Ventura, havia quem estivesse certo do seu vencedor. E não demorou a que os comentadores – entre os quais, jornalistas – sentenciassem a vitória de Ventura por ter sido “mais eficaz” e ter “falado melhor ao seu eleitorado”. E é provável que o presidente do partido CHEGA tenha, dentro desses parâmetros, sido melhor. Mas o que significa ganhar um debate?

O circo mediático, concebido pelo jornalismo ideológico (ainda alguém acredita no mito da neutralidade jornalística?), impôs há muito o sistema de combate de galos, transfigurando o estúdio em ringue, e a ideia generalizada de que todos os pontos de vista são igualmente válidos, e que não podemos escolher, entre eles, com base em convicções, mas em emoções superficiais e no resultado final. É a consequência da importação do modelo norte-americano de debate-espectáculo – um paradigma planeado pelos media e ajustado para um propósito definido, que é o das audiências e do lucro associado. O que conta não é o que se diz (e muito menos o rigor e a propriedade com que se fala), mas a entoação, a multiplicação de factos (não raro, deturpados), a agressividade discursiva, a prontidão verbal e os processos discursivos que controlam as nossas emoções básicas. Em suma, a voracidade dos sound bites.

Se Ventura quisesse debater, teria de escutar, merecer ser escutado e apresentar as suas ideias. Mas ele não quer debater: quer vencer um debate. Por isso, provoca, interrompe constantemente o adversário, recorre a inúmeras e burlescas contracções do rosto e da boca (como a TV gosta), gesticula e acena com a cabeça como um garoto, vale-se dos infalíveis trunfos em papel documentado. André Ventura, para sermos francos, não é completamente perverso; é apenas inensinável. Lembra aqueles jogadores de futebol que passam um jogo a dar sarrafada aos adversários e, ao mínimo golpe sofrido, contorcem-se dramaticamente no relvado como se o mundo estivesse a acabar e não houvesse qualquer outra forma mais asseada de jogar.

Jerónimo de Sousa decidiu não debater com Ventura. E fez bem. Primeiro, porque, de acordo com os critérios que os modelos televisivos e os editoriais ideológicos alimentam, perderia. Depois, porque seria arrastado para um terreno de mediocridade e de mediatismo vulgar. Além de que, apesar da sua idade, é demasiado virtuoso e ingénuo.

A arrogância demagógica de Ventura leva-me a acreditar que o homem sairia sempre vencedor de qualquer debate, fosse quem fosse o seu contendor. Martin Luther King, Mahatma Gandhi ou Nelson Mandela murchariam impotentes ante o falsário da linguagem que é o nosso André, e Jesus Cristo ficar-se-ia pelos desenhos a dedo no pó da terra.

Se quem se atreve a “debater” com André Ventura sabe que vai perder, como interpretar a atitude de mártir com que o faz? Talvez haja (ainda) quem queira traçar a fronteira entre a decência e a barbárie. Mas é um esforço inglório e tem um alto preço. Sobretudo, porque boa parte do auditório não tem olhos na cara e acredita que um debate, seja entre uma rodela de limão e um pneu de camião, é sempre um debate. Catarina Martins invocou tacticamente o Papa Francisco, percebendo-se que queria informar (sobretudo a direita) que o debate político deve poder ser prestigiado. Esqueceu-se, porém, que o regime democrático ainda não criou a pedagogia da elevação moral. Demos telemóveis e big brothers às pessoas, mas fomos coniventes com a escassez de recursos na Educação e no serviço público de qualidade na imprensa e nas televisões.

João Ferreira, guiado por um pragmatismo que afasta qualquer suspeita de ilusão, afirmou em tempos: “Bernard Shaw dizia que a vida lhe tinha ensinado a nunca lutar com um porco; em primeiro lugar, porque isso evidentemente o deixava sujo, e, em segundo lugar, porque o porco gosta.”

E os tempos são das aparências. E das audiências.

04/01/2022

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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