Onde estão os curdos? Como estão os curdos?

 Onde estão os curdos? Como estão os curdos?

Quando Timor-Leste (poética e ironicamente Timór Lorosa’e em tetum) foi brutalmente massacrado em Díli pela Indonésia de Suharto, 16 anos depois da saída do Portugal de Abril, os portugueses vieram à rua e não descansaram enquanto a jovem República não nasceu, de jure pelas mãos das Nações Unidas em 2002. Foram anos e anos de incerteza e traições várias, mas quem não se lembra do “quem não salta é indonésio” das primeiras semanas? Portugal chorou os timorenses e o mundo chorou-os pelos olhos de Portugal.

E quem chora os curdos?

Curdistão.

Cultural e politicamente entrincheirados entre o Irão, Iraque, Síria e Turquia (agora “estados falhados”), os não-persas, não-árabes, não-muçulmanos, não-sunitas, não-xiitas e não-cristãos tinham até há pouco a melhor possibilidade histórica de refundar um Curdistão autónomo, senão independente. Nunca os turcos estiveram tão perto de um compromisso desde a anexação de Atatürk, em particular no Curdistão iraquiano. A fronteira nordeste parecia assumir solidamente o seu papel tampão entre a Síria de Bashar-al-Assad e a Turquia de Erdoğan, à custa dos valentes peshmerga e, ironicamente, do inimigo ISIS, tatica e estrategicamente partilhado com os EUA.

Mas a história é madrasta e os homens ingratos. Ou pelo menos alguns. Incentivado por Trump nas suas relações ambíguas com a Síria e o próprio ISIS, Erdoğan dissolve a fronteira e empurra os curdos para sul em Outubro de 2019. Contra o protesto massivo, fora e dentro dos EUA, incluindo aliados internos, Trump não objeta e deixa. Não passou um ano. “Só as montanhas são amigas dos curdos”, reza o velho provérbio, que reverbera.

Pois, quem chora os curdos?

Foto de Hadi Yazdi Aznaveh

Os timorenses foram traídos pela Austrália, sedenta do petróleo do Timor Gap. Os curdos foram traídos pelo complexo militar-industrial americano, cuja sede pelo petróleo do Médio Oriente foi aliviada pela produção massiva de gás e petróleo de xisto. (Os EUA são hoje o maior produtor mundial de petróleo.) Frio e pragmático, o complexo não chora as crianças e mulheres curdas, dizimadas aos milhares por turcos ao longo de anos, e agora também empurradas para as montanhas inóspitas, cada vez mais longe do sol e do mar, qual Lorosa’e ao revés. Não, os curdos não têm direito a sentir a brisa do Mediterrâneo, do Cáspio e do Negro.

Os curdos são chorados por eles próprios e por nós, homens comuns. Nós também somos curdos, tal como fomos (e somos) timorenses. Na versão da melhor América, a de George Floyd, “curd lives matter”.

Um amigo meu, curdo a viver em Berlim após muitos anos nos EUA, chorou os seus irmãos em Outubro passado à sua maneira, à maneira do exílio. Num assomo de loucura, enviou uma carta aberta ao Presidente dos EUA e ao Presidente da República da Turquia.

A carta, que recebi por email, nunca foi publicada nem, surpreendentemente, teve alguma expressão, quer junto dos media quer das redes sociais. Publico agora uma parte, in communi fraternitate solidalis um tanto tardia (mas sentida).

This is a joint public message to the President of the USA and the President of the Republic of Turkey via the respective embassies in Germany.

There is no point in conveying separate messages – you are inextricably and dramatically bound together, now that you have colluded to deliver a terrible blow to hundreds of thousands of innocent people whose only guilt is having endured the hardship of an endless war. Shame on you.

We are going through exceptionally difficult times, where the lives of humble people don’t seem to matter, rocked by elusive yet fiery and ruthless powers. Well, these fine people are our extended global family. We hear the bombshells, and we do care.

Millions of people throughout the world are just devastated with the announced slaughtering. Mind this: We will not remain silent. We will go to the streets and demonstrate. Your fate is certain: Your political time is over. You will be impeached. We are millions.

You would rather mind your step. As committed consumers we will single out your products as if they carried a nuclear hazard, or an utterly unacceptable ecological footprint. We will say no to Amazon, Bayer, Coca-Cola, Facebook, Google, Kellogg’s, VISA or Walt Disney. We will stop flocking to Turkey as tourists.

We cannot accept that you are treating the Kurdish people like rotten carrots. Thousands of Kurdish fighters have perished against ISIS, and have now been discarded. The ultimate cynical outcry: “They didn’t help us with Normandy”! It feels like you have thrown your little brother into a pig sty. How dare you.

We cannot accept that you are dumping the Syrian and Kurdish peoples as a casualty of American and Turkish politics. (Or shall we say a cover up for Trumpian and Erdoğanian domestic troubles.)

Mind the step. We are all learning the potential value of impeachment as a curative fix for extreme narcissism, arrogance and contempt for democratic values, and this applies to twin souls. You are wrong if you assume that an impeachment is a local process.

So do step down while you can.

Do it now. We are millions.

Verifico agora que a carta parece ter sido escrita hoje. Continua válida, explícita ou implicitamente. Nunca como hoje a necessidade do impeachment foi tão clara. Há um quisto que necessita de ser expurgado, mesmo que não cure o organismo.

E os cidadãos têm muita, muita força. Muito mais força do que pensam, ou sentem. Acrescentaria os media, cuja responsabilidade de ouvir e dizer, sem hiatos, é hoje maior do que nunca.

Necessitamos, todos, de saber onde estão e como estão os curdos. E os uighurs na China, os rohingya em Myanmar. As minorias. Os pobres. Os sem-abrigo. Os diferentes.

Lorosa’e para todos.

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Luís Martinho Rosário

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