Os indígenas e a covid-19 no Brasil

 Os indígenas e a covid-19 no Brasil

Deb Dowd (Unsplash)

São mais de 300 povos indígenas no Brasil, talvez o maior número em todo o mundo. São também mais de 200 línguas diferentes faladas pelos cantões desse nosso imenso espaço geográfico. Em cada comunidade, cada aldeia, são sempre os mais velhos os que guardam a memória coletiva dos seus. Eles sabem as canções sagradas, os rituais, eles conhecem os caminhos, as plantas, eles guardam as histórias de luta travadas desde sempre, eles são os guardiões. Quando um desses anciões se vai, é como se uma imensa biblioteca se extinguisse. E daí, o legado esperado e necessário é que ele tenha conseguido passar para as novas gerações toda essa sabedoria, todo esse conhecer. Ainda assim, a perda é grande, e é pranteada como tem que ser. Os indígenas reverenciam seus velhos. 

Agora, com a pandemia, muitos desses sábios, de tantas etnias, estão indo embora. E não precisariam. Sem a doença talvez ainda vivessem muitos anos mais. Mas, os que vivem nas comunidades tem sempre mais dificuldade de enfrentar as doenças dos não-índios, seus corpos não estão preparados, ainda que já tenham se passado mais de 500 anos de contato. E a Covid-19 tampouco é um flagelo dos deuses. Ela é coisa dos homens. Desde que o novo coronavírus chegou ao Brasil as comunidades tentam se proteger. Mas, não é fácil. O governo lhes nega proteção, e tanto que o presidente chegou a vetar uma proposta de garantia de medicamentos, leitos e respiradores. Para os governantes é bom que morram, assim os amigos latifundiários, mineradores, podem se adonar das terras. Por isso lhes deixam à própria sorte. Eles se protegem como podem, e ainda precisam enfrentar jagunços, pistoleiros, grileiros, invasores e toda a sorte de criminosos cercando suas aldeias e ajudando a infectar ainda mais as gentes. 

Os indígenas do Brasil tiveram de entrar com uma ação no Supremo Tribunal Federal para exigir que o governo cumpra a Constituição, que lhes garante proteção. E ainda assim, o governo não cumpre. É como se estivéssemos de novo em 1500, com as hordas de homens doentes de gripe, sífilis e tuberculose, infectando e matando milhares, sem que ninguém se importasse. Não há lei. Não há garantia. Não para os povos originários.

Studio Ocular (Unsplash)

E, por conta desse descaso, desse crime contra as gentes indígenas, as etnias vão perdendo seus velhos, seus xamãs, seus guerreiros, seus guias. Já são mais de 900 mortes. Pode parecer pouco, mas não é. Quem perde uma vida, perde um mundo. E nas comunidades isso é ainda mais real. Seriam então os indígenas especiais? Mais do que qualquer outro morto, desses 100 mil que já semeiam nosso chão? Não, eles não são especiais. São distintos. Por sua condição de aldeados deveriam ser protegidos pelo governo. É o que diz a Constituição. Eles vivem de outro modo, em comunidade, muitas vezes juntos, em grandes espaços. Um único caso de Covid-19 pode por a perder uma aldeia inteira. Haveria que impedir a entrada de não-índios nas terras, haveria que realizar testagens, haveria que garantir atendimento médico, criar barreiras sanitárias, proteger os isolados. 

Sebastien Goldber (Unsplash)

É fato de que os cuidados com a vida indígena são escassos nos tempos ditos “normais”. Desde sempre as demandas precisam ser garantidas na luta. Mas, agora, no contexto da pandemia, piorou, porque não leva em conta a especificidade das etnias, suas fragilidades. Não há Ministério da Saúde, não há Funai, é um salve-se quem puder. E, como podem, as populações vão se defendendo, mas até quando fazem isso por conta própria, com grupos de proteção, são criticados.  Na floresta, nos cantões do Brasil, nas profundezas da nação, onde ainda vivem e lutam os originários, parece que o 1500 ainda não acabou. E é real. 

Agora, com a decisão do STF, obrigando o governo a ter um plano para os indígenas, novas comissões serão formadas e toda a burocracia que isso traz. Não garante em nada a proteção. Vai ser preciso muita batalha. 

Enquanto isso, seguem as mortes. Porque não há proteção nem para os indígenas nem para os trabalhadores. 

No triste adeus ao grande cacique Aritana, o adeus a todas as almas que foram para o grande espírito. Cedo demais, cedo demais…

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Elaine Tavares

Jornalista e educadora popular. Editora da «Revista Pobres e Nojentas», com Miriam Santini de Abreu. Integra o coletivo editorial da «Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos». Coordenadora de Comunicação no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil).

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