Os milhões prometidos para rejuvenescer o Vouga

 Os milhões prometidos para rejuvenescer o Vouga

A intenção governativa reacende a esperança comunitária sobre a requalificação da secular ferrovia no Vale do Vouga, que outrora conectou Espinho, Aveiro e Viseu. De Lisboa a Gatões, com paragem indispensável em Oliveira de Azeméis, surgem sinais sobre os planos delineados para o projeto férreo.

Os tons negros e o aroma a carvão queimado anunciaram, na tarde de 23 de novembro de 1908, a inauguração da Linha do Vale do Vouga. Até ao término daquele dia, entre Espinho e Oliveira de Azeméis, milhares de populares de todo o país deslocaram-se à região, numa afluência nunca antes registada, relatam os periódicos nacionais. As bandas filarmónicas tocaram as suas melhores composições, a bandeira monarca fora hasteada em cada estação e os foguetes irromperam a céu aberto. Com partida em Espinho, a comitiva liderada por D. Manuel II viajava no salão real e observava o caos na multidão, onde flores eram lançadas, bandeiras de associações agitadas e calorosos “vivas” ecoavam. Na chegada a cada estação era tocado o hino nacional, com renovadas celebrações, pétalas que entupiam a via, foguetes lançados e ramalhetes de flores oferecidos. Em Oliveira de Azeméis, destino final daquela ocasião, o cortejo prosseguiu nas ruas da vila, com guarda de honra ao encargo de uma força de infantaria e cavalaria que chegara horas antes do Porto. O periódico Comércio do Porto relatou a azáfama presenciada e estimou que o cortejo de D. Manuel II atraíra cerca de 15 mil populares.

Na necessidade de conectar a região do Vale do Vouga à ferrovia entre o Porto e Lisboa, assim como escoar a produção agrícola, a proposta de lei para a construção do caminho férreo até S. Pedro do Sul, e respetivos interfaces, ficou acordada em 1889, no âmbito do investimento a norte do Mondego. Porém, o prazo de seis anos não foi cumprido, consequência da crise financeira e política que se instalou na última década do século XIX. Apenas em fevereiro de 1907 o Estado assinou o contrato definitivo para o projeto e, em dezembro desse ano, foram encetadas as obras entre Espinho e Oliveira de Azeméis. Depois da inolvidável inauguração, em 1908, a circulação neste troço foi possível a partir de dezembro.

Espinho em 23-11-1908, Colecção do Centro Português de Fotografia

Os 175km de carris foram completados em fevereiro de 1914, com a abertura do percurso entre Vouzela e Badiosa, em Viseu. Para lá dos entraves financeiros e das divergências governativas, este projeto férreo foi concebido numa região montanhosa e florestal com acessos complexos e curvas asfixiantes, o que tardou a circulação na íntegra. Ainda assim, como escreveu a Gazeta dos Caminhos de Ferro, o percurso era pintado por belas telas paisagísticas, verdejantes, e atravessava as altas pontes viseenses, exclusivas na ferrovia nacional e atraentes para quem visitava a região.

Joia da Monarquia, gordura na era da Troika

Conectada à História de Portugal, a Linha do Vale do Vouga enfrentou vários problemas de foro económico, político e ambiental. O primeiro encerramento do troço entre Sernada do Vouga e Viseu, em 1972, ocorreu devido aos incêndios florestais causados pelas locomotivas a vapor. Ainda que a circulação tenha sido retomada no verão de 1975, com automotoras movidas a gasóleo e a diesel, o fragmento ferroviário foi definitivamente eliminado no primeiro dia de 1990. Onde outrora passeara o comboio Vouguinha, hoje circulam bicicletas na ciclovia entretanto construída.

As pétalas lançadas esmoreceram e apodreceram ao sabor do tempo, assim como os carris e as tábuas de madeira que viabilizavam a circulação do comboio Vouguinha, símbolo do investimento da Coroa no norte e centro de Portugal, como relatou a gazeta especializada no século XX. O fim da circulação de passageiros entre Oliveira de Azeméis e Sernada do Vouga, em 2013, alegadamente por falta de procura, foi o mote para a degradação do percurso, hoje com tábuas quebradas, ou inexistentes, e carris decompostos. Tal corredor de pedra e ferrugem desafia a coragem dos revisores, não pela agressividade do velocímetro, pois esse não ultrapassa os 10km/h, mas sim pela sinuosidade do trajeto. Nos últimos anos, por várias ocasiões, na obrigação de chegar a Sernada para manutenção, as composições férreas descarrilaram nas apertadas curvas entre Macinhata de Seixa e Ul.

Habituado a desbravar a história da Linha do Vale do Vouga no arquivo e ao pedal na sua bicicleta, Anybal Bastos encontrou na ferrovia o meio de transporte ideal quando, na infância, a família migrou de Arouca para Oliveira de Azeméis. Sentado no banco da estação, na atualidade mero apeadeiro, observa as composições que seguem para Espinho, numa tela vermelha sobreposta pelos grafitis, que escondem os tons originais das locomotivas. Com uma mão no bolso, a outra a pentear a barba escura, e jamais conformado com o que vê e sente, Anybal começa por contar o dia em que fundou o Movimento Cívico pela Linha do Vouga, em 2011, servindo de mote uma questão lançada na Assembleia da República: “O Governo vai matar a Linha do Vouga e nós perguntamos, porquê?”.

Créditos: Movimento Cívico Pela Linha do Vouga.

Fotojornalista no passado, o arouquense comprou bilhete para a última expedição até Sernada do Vouga e eternizou os momentos na forma de retratos. “A viagem era feita a 25km/h e tivemos de esperar uma hora e meia pelo comboio até Aveiro”, revela Anybal, que considera a política adotada estratégia para o inevitável encerramento do troço. Ainda que a voz aplique um discurso resiliente e confiante, em prol da requalificação da Linha do Vale do Vouga, os seus olhos, cor alcatrão, não escondem a frustração de um projeto degradado e a fadiga das tardes preenchidas por reuniões, conjugadas com o labor de barman.

O país acordou para a linha secular quando, em 2011, o Governo qualificou o projeto como uma “gordura do Estado”. Foi com este “disparate” fresco na memória que António Reis assumiu, três anos depois, a presidência da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro. Do outro lado da chamada, como exige a realidade pandémica, partilha a sua análise cronológica, que culmina com a deterioração profunda da infraestrutura: “ao longo dos anos o Estado não mostrou abertura para investir, ainda que fosse identificada como prioridade”. Conhecedor das demais histórias da ferrovia nacional, António Reis contraria prontamente a tese de que a Linha do Vouga se encontra danificada e suprimida devido à falta de procura.

Créditos: Movimento Cívico Pela Linha do Vouga.

No outro lado da telefonia, escutei o ranger da cadeira, certamente o meu interlocutor acomoda-se para defender a posição dos amigos dos caminhos-de-ferro. Na verdade, arranca, “durante vários anos a opção foi deixar degradar o serviço e as infraestruturas para justificar o encerramento”, conta, pausadamente, para que cada palavra absorva o tom da ferrugem dos carris e quebre o argumento da tutela. António Reis entende que a comunidade, forçada a procurar alternativas de transporte, recorreu à rodovia, negócio com “mais peso na política portuguesa” pela rentabilidade financeira apresentada. Ainda que impetuoso nas críticas que tece aos sucessivos governos, o presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro admite que fora surpreendido pela atenção dedicada à Linha do Vale do Vouga pelo Ministério das Infraestruturas e da Habitação no âmbito do Plano Portugal 20 30.

Uma década milionária para requalificar na íntegra

O ano é de eleições autárquicas, pelo que o Vouguinha é de novo tema nas assembleias e nas propostas eleitorais dos diversos municípios. “Não chega, de tempos em tempos, na véspera de eleições, os partidos com responsabilidades defenderem o estado da linha; o necessário é passar ao concreto”, considera o eurodeputado João Ferreira. Porém, esta perspetiva é desconstruída pelo Secretário de Estado das Infraestruturas, Jorge Delgado, que salienta o pragmatismo inerente à obra a executar, identificada como primeira opção do plano de investimentos. Tranquilamente debruçado sobre a sua secretária, e cauteloso com as palavras empregues, revela que à requalificação total da Linha do Vouga estão destinados 100 milhões de euros.

Sem demonstrar qualquer intenção em glorificar o valor financeiro, Jorge Delgado, com um tom de voz regular, explica que o projeto não é arriscado, mas sim necessário, tendo em vista a manutenção da bitola métrica, estatuto exclusivo deste caminho férreo. Face aos atuais constrangimentos de circulação, sobretudo no troço central, o Secretário de Estado não considera serem entraves para a concretização do plano delineado. Sendo assim, para uma linha secular que irá ligar de novo Espinho a Aveiro, o que significam 100 milhões? Jorge Delgado desvia por breves segundos os olhos, talvez para consultar as suas notas, e desvenda: os fundos vão ser empregues em obras de recuperação entre Espinho e Sernada do Vouga, assim como no percurso que liga Águeda a Aveiro; vai possibilitar a automatização das passagens de nível, hoje sem utilidade; servirá para a restaurar as estações de interface e de composições ferroviárias com “tempos de vida muito esticados”.

Créditos: Movimento Cívico Pela Linha do Vouga.

A cautela de Jorge Delgado contrasta com o apelo ao pragmatismo de Anybal Bastos. Enquanto vislumbra a chegada da última locomotiva de Sernada do Vouga, o jovem arouquense aponta as suas críticas e questões a norte, dececionado com o aproveitamento do posicionamento geográfico da linha. “Vivemos numa área industrial enorme, mas não temos uma paragem que permita aos trabalhadores se deslocarem entre concelhos”, lamenta e, franzindo a testa, constata: “toda a conjuntura tira o poder de utilização”.

As portas da sede dos Comboios de Portugal (CP), em Gatões, abriram-se numa manhã de dilúvio e após uma prova de triatlo improvisada, devido aos acessos disponíveis. A agitação nas oficinas e nos amplos corredores dos vários edifícios contrastam com o silêncio em redor, interrompido apenas pelos operários que almoçam no bar do clube regional, do outro lado da estrada, ou pelo autocarro, de hora em hora. Confortavelmente instalado numa das cadeiras da sala de reuniões, o presidente da CP, Nuno Freitas, opta por falar do que ficara “para ontem” e, recorrendo ao seu telemóvel, apresenta a fase zero da requalificação na Linha do Vouga. Com a voz num oásis de certezas sobre o projeto, garante que tal quantia de milhões é suficiente para construir, em bitola métrica, “uma infraestrutura de classe mundial, superior às construções em via larga”.

Para a etapa inicial, o presidente da CP elenca inúmeras prioridades, começando pela intenção de construir apeadeiros ao longo dos municípios de Albergaria-a-Velha, Paços de Brandão, Oliveira de Azeméis e São João da Madeira, uma vez que se tratam de “áreas densamente edificadas e com zonas industriais importantes”, as quais seriam ligadas pela alternativa férrea com maior rapidez face à rodovia, com uma velocidade média de 50km/h. Faz uma pausa, concede-me tempo para assimilar a ideia, enquanto observa o meu cabelo encharcado, e retoma a oratória: “a mobilidade do Vouga é essencialmente para Espinho, para a praia e para a feira”, pelo que os carris não terminam em Silvalde. Contudo, depois de enterrada, aquando a construção da estação que conecta Espinho ao Porto, a Linha do Vouga interrompe marcha num amontoado de paralelos, junto ao já demolido Estádio Comendador Manuel Violas, antiga casa do Sporting de Espinho. Deste modo, Nuno Freitas pretende promover a alteração do traçado a norte, com interfaces em Silvalde e em Espinho, a fim de anexar o projeto férreo ao âmbito da mobilidade Andante, que inauguraria uma nova metodologia de transporte, sobretudo na organização de horários e de bilhetes vendidos. Sem esquecer a importância de “dar vida aos edifícios dos passageiros” e de proceder a alterações nos percursos sinuosos entre Ul e Pinheiro da Bemposta, apronta-se a resolver a “lamentável” realidade bilhética, uma vez que as viagens são cobradas, lugar a lugar, pelo revisor.

O peso orçamental desta fase zero gera um sorriso rasgado no rosto de Nuno Freitas, que entende o desafio inerente à questão. Fiel à sua postura serena elucida que se tratam de “investimentos residuais” com um teto máximo de 10 milhões de euros. Através do Plano 20 30, dos 13 milhões de euros a investir entre 2021 e 2022 (Resolução do Conselho de Ministros nº110/2019) e dos 30 milhões assinados em contrato público pela CP, Nuno Freitas pretende concretizar o plano delineado, desenvolver a implementação de motores diesel e adquirir material circulante.

A bitola que demarca ambições e expectativas

A história da Linha do Vouga é contada pelas divergências que pautam o seu para e arranca, os planos esquecidos no tempo, as promessas de outrora. Hoje, no outro lado da barricada política, André Neves, deputado parlamentar do PSD, lembra a importância de “não enterrar dinheiro” em vão. Sem rodeios, o deputado questiona a delineação do investimento para a Linha do Vouga, uma vez que, numa primeira fase, estavam previstos 75 milhões de euros para o troço entre Oliveira de Azeméis e Espinho, que seria reestruturado em bitola ibérica. Porém, uma atualização no projeto fez a verba evoluir para a centena de milhões, a pensar na requalificação de todo o traçado em bitola métrica.

André Neves garante que a Linha do Vouga tem o destino vaticinado, uma vez que, nestes moldes, a obra final não irá significar um ganho de tempo relativamente à rodovia. Veloz nas consecutivas críticas que tece, o social-democrata considera que a bitola ibérica seria a única alternativa para concretizar a conexão do projeto ferroviário ao Porto. Relutante, de testa franzida, André Neves distancia-se da câmara do seu telemóvel e reitera: “não é possível a mudança da bitola para um país com a nossa capacidade orçamental, estamos a desperdiçar dinheiro em algo que não irá surtir efeito”. Assim, numa bitola semelhante à de 2011, quando o Governo apelidou a Linha do Vouga de “gordura do Estado”, André Neves conclui que esta ferrovia continua a não constituir uma alternativa, sem procura e vazia de segurança. Com o ímpeto de oposição afinado, o deputado, antes de terminar a videochamada, frisou as suas dúvidas sobre a viabilidade do Plano 20 30 neste âmbito, uma vez que a requalificação em causa não conta com comparticipação da União Europeia.

Os desejos e ideias para requalificar a infraestrutura correm o risco de cair na utopia da exequibilidade, pelos fundos disponíveis e pelas caraterísticas do percurso. O presidente da Associação de Terras de Santa Maria (ATSM), Jorge Sequeira, pronunciou-se nos últimos anos enquanto embaixador da aplicação da bitola ibérica, a pensar na velocidade e na ligação à Invicta. Contudo, as esperanças de um novo traçado esmoreceram quando o Governo anunciou a sua estratégia. Apesar dos 24 milhões de euros recebidos entre 2018 e 2021 para manutenção do troço norte, o presidente da ATSM mostra-se resignado e admite que o seu plano seria impossível, pois, face ao posicionamento geográfico e às caraterísticas das curvas, “as carruagens não poderiam atingir as velocidades almejadas”. No seu gabinete, com vista panorâmica para São João da Madeira, município ao qual preside, Jorge Sequeira, consciente das diferentes opiniões dentro da associação, garante que esta é uma questão “meramente técnica”, pelo que não será entrave à obra. Por sentir que as vontades alinhadas vão culminar na inédita requalificação, o dirigente da entidade intermunicipal partilhou um sorriso: “o que mais importa é estarmos numa situação em que há um compromisso em investir”.

Exibindo algumas fotografias que remontam à rotina pré-pandémica nos apeadeiros de Espinho e São João da Madeira, Nuno Freitas, sanjoanense de gema, lembra a sobrelotação das carruagens, sobretudo no verão e em dias de feira, contrariando a tese de que a procura é escassa em todos os municípios. Quando questionado sobre as diferentes perspetivas quanto à bitola a aplicar, o presidente dos Comboios de Portugal tomou uns segundos para organizar as ideias, cruzou as mãos e explicou que a transformação para o traçado ibérico exigiria inúmeras expropriações no percurso, e ameaçaria um final idêntico ao registado na linha do Tâmega e da Lousã. “A partir do momento em que se levantam os carris para construir a via larga, as pessoas começam a fazer contas e percebem que aquele projeto será uma má solução e com elevados custos, e a ferrovia acaba substituída pelo metro-bus ou ciclovia. Não é deitar tudo fora e fazer de novo, temos de perceber onde podemos cortar curvas, variante que permite ganhar tempo”, alertou Nuno Freitas, habituado aos infelizes desfechos na história dos caminhos-de-ferro em Portugal.

Focado no otimismo do presente para potenciar o futuro, Jorge Delgado declara-se convencido de que “as visões se vão unificar quando a linha for unificada”, frisando que diferentes gestões são consequência da inatividade do troço central, que afastou a realidade do percurso a norte e a sul de Oliveira de Azeméis. Reconhecendo o esforço da Associação de Terras de Santa Maria em prol da requalificação do caminho férreo, o Secretário de Estado das Infraestruturas sustenta-se em diversos estudos para argumentar sobre o acréscimo de importância à Linha do Vouga que representa a reabertura do troço entre Oliveira de Azeméis e Sernada do Vouga, em detrimento da requalificação somente a norte, uma alternativa difícil de concretizar, ainda que constasse dos rascunhos do Plano 20 30.

O Vouguinha transportou em 2019, segundo Jorge Delgado, meio milhão de passageiros, um indicador que, entende o Secretário de Estado, vinca a necessidade de adaptar a oferta à procura do comboio. Evidenciando a vertente social, e remetendo a sustentabilidade financeira para segundo plano, lembra que um transporte público movido a hidrogénio ou eletricidade (projeto em desenvolvimento pela Faculdade de Engenharia do Porto e com financiamento de um consórcio da União Europeia) será uma mais-valia para o ambiente, para inovar na mobilidade ferroviária e para potenciar a economia.

“Somos um povo latino, falamos muito e fazemos pouco”

Créditos: Movimento Cívico Pela Linha do Vouga.

Na estação oliveirense, ao fim do dia, apenas se escuta a natureza. Quem por ali passa, entre apertados atalhos em terra humedecida, pode embeber no seu pensamento as questões e argumentos de Anybal Bastos, que aponta, por fim, ao comboio histórico. De novo em circulação, desde abril, apenas percorre o troço entre Aveiro e Águeda, com paragem obrigatória em Macinhata do Vouga, onde está o Museu Nacional Ferroviário. Perplexo com as estratégias díspares a sul e a norte, Anybal realça o dinamismo registado no município aguedense, planeado, em especial, a pensar na mobilidade estudantil e turística.

A proatividade coexiste com o grau de exequibilidade de planos e ideias, assentes em condições mínimas. De regresso ao seu gabinete, no começo de um novo dia, Artur Almeida, técnico do Turismo Centro Portugal, revela que no passado foi assumido o risco de forçar a locomotiva histórica a percorrer o trajeto entre Aveiro, Sernada do Vouga e Albergaria a Velha. Numa aventura operada pela mente britânica de um especialista em comboios a vapor, os momentos da agreste viagem assaltam o raciocínio de Artur Almeida, que lembra as dificuldades de concretização, decorrentes da falta de vocação da CP para tal realidade, argumenta. Perde-se entre suspiros quando recorda as palavras do ferroviário inglês: “dizia que tinha feito o projeto em países mais longínquos e bastante complicados, como o Vietnam ou China, mas em Portugal nunca mais, porque não era minimamente viável”. Ainda assim, na procura de um eufemismo para o amargo, Artur Almeida adoça a memória com os entusiastas alemães e ingleses que viajaram no secular Vouguinha, o original, naquele dia.

O técnico do Turismo Centro Portugal partilha um sorriso ao ultrapassar as brumas do passado e ao analisar o presente, pois saúda a vontade de investimento por parte da CP e do Governo na Linha do Vouga, concordando com a ideia de construir vários interfaces até Espinho. Porém, pausa, e sublinha que o prioritário é resolver os constrangimentos de circulação que existem, a fim de promover viagens convenientes. Numa área geográfica que absorve “uma oferta muito diversificada”, Artur Almeida realça a exclusividade da experiência, com telas paisagísticas em densos matos, pontes e outros locais recônditos, possíveis ao registo ocular apenas numa viagem ferroviária, como havia escrito a gazeta especializada no princípio do século XX. Por esse motivo, enaltece e alinha-se com a pressão exercida pelo município de Águeda em prol da revisão dos horários, traduzida numa procura reforçada entre o Ramal de Aveiro e Sernada do Vouga. Embalado no raciocínio e nas ambições, Artur Almeida projeta um futuro em que a Linha do Vouga liga Espinho a Aveiro e, quiçá, ao Porto, aproveitando o potencial do projeto de alta velocidade TGV e dinamizando a ideia histórica do comboio movido a vapor. Do outro lado do ecrã, o técnico turístico abana a cabeça em sentido afirmativo, como se convencendo de que os fantasmas de outras décadas vão ser sugados pela sinergia governativa e associativa.

Entusiasta de longas viagens ferroviárias, que o transportam para memórias à beira mar e muitas aventuras, Nuno Freitas resfria a emoção e reitera que em primeiro plano se encontra o serviço prestado às populações que residem na região do Vale do Vouga. Por isso, o presidente da CP frisa que a bitola métrica permite ganhar tempo de viagem e, aliado à concretização da fase zero, resultará na viabilização do ícone turístico, sem prejudicar o meio ambiente, e no desenvolvimento da economia regional, “uma das responsabilidades dos Comboios de Portugal”, recorda. Inflexível na sua posição quanto ao trajeto a percorrer, Nuno Freitas insiste que esta realidade “não perde nada para a ligação em linha larga para o Porto”. E aliviou o semblante carregado com um sorriso, abriu os braços e lembrou: “somos um povo latino, falamos muito e fazemos pouco, portanto há que pôr mãos à obra”.

A coesão territorial foi um tópico abordado pelos vários entrevistados, evidenciando o posicionamento estratégico da Linha do Vale do Vouga na rede ferroviária nacional, logo na mobilidade entre concelhos e distritos. Ainda assim, e depois de vários emails trocados com o gabinete de assessoria, a Ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, recusou pronunciar-se sobre o projeto: “dadas as temáticas em apreço serem da área governativa das Infraestruturas e Habitação, achamos que este pedido deve ser remetido para os nossos colegas”. Face à insistência, foi explicado, via telefónica, que Ana Abrunhosa não pretendia interferir e opinar sobre o trabalho do Ministro das Infraestruturas e Habitação. Contudo, dias depois, a Ministra da Coesão Territorial surgiu com o ministro Pedro Nuno Santos na viagem que assinalou a reabertura da Linha da Beira Baixa.

Identidades temporais – o século XX terminou anteontem

“A viação acelerada é um poderosíssimo instrumento do progresso, por isso espera-se que o caminho-de-ferro venha produzir notável influência no engrandecimento económico d’esta região. Convém recordar aqui que a mala-posta, comodo e aceado meio de transporte, com ótimos trios de cavalos e orças, foi estabelecido nesta vila em 1858”. Apenas a data distingue este excerto de 1909, redigido nos Anaes de Oliveira de Azeméis, dos argumentos e esperanças de quem trabalha pela requalificação da Linha do Vale do Vouga. O projeto original, aprovado em 1889, previa um período de construções de seis anos, mas a obra apenas foi concluída 25 anos volvidos. Por sua vez, numa era brutalmente diferenciada nos meios disponíveis, o plano de requalificação insere-se num prazo até 2030.

Dez anos após a expressão “gordura do Estado” se anexar a esta linha, e a ameaça de encerramento estar iminente, não há quem arrisque previsões quanto a prazos. O presidente da Associação de Terras de Santa Maria, Jorge Sequeira, recusa selar um compromisso com datas, uma vez que a obra apenas se iniciará quando existir a definição concreta de como investir, e o consequente concurso público for lançado e concluído. Para que o projeto não pareça uma expectativa desamparada, o dirigente político ressalva que depois de 2022 a primeira pedra deverá ser movida, explicando que os investimentos na ferrovia, por quilómetro, equivale a “alguns milhares de euros”, pelo que exige um planeamento minucioso.

Num discurso leal à voz coletiva do Governo, o Secretário de Estado das Infraestruturas adjetiva as intenções do ministério como ambiciosas, uma vez que aponta à metade da década para a conclusão das intervenções anotadas. Ciente dos entraves inerentes aos desenvolvimentos do projeto, “com os clássicos concursos contestados, com as dificuldades de decisão”, Jorge Delgado reitera que o elevado interesse empresarial em assegurar o investimento, aliado ao compromisso governativo, vai conduzir a requalificação ao destino pretendido.

As convicções de António Reis não se alimentam de meras promessas, e, por isso, o adepto da ferrovia exige a transição das palavras da boca dos decisores para a concretização do plano de investimento. O presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro vislumbra os primeiros sinais da tão ambicionada obra ao verificar que a CP apostou na recuperação de algum material circulante. Numa região que abrange “territórios onde é produzida parte fundamental da riqueza nacional”, António Reis, encolhendo os ombros, opta pelo pragmatismo, não se perde nos debates sobre bitolas, e sublinha que o mais importante é o caminho férreo permanecer ao serviço das suas populações. Fez-se silêncio no outro lado da telefonia, até que António Reis lembrou um pilar da causa que representa: “perder a ferrovia não é uma opção”.

A noite caiu em Oliveira de Azeméis, e os primeiros mosquitos marcam encontro na iluminação da estação de nome, apeadeiro de função. Quiçá, talvez falem daquele lugar. Com Anybal Bastos, que soma mais um dia fatigante, caminhamos para a fachada principal, e observamos os clientes do snack-bar em frente, sempre de mãos ocupadas. Havia reunido com o PSD local antes daquela conversa, comenta, frisando que esta foi a primeira oportunidade para tal, pois o partido nunca havia aberto espaço para diálogo. Os passos do quotidiano têm um peso bem definido para o aficionado da ferrovia, que entende por conquista a aplicação do plano nos carris. “Não acredito que a Linha do Vouga fique esquecida”, afirmou convicto, voltado para o cais e com um sorriso que renova umas quantas doses de fé.

Três décadas de vida completadas para Anybal Bastos. Nasceu em Arouca, quando o troço até S. Pedro do Sul se encontrava em vias de encerramento. Chegado a Oliveira de Azeméis, admite, com o olhar reluzente, que o comboio Vouguinha fora atração imediata. A emoção de menino não é escondida, ainda que tente, pelos gestos de adulto que penteia barba, consulta o relógio e verifica a carteira e agenda. A paixão de Anybal, idêntica à daqueles que ousaram sonhar com uma aventura férrea entre Espinho e Aveiro, tem um anseio final: projetar a Linha do Vale do Vouga no âmbito nacional.

O presidente dos Comboios de Portugal, Nuno Freitas, por várias vezes frisou que a responsabilidade pela requalificação da Linha do Vouga, assim como a tutela da ferrovia, pertence à Infraestruturas de Portugal (IP). Contudo, esta entidade não se mostrou disponível para prestar esclarecimentos. A entrevista agendada para 11 de maio com o vice-presidente da IP, Carlos Fernandes, foi cancelada, devido a uma conferência de imprensa conjunta com o primeiro-ministro. Um mês e meio depois, a resposta às chamadas, mensagens e emails continua por chegar.

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Samuel Santos

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