Por que viaja um português?

 Por que viaja um português?

Não sei se alguma vez alguém pensou nisto, como se definiria um português antes dos Descobrimentos? A identidade nacional está construída à volta de um passado glorioso, cheio de novos caminhos por mares nunca antes navegados. Corre nas nossas veias o sangue de conquistadores, de descobridores, de pessoas destemidas. Contudo, sem esta herança histórica, como se aguentaria o peso de ser de um país periférico, afastado do resto da Europa?

Se calhar, as glórias da Reconquista eram o elemento central da identidade. Na vanguarda da vitória do Cristianismo contra o Islão, na senda de um jorro de conquistas iniciadas por D. Afonso Henriques já éramos, pré-Descobrimentos, um país de heróis. Com o primeiro rei de Portugal, aparecem também as sementes de outra ideia: “Ao menos não somos espanhóis” (embora Espanha, como país, tenha sido unificada no final do século XV). Pequenos, mas orgulhosos, desafiantes de vizinhos mais poderosos, na tradição de Viriato.

Bons católicos, independentes, de plenos direitos. Em cada português há uma “padeira de Aljubarrota” em potência. Foi este Portugal que levantou a cabeça e perguntou: “Então, e agora?”. Quando se ergue a cabeça no nosso país, há óptimas probabilidades de ver o mar. E foi o Atlântico que trouxe a solução para esta questão nacional. Até hoje, em caso de dúvida, um português viaja (e, quem sabe, até emigra) nem que seja para voltar a casa e queixar-se de tudo o que viu e viveu. É isso o que nos define – os Descobrimentos acabaram por ser só um efeito secundário.

Quanto a mim, viajar provoca-me um stress tremendo. Documentos, aeroportos, voos atrasados, malas escada acima e escada abaixo. Hoje: máscaras, testes de covid-19 e óculos embaciados. Num comboio ou num avião, as pessoas a escrever nos seus computadores portáteis soam como dezenas de aranhas ou de baratas a mover-se rapidamente. Centenas de patas a mexer-se ao mesmo tempo. E eu ao lado.

“Por que não fico em casa?”, cogito com os meus botões, sempre que vejo que a roda da mala se partiu ou que adolescentes entram num comboio com garrafas de álcool. Essa foi uma pergunta que me fez pensar nos nossos antepassados. De certeza, alguns deles também se viram numa nau de construção duvidosa, durante meses sem ver terra, pensando: “Mas que raio é que eu vim, aqui, fazer?” Mas continuaram a ir! E eu também.

Penso que a verdadeira questão nacional, em qualquer momento e lugar, sempre foi: “O que estou, aqui, a fazer?” A resposta – tanto minha como dos nossos antecessores –  é: “Vou ali ver e já volto.” Porquê? Porque, sendo a viagem boa ou má, o prazer do regresso é sempre garantido.

Há um momento único em que, ao voltar a casa, o nevoeiro mental do dia-a-dia se dissipa e a vida ganha uma cor diferente. Pensamos no que está a correr bem ou mal, no que se devia fazer diferente e é esse o momento em que a viagem vale a pena. Chegamos a casa, tiramos os sapatos e, por uns segundos, saímos das nossas próprias cabeças com uma claridade que melhora não só o que vimos, mas também a percepção do território a que voltamos.

No fundo, muito antes do António Variações, os portugueses já tinham o problema de só estar bem onde não estavam. Por isso, mesmo tendo um rectângulo do mundo só para eles e uma identidade definida, foram ver o que havia por aí. Nem que tenha sido pelo doce prazer de voltar.

10/01/2022

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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