Postal de Relíquias – Odemira, a Feira da Alegria (S. Luís)

 Postal de Relíquias – Odemira, a Feira da Alegria (S. Luís)

Mundo Português

Algumas notas na continuação do primeiro Postal de Relíquias – Odemira. Notas soltas, que o verão faz orelhas moucas.

Creio que continuámos a adotar a filosofia de Albert Camus em L’étranger: «(…) il me restait peu de temps. Je ne voulais pas le perdre avec Dieu…»

Ou, pelas palavras de Walt Whitman em Song of Myself (Whitman: Poetry and Prose. New York, N.Y.: Library of America, 1982. – 244): «And nothing, not God, is greater to one than one´s self is, / (…) Why should I wish to see God better than this day?»

A Adega do Barreirinho, o pequeno restaurante local numa improvável saída em terra batida nos arredores de Relíquias, oferece do melhor e também: copo para água e copo para vinho; uma gigante garrafa de vidro de água mineral borbulhante; uma luxuriante esplanada de colmo. Modos afáveis, alegres e sabedores. Devem vir de fora. Sim, vêm de França e da Alemanha. Mas de fato não é preciso: O Peixeiro (Amoreiras-Gare) oferece-nos os melhores frutos do mar em toda esta vasta região, preparados com muita arte. E muita alegria e amizade: inesquecível.

Almograve, a primeira. Areia branca e fina. Negros declives xistosos com os sedimentos às costas, em camadas subtis. Pode datar-se a história. Dunas altas e vestidas a acácia-de-espigas, chorão-das-praias e outras vegetações. Saltitámos pelas rochas em fina laminação perfurante, como as velhas lâminas de barbear atadas em bloco, e pinçámos um caranguejo de lado com jeitinho. Fingiu-se de morto durante longos minutos depois de bater as asas por uns momentos. Também nós, de espanto. De volta para a água, que é de onde és.

Miróbriga, Santiago de Cacém. As ruínas transportam a Idade do Ferro até nós, pelas mãos dos romanos, durante quatro séculos. Um indescritível forum a olhar toda a planície, em camadas sucessivas de sonho, com dois templos, um dedicado a Vénus. Não é como Conímbriga, mas está bem. Que quereriam os romanos fazer com isto? Sal, peixe, azeite?

(O sítio fecha às burocráticas 17:30 horas e não pudemos visitar o museu, o que nos fez inscrever uma sugestão no livro de reclamações. Não, não foi para embaraçar os funcionários, também eles vítimas das inenarráveis políticas das direções regionais de cultura – conheço bem a do centro, mas não é difícil imaginar a do sul. Querem encerrar Miróbriga numa leprosaria, na golden age do turismo cultural?)

Malhão, a segunda e sempre. Praia em forma de poema. A sensação de que o mundo começa e regressa aqui, depois de uma rotação de 360o, sem se mexer um pixel. O mar de Malhão é mineral, pode beber-se, de preferência com um bom branco gelado. E não há café a vomitar metálica indigente.

Isso, a sabedoria do acesso difícil. Já o tinha visto na Comporta, onde até os mosquitos pareciam dissuadir a visita, mas pelas razões opostas: aí para proteção do “dono disto tudo”, nos seus tempos áureos, aqui para proteção do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, derradeira maravilha europeia (quase) intacta. O acesso faz-se por uma estrada picada e polvilhada com o pó da gravilha, rodeada por vegetação vestida de branco, fantasmagórica e lunar, algo que só tinha visto nas imediações da inenarrável fábrica de cimento na Serra da Arrábida, Mais c’est pour une bonne cause. Parámos e fotografámos, ao mesmo tempo que passavam pickups carregadas de miúdos ao vento, rindo-se do nosso espanto.


Porto Covo, com as suas magníficas praias e um restaurante simpático, à noite, que no entanto destoava por não ter ninguém. Sentámo-nos e foi-se enchendo. Não tem as adoradas anchovas algarvias, mas todo e qualquer peixe é tratado magnificamente como se fosse garoupa. De novo os pares de copos e a gigante água mineral borbulhante. Para nós é a Pérola de Porto Covo.


Foto original: masserra. Imagem trabalhada utilizando o editor de imagem de fonte aberta GIMP.

E a Feira da Alegria de São Luís, a cerca de 11 km de Relíquias em linha reta, editada ao terceiro domingo de cada mês. Velharias, produção local, artesanato, ervas aromáticas, fast food vegetariana de alta qualidade, catos, livros… Esteve fechada durante meses e reabriu há pouco. O entusiasmo era contagiante. As histórias pessoais passavam de mão em mão, tal como os bolos de gengibre ou as garrafinhas de vinho biológico do Algarve. (Este merece um nome, pela sua mineralidade e corpo suave: Meia Praia do Monte da Casteleja por Guillaume Leroux.) Muitos produtores e artesãos vieram do Algarve, para compensar as quebras do confinamento.

João e Ying Yue (nomes fictícios) são um casal de arquitetos, ela vinda da China para encontrar a paz. Vivem dos seus projetos mas também de sonhos. Um deles é ajudar a AMAP Sado/Alvalade (Uma AMAP, para quem não saiba, como eu antes de saber para não esquecer, é uma Associação pela Manutenção da Agricultura de Proximidade.)

A outra é ajudar a divulgação de uma nova editora de livros alternativos, de tendência anarquista, a “Textos Subterrâneos“, cuja banca merecia a atenção de Fátima (nome fictício), film maker independente a fazer o doutoramento em produção cinematográfica. Pena que não tivessem trazido uma seleção mais variada de livros, com outras proveniências, porque se venderiam bem, à mistura com falafels, tomilho, própolis e belos canivetes de cabo de madeira.

(Alguns trechos da nota introdutória da “Textos Subterrâneos”: «Espeologia da marginalidade. Desenterrar as palavras que ferem, que inquietam, que apaixonam, que atormentam, que comovem (…). O subterrâneo é o (…) espaço do oculto, do misterioso, do inominável. É dele que ansiamos extrair a antítese do existente para provocar a desordem e a inquietação nos espíritos que apaticamente por aí deambulam (…).» Sim, creio que têm razão, necessitamos de desorganizar os muitos espíritos apáticos e acomodados, embora irritantemente lamurientos. Foi pois bom visitar Fredy Perlman, Pedro García Olivo e Jesús Sepúlveda, autores que desconhecia.)

Jovens de tranças longas tocavam as suas flautas e rufavam os seus tambores. A Alegria era de fato contagiante.

Na banca ao lado os ativistas e produtores do “Espaço Nativa” vendiam produtos da horta, sem traços de pesticidas ou fertilizantes. Eram jovens e embrulhavam os tomates e beringelas em papel. Divertiam-se claramente com o que faziam. Vale a pena reproduzir a apresentação que fazem de si próprios num pequeno panfleto: «Nativa é um espaço integrador que estimula a cooperação baseando-se em práticas de economia circular, ecológicas e sociais. Temos como objetivo oferecer à comunidade local da região de S. Luís opções de consumo e serviços mais locais e/ou orgânicos e desenvolver dinâmicas cooperativas e culturais. Espaço Nativa integra diversos projetos: mercearia a granel, café snack-bar e cozinha comunitária. Para obter a newsletter: coopnativa@riseup.net».

As saladas que preparámos com os produtos do “Nativa” foram provavelmente as melhores que já comemos: fogo de artifício na boca e o intraduzível sabor do puro orgânico. Quererá o “Nativa” abastecer o país?

Joana (nome fictício) vendia por um euro ou dois praticamente tudo o que a mãe, falecida há dois anos, tinha tricotado ou bordado.
Francisco (nome fictício), sucateiro de Grândola, com sensibilidade para entender que poderia valorizar velhos objetos desaparecidos com a sua intuição artística, prática e efetiva. Saem-lhe das mãos velhas peças de cerâmica restaurada e belos recipientes de ferro ou latão, pintados com cores vivas e que outrora contiveram azeite ou óleo de linhaça para tratamento de madeiras. Escava ainda belas peças de cortiça, que assim se transmutam em fruteiras ou floreiras.

Mais além uma estatueta de arte africana, bela nos seus traços precisos e simples, embora mais redondos e subtis do que habitualmente. Pô-la-ei na minha secretária para que a força mental do sábio africano me ajude a navegar à bolina, nos insondáveis tempos de hoje. (O sapiens sapiens nasceu em África mas prosperou muito longe, na Eurásia, Américas e Austrália, guiado pelas oportunidades dos novos mundos. É altura de cuidar das origens.)

Exemplares da oficina e jardim de catos de Paulo e Maria (ver texto). Sugestão de design: masserra. Edição das imagens: GIMP.

Depois dei de frente com a indescritível mostra de catos organizada por Paulo e Maria (nomes fictícios). Largas dezenas de catos dormiam confortavelmente na turfa, delicadamente pousados em vasos de vários tamanhos, formas e cores. Os catos eram plantados e cultivados com carinho pelo casal (ela na foto). Vale a pena visitar a maravilhosa oficina e jardim de catos de Paulo e Maria (Cruzamento de Almograve). Aproveito no entanto para lhes deixar uma sugestão: é urgente distinguir as espécies locais das espécies globais e puramente decorativas; creio que Paulo e Maria fariam um fantástico serviço à comunidade se distinguissem os catos locais, promovendo-os e protegendo-os.


Walt canta recorrentemente os produtores, artesãos e trabalhadores de todos os ofícios. Diz assim, em Song of Myself (ibid., 200): «(…) I am enamour’d of growing out-doors, / Of man that live among cattle or taste of the ocean or woods, / Of the builders and steerers of ships and the wielders of axes and mauls, and the drivers of horses, /I can eat and sleep with them week in and week out. // What is commonest, cheapest, nearest, easiest is Me (…)».

E canta assim em Beginners (ibid., – 171) os intrépidos iniciadores, aqueles que se atrevem a desafiar a sociedade para a arrancar à escuridão: «How they are provided for upon the earth, (appearing at intervals,) / How dear and dreadful they are to the earth, / How they inure to themselves as much as to any – what a paradox appears their age, / How people respond to them, yet know them not, / How there is something relentless in their fate all times, / How all times mischoose the objects of their adulation and reward, / And how the same inexorable price must still be paid for the same great purchase.»

Estou certo que Walt, um homem estruturalmente alegre e positivo, amigo de todas os inovadores e inovações, cantaria a Feira da Alegria com entusiasmo.

A Alegria da Feira nas suas entrelinhas:

Este país não tem solução sem que estes jovens heróis estejam nos planos da nação.

Planeio voltar regularmente e convido-vos a fazer o mesmo.

Verei também a cadelinha Kate, que ainda não nos visitou depois da última vez.

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Luís Martinho Rosário

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