Postal de Relíquias – Odemira, Alentejo (quase) profundo

 Postal de Relíquias – Odemira, Alentejo (quase) profundo

Serra do Cercal.

Só não é Alentejo profundo porque está próximo da planície litoral, mais povoada. Relíquias, a maior freguesia de Odemira, não chega a ter 8 habitantes por km2. É difícil imaginar o que fazem as poucas almas que se juntam nos cafés ao fim da tarde, mas teremos tempo para descobrir.

Não é o Alentejo que guardava na memória, o das grandes planícies e montados, com sobreiros e azinheiras a guardarem o espaço ralo e o tempo perdido.

Aqui, na serra, estamos imersos numa explosão de árvores e humidades, humidades improváveis, pois a fonte milenar secou este ano pela primeira vez, disseram, e o riacho morreu numa pocinha esverdeada, que apenas alimenta os fetos. São fetos gordos, rijos e luzidios, cuja origem poderá remontar a umas dezenas de milhões de anos atrás. (As rochas vulcânicas de Odemira-Cercal parecem ter datação do Paleozóico – Devónico Superior, ou seja, 360-380 milhões de anos.) Há carvalhos-cerquinhos, muitos, e sobreiros, oliveiras, azinheiras, pinheiros, choupos e medronheiros.

(Avistamos ainda, perplexos, improváveis manchas de eucaliptos, muitos deles recém plantados. Sim, também parece haver diversidade no nosso Alentejo, embora nem toda compatível com a qualidade da paisagem, com a escassez de água, com a proteção da flora nativa e com a necessidade de contenção de fogos. Não é fácil prever até onde pode ir a ignorância, a ganância e a soberba, essas intraduzíveis qualidades humanas.)

A casa onde passo uns dias com a família toca o céu pelas mãos de um jovem sábio, que trocou o bulício frenético de Londres pela paz, a definitiva paz dos seus três cães, a paz da Via Láctea à noite a escoar-se em centenas de gotinhas brilhantes para uma saborosa fatia de pão, a sua policêntrica casa perdida, movida a painéis solares e muitas hortas, a dos tomates e beringelas, mas também a dos tomilhos e alecrins, para não falar dos catos, uns barrigudos e outros trinca-espinhas, fechados ou enigmáticos. O jovem, felizmente, cultiva enigmas.

É muito bom que a luz falte de manhã sempre que não substituímos as lâmpadas por velas à noite. E que não haja internet de manhã até que o sol espigue.

Levanto-me muito cedo a fico a ouvir as aves do bosque em frente. Fazem um coro que espanta a solidão de choupos, sobreiros e oliveiras. Depois, quando já há uma pinga de luz, aproveito para reler as Folhas de Erva. Trouxe a edição em português, a do Relógio D’Água de 2010, e ainda, num assomo de dúvida, o Whitman: Poetry and Prose da fabulosa “Library of America”, na versão completa de 1891-92, a última diretamente supervisionada pelo poeta pouco antes de morrer.

Leio os poemas em voz alta sussurrada, na trémula luz da manhã, pelo que a voz de Walt penetra suavemente o bosque, buscando as reticências de árvores e arbustos. Pareceu-me uma vez que as aves se calavam por momentos, mas devia ser impressão minha.

Anteontem fomos visitados por uma cadelinha, que batizei de Kate sem saber bem porquê. Embora grávida, percorreu os 2-3 km da casa do vizinho mais próximo. Kate namorou um dos cães do jovem dono da casa e chorou, de mansinho e com olhos tristes, apesar da comida e água que lhe demos. Não tendo encontrado o companheiro, partiu duas horas depois. Acabo de ver, pelo canto do olho, que apareceu outra vez. Olá Kate. Kate linda e doce, prometo que ele há-de vir. Em passeio pelo bosque tropecei num tronco derrubado e cortado, onde, por milagre, tinha crescido um enorme e esguio choupo vertical. Abanei-o e não se mexeu. Devia ter raízes bem fundas. Parecia altivo mas só. Perto, um medronheiro abanava as suas asas de pavão. Os medronhos, ainda verde-alaranjados, pareciam dar-lhe fartura e boa disposição. Provei um, que me devolveu um sabor amargo. Melhores tempos virão.


A páginas tantas, Walt diz em Poets to Come: «Poets to come! orators, singers, musicians to come! / Not to-day is to justify me and answer what I am for, / But you, a new brood, native, athletic, continental, greater than before known, / Arouse! for you must justify me // I myself but write one or two indicative words for the future, / I but advance a moment only to wheel and hurry back in the darkness. // I am a man who, sauntering along without fully stopping, turns a casual look upon you and then averts his face, leaving it to you to prove and define it, / Expecting the main things from you.»

Não, não sou poeta e não tenho que responder ao desafio de Walt.

Não obstante, senti a compulsão de traduzir a íntima conversa entre o choupo-triste e o medronheiro-gay, utilizando a linguagem que tinha à mão. Ao fazê-lo, senti que Walt merecia a atenção, pelo seu tenaz cultivo da prosa poética, que frequentemente desliza em rampa inclinada para pura prosa, também ela cheia de música e ritmo.

Assim:

Espero que estejam a passar umas boas férias ou, não estando em férias, que estejam a fazer aquilo que verdadeiramente gostam, onde quer que estejam.

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Luís Martinho Rosário

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