Quadros nas janelas dos outros

 Quadros nas janelas dos outros

Desde que a humanidade se começou a amontoar em edifícios, sabe-se que quantos mais vizinhos temos, menos sabemos sobre eles. No corrupio do dia a dia, nem pensamos neles.

Até que um dia, o corrupio para.

Espanha declarou estado de emergência a 16 de março. Até então, era um dado adquirido que se pode sair à rua, tomar uma cerveja num bar ou encontrar-se com amigos. Passar mais de dois meses e meio sem fazer nada assim seria impensável. Mas aconteceu. Sobraram os vizinhos.

Com o arrastar do confinamento, o que antes eram janelas anónimas passaram a ser minipostais, quadros sobre o dia de outras pessoas, que ajudam a lembrar a existência de um mundo fora das paredes do apartamento — cada dia mais apertadas — e saciam uma ou outra necessidade voyerística do ser humano.

Do outro lado da rua, quase no topo do edifício vermelho, um casal toma o pequeno-almoço na varanda, sempre às oito da manhã. Comem e voltam para dentro. Mais tarde, quando o sol está a bater na varanda, saem de novo.

O rapaz, artista ou a caminho de o ser, pinta os negros cabelos encaracolados da rapariga, no que acabará por ser uma recordação dos meses encerrados em casa. Estão sempre juntos, nunca vi nenhum deles sozinho na varanda. A piada fácil é que da “quarentena sairão tantos bebés como divórcios”. O tempo o dirá.

De facto, no início do confinamento — Espanha foi dos países mais agressivos na sua implementação — no apartamento de baixo, também vivia um casal. Duas semanas depois, ficaram só a rapariga e o cão. Empate técnico, por agora. Afinal de contas os bebés demoram a chegar.

Ao lado, noutro edifício, uma varanda surge como um postal de esperança. Uma jovem — que vive com os pais — sai religiosamente cada dia a praticar desporto. Terminados os exercícios, quando o sol está no ângulo correto, aparece de novo para bronzear-se. Espanha sofreu um dos piores focos de Covid-19 (mais de 27,000 mortes), mas se há coisa que não se pode fazer é cancelar o verão. Claro que, enquanto a juventude se bronzeia, é o pai quem sai para regar as plantas.

Imagino se as pessoas do outro lado de rua também olham para a minha varanda e tentam descobrir que acontece por aqui. Ou se sabem coisas sobre o meu edifício que eu nem imagino. Se multiplicamos estas histórias pelos 1,6 milhões habitantes de Barcelona e os meses de clausura, são milhões de pequenos momentos em que os dados adquiridos da vida mudaram enquanto o diabo esfrega um olho. Então se falamos do Mundo…

A “normalidade” regressa pouco a pouco. No primeiro dia em que se permitiu sair sem ser por motivos de primeira necessidade, vi um par de pessoas a cruzar do outro lado da rua. Pareciam-me familiares, como quando nos cruzamos com alguém conhecido.

Era o casal que toma sempre o pequeno-almoço e depois fazem uma sessão de pintura. Quase lhes disse ¡hola! mas a vergonha venceu. Afinal de contas, só porque pintamos quadros nas janelas dos outros, isso não nos dá o direito de entrar no enquadramento.

05/06/2020

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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