Quando a política controla a ciência

 Quando a política controla a ciência

A propósito das vacinas contra a Covid-19

Política começou por significar tudo aquilo que dizia respeito à polis, a sua organização, direcção e administração, ou a arte, ciência de governar.

Com o passar do tempo passou a designar o conjunto de actividades relativas ao Estado, e enquanto forma de praxis humana passou a ser definida pela relação estreita e indissociável com o poder.

Ser político já foi a profissão mais nobre de todas, aquela que se ocupa do bem público, exigindo elevada capacidade ética e competência. A política é considerada, pelos cidadãos desiludidos e desafectados da actualidade, como o exercício de um poder imoral, que já não visa o bem comum, mas a defesa dos interesses do grande capital.

Créditos: National Cancer Institute (Unsplash).

Sempre que se acentua a degradação das qualidades éticas, dos valores e princípios dos políticos em exercício, a tentação de controlar a ciência é um sintoma comum.

Ao longo da História os exemplos são múltiplos. Mas fiquemo-nos pela actualidade e a pandemia Covid-19.

O Sr. Donald Trump será o paradigma máximo do político que se sente autorizado a definir rumo, postulados, objectivos, e tudo o mais que possamos imaginar, da Ciência, face à pandemia.

O seu objectivo é que os americanos trabalhem, trabalhem, para que a economia cresça, cresça. O bem público é um mito e a tentação de controlar a Ciência uma realidade.

É um  magnífico exemplo com as inúmeras mudanças de atitude desde o início da Pandemia. Há de tudo, pensando sobretudo nos votos de que vai precisar em Novembro próximo. Senão vejamos: vai mudando de postura em relação a algumas atitudes profiláticas nomeadamente o uso da máscara; quer vacinas rápidas, rápidas, seja lá como for;  começa por elogiar e retira logo depois o financiamento à OMS, que tem um papel importantíssimo nomeadamente na questão da vacinação; é “agente publicitário” de vários medicamentos, ao sabor da corrente mediática, desde a hidroxicloroquina ao Remdesivir, passando pela velhinha dexametasona… (relevo o caricato da ignorância manifestada com a história da ingestão de lexívia que obrigou a própria FDA a fazer  um comunicado de alerta e aviso à população americana);  contraria os Governadores Estaduais nas medidas de confinamento; propõe-se açambarcar medicamentos e futuras vacinas; nomeia um Vice-Presidente para controlar a Pandemia; anda em conflito permanente com os cientistas que não dizem o que ele quer, como o recente caso de Fauci. Enfim tudo o que um político que quer defender os cidadãos do seu país não deve fazer.

O seu objectivo é que os americanos trabalhem, trabalhem, para que a economia cresça, cresça. O bem público é um mito e a tentação de controlar a Ciência uma realidade.

Créditos: Marília Castelli (Unsplash).

Um pouco mais abaixo no Globo, e numa escala trágico-cómica, vem aquele Capitão Bolsonaro que diz que não é coveiro. Tão disfuncional exercício do poder dispensa mais comentários, bastando referir o vídeo, que poderia apelidar de publicidade enganosa, em que aparece a tomar um suposto comprimido de hidroxicloroquina para tratar a sua suposta COVID-19, para ver se recupera alguns reais da quantidade que comprou e que tem em armazém. Há quem diga que é também para desviar as atenções dos escândalos familiares.

De comum, estes dois Presidentes de Estado, têm nos seus países uma mortalidade assustadora.

Claro que vão contando, no ponto de vista social, com a amplificação dos media e das seitas religiosas que os suportam. Tenho presente as imagens, transmitidas em TV do Brasil, duma fanática clamando contra o uso das máscaras pois são obra do DIABO.

Nos USA, o Presidente de quatro comités de Bispos Americanos implora que a FDA garanta que as vacinas a desenvolver “estejam livres de qualquer conexão com o aborto”, na linha do conhecido, reacionário, Cardeal Antonio Canizares Llovera, de Valência que considera que vacinas desenvolvidas a partir de células de origem abortiva são “trabalho do DIABO”. E isto negando a realidade de que, há dezenas de anos, são utilizadas células derivadas de abortos electivos, incluindo a HEK-293, para desenvolver vacinas, incluindo rubéola, hepatite A, sarampo e outras. O Sr. Cardeal e os seus prosélitos vão ter muito para excomungar.

A experimentação clínica de medicamentos para uso humano é necessária quando é imperativa a validação da segurança e eficácia dos mesmos. A sua história e avaliação ética dos procedimentos é longa e, na história recente, pode dizer-se que teve origem na tragédia que foi o nacional-socialismo alemão em que foram cometidos crimes monstruosos, também nesta área.

Créditos: Nick Coleman (Unsplash).

Por cá, embora felizmente numa outra escala de valores, também tivemos algumas cenas menos próprias, como a da deselegante interrupção da Ministra da Saúde, numa das “controversas reuniões do Infarmed”, não públicas, nas quais, ao que parece, os cientistas têm que estar todos de acordo. Sendo que ainda se seguiu o acompanhamento, à viola e à guitarra pela dupla Medina e Justino. Este último explícito a pedir a cabeça da Ministra, uma vez que o seu chefe ainda estaria entontecido e baralhado com os power-point. Esqueceram os transportes apinhados, os trabalhadores da construção civil sub-contratados, as difíceis condições sociais das zonas mais afectadas, para não terem que pedir a cabeça do Governo. Mas daria tanto jeito aos apóstolos do Sistema (e não do Serviço) Nacional de Saúde ver substituída a Ministra que defendeu a Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde!

Ainda uma breve referência à (Des)União Europeia não só em relação às medidas financeiras, mas igualmente aos semáforos vermelhos, que vedam a entrada nos países “não convenientes”. Os nossos mais antigos “aliados” deram o exemplo, o que faz pensar se não devíamos voltar à proposta inicial da letra do nosso Hino Nacional “contra os Bretões marchar, marchar” (O Ultimato estava perto) em vez dos actuais “contra os Canhões, marchar, marchar”.

Mas vamos então às vacinas, com particular destaque para os ensaios clínicos, com seres humanos saudáveis, e às questões éticas que levantam, e que, segundo já li em artigo “científico”, “colocam obstáculos à obtenção de vacinas para a COVID-19”.

Créditos: Mateus Campos Felipe (Unsplash).

A experimentação clínica de medicamentos para uso humano é necessária quando é imperativa a validação da segurança e eficácia dos mesmos. A sua história e avaliação ética dos procedimentos é longa e, na história recente, pode dizer-se que teve origem na tragédia que foi o nacional-socialismo alemão em que foram cometidos crimes monstruosos, também nesta área. Aliás, se nos documentarmos adequadamente, o “icónico” Mengele foi quase um “principiante” comparativamente a outros médicos nazis, de quem pouco se fala. Diria mesmo que a Medicina Alemã foi objecto de um retrocesso monstruoso.

Mas os crimes nazis não foram o princípio da experimentação humana anti-ética. E é curioso que na defesa dos médicos julgados em Nuremberga se citam vários exemplos de experimentação feita em humanos pelos USA, entre eles:

          –  Experiências de resistência ao frio feitas em alienados (1941)

          – Experiências em cerca de oitocentos prisioneiros nas Prisões Federal de illinois e de Atlanta e em Casas de Correcção de New Jersey, iniciadas em 1942, sobre o Paludismo, em voluntários remunerados em cerca de 100 dólares, tal como publicado na revista Life, em 4 de Junho de1945.

Como resultado positivo ficou-nos, do ponto de vista Ético, o Código de Nuremberga (1947) e posteriormente a Declaração de Genéve (1948), desde há uns anos jurada pelos Jovens Médicos Portugueses, no que se tem designado como Juramento de Hipócrates.

Neste artigo não me vou referir à Declaração de Helsínquia, suas revisões, e outros tratados pois serão objecto, prometo, de futuro artigo sobre Ética e Deontologia na Experimentação Clínica.

As pesquisas envolvendo a infecção deliberada de voluntários saudáveis pode parecer a muitos anti-ética. No entanto, parece existir um consenso entre eticistas de que estes estudos podem ser eticamente aceitáveis sob certas condições. São oito os critérios referidos pela OMS distribuídos em 4 Grupos.

A figura de Henry Beecher é de referência obrigatória quando em 16 de Junho de 1966, publica, no The New England Journal of Medicine um artigo intitulado Ethics and Clinical Research, onde denuncia 22 casos de estudos americanos como exemplos “Não Éticos ou Questionavelmente Éticos”, desempenhando um papel significativo na implementação de leis federais sobre a conduta na experimentação humana e apelando a um consentimento informado completo. Veio depois a duvidar do consentimento informado, considerando que a presença de um investigador inteligente, informado, conscensioso, compassivo e responsável oferecia a melhor protecção aos seres humanos, alvos da pesquisa.  Também foi importante, para aqui, a sua a defesa anterior do uso do Placebo em “The Powerful Placebo” (J.A.M.A., Dec 24, 1955), que teve pouco impacto na altura. É no mínimo curioso que Henry Beecher venha a ser denunciado, em 2015, como colaborador da CIA no uso de drogas psicoactivas para tortura…

Créditos: Science in HD (Unsplash).

Passemos à definição, mais ou menos consensual, de experimentação clínica em humanos, em geral, considerada ética. Os meios não devem justificar os fins, pelo que se exige equilíbrio no risco/benefício e é obrigatória uma autorização do indivíduo voluntário devida e explicitamente informado.

Consideram-se habitualmente 4 Fases do Estudo:

Fase I –  efectuada num número reduzido de voluntários saudáveis (50 a 100), com a duração de um ano, visando a avaliação da biodisponibilidade, farmacodinâmica e farmacocinética.

Fase II – ensaios em doentes (100-300), de preferência duplamente cegos procurando o estudo da segurança e tolerância, com a duração de 2 anos.

Fase III – em que se busca a eficácia, habitualmente estudos multicêntricos e multinacionais com participações da ordem dos 2000 a 5000 e de duração de 3 anos.

Fase IV – estudos feitos após a autorização do medicamento para comercialização, visando estudo da sua utilização crónica, comparação com medicamentos similares, relação custo/eficácia, etc.

Estou aqui a referir-me à investigação clínica em humanos para a introdução de um qualquer medicamento, e faço-o procurando esclarecer alguma confusão sobre as diferentes fases, que tenho visto e ouvido por aí.

Mas, e com as vacinas, será o mesmo?

Créditos: CDC (Unsplash).

O.M.S., perante uma Pandemia, de contornos evolutivos ainda perfeitamente desconhecidos, publicou em Maio de 2020 um artigo denominado “Key criteria for the ethical acceptability of COVID-19 human challenge studies”.

Ao fazer a história deste tipo de estudos, refere que eles já existem há mais de 50 anos, foram efectuados com segurança em dezenas de milhar de voluntários saudáveis e monitorizados por Comités de Ética para a Investigação. Estes estudos ajudaram, por exemplo, no desenvolvimento de vacinas contra a tifoide e a cólera, bem como na determinação da proteção imunitária contra a influenza.

As pesquisas envolvendo a infecção deliberada de voluntários saudáveis pode parecer a muitos anti-ética. No entanto, parece existir um consenso entre eticistas de que estes estudos podem ser eticamente aceitáveis sob certas condições. São oito os critérios referidos pela OMS distribuídos em 4 Grupos:

– Avaliação Científica e Ética:

          Critério 1 – Justificação Científica

          Critério 2 – Avaliação dos riscos e benefícios potenciais

– Consulta e Coordenação:

          Critério 3 – Consulta e envolvimento (público, cientistas e políticos)

          Critério 4 – Coordenação (entre investigadores, filantropos, políticos e reguladores)

– Critérios de Selecção:

          Critério 5 – Local dos Estudos (os maiores níveis científicos, clínicos e éticos)

          Critério 6 – Selecção dos participantes (critérios que limitem e minimizem o risco)

– Critérios de Revisão e Consentimento:

          Critério 7 – Revisão por Experts (Comité especializado independente)

          Critério 8 – Consentimento informado (o mais rigoroso possível)

Esta será a base da experimentação aceitável. Mas a questão que se nos coloca, é se, nos mais de 140 estudos anunciados, estes critérios são seguidos e respeitados e se não poderá prevalecer sobre a ética a noção de que os fins justificam os meios.

Créditos: ThisisEngineering RAEng (Unsplash).

A juntar aos perigos de vacinas mal investigadas e testadas, faltará aquilo que a prática, mas também a evidência, nos demonstrou, que é que, até agora, o factor mais importante na contenção de maiores estragos pela Covid-19, é a adopção generalizada e conscienciosa de medidas profiláticas por parte das populações.

E os fins serão iguais para todos?

A corrida para os primeiros lugares na produção duma vacina não terá como finalidade os lucros previstos pela Indústria Farmacêutica?

Comissão Europeia, em comunicado de imprensa de 17/06/20 apresentou uma Estratégia Europeia onde logo no parágrafo de abertura se pode ler:

(…) Uma vacina eficaz e segura contra o vírus é a nossa melhor aposta para encontrar uma solução definitiva para a pandemia. O tempo é um fator determinante. Cada mês ganho na procura dessa vacina salva vidas humanas, empregos e milhares de milhões de euros. (…)

Cá está. Para a CE os fins declarados serão salvar vidas humanas, empregos e milhares de milhões de euros.

Créditos: Vlad Tchompalov (Unsplash).

Para o sr. Trump é um favor pessoal, como se pode ler no Editorial da Science:

“Do me a favor, speed it up, speed it up.” This is what U.S. President Donald Trump told the National Association of Counties Legislative Conference, recounting what he said to pharmaceutical executives about the progress toward a vaccine for severe acute respiratory syndrome–coronavirus 2 (SARS-CoV-2), the virus that causes coronavirus disease 2019 (COVID-19). Anthony Fauci, the long-time leader of the National Institute of Allergy and Infectious Diseases, has been telling the president repeatedly that developing the vaccine will take at least a year and a half—the same message conveyed by pharmaceutical executives. Apparently, Trump thought that simply repeating his request would change the outcome”.

Cada um deve esclarecer-se e, nessa medida, ter a sua opinião. A minha é muito concordante com a do Prof. de Virologia Shibo Jiang, que trabalha no desenvolvimento de vacinas e tratamentos para coronavírus desde 2003, em artigo publicado na Nature“Don’t rush to deploy COVID-19 vaccines and drugs”.  

Neste artigo chama a atenção para as mutações do vírus que podem tornar inúteis vacinas e drogas anti-virais. Testar vacinas e medicamentos sem ter o tempo suficiente para compreender os riscos de segurança pode conduzir a recuos inesperados durante a corrente pandemia, e no futuro.

A aceitação pelas populações das medidas propostas pelos Governos, pode ser posta em causa, porque estas podem vir a ser desacreditadas se houver demasiada pressa na introdução de vacinas potencialmente perigosas. E aí, a juntar aos perigos de vacinas mal investigadas e testadas, faltará aquilo que a prática, mas também a evidência, nos demonstrou, que é que, até agora, o factor mais importante na contenção de maiores estragos pela Covid-19, é a adopção generalizada e conscienciosa de medidas profiláticas por parte das populações.

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Fernando Gomes

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