Que escola para a cidadania?

 Que escola para a cidadania?

Ngelah (Unsplash)

Portugal viveu nos primeiros dias de setembro um conflito em torno da Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, uma área curricular que visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas e solidárias que conheçam e exerçam os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo. Consultando a plataforma oficial, observamos que a documentação disponibilizada pela Direção-Geral de Educação para apoiar a área é abundante e de qualidade e alinha plenamente com as recomendaçõesinternacionais na matéria. O que faltou, então? O que parece ter faltado, como acontece com frequência na nossa vida política, foi assegurar que o lançamento da nova iniciativa fosse acompanhado por uma proposta de valor que a credibilizasse e incentivasse a sua adopção por todas as partes envolvidas: alunos, encarregados de educação e professores.

Compreende-se a dificuldade em criar uma tal proposta. Uma coisa é conceber uma área que apenas se dirige à cognição, como acontece com as disciplinas tradicionais. Outra, bem diferente, é abrir espaço para valores, atitudes e práticas, que, como é sabido, não se ensinam: aprendem-se. Ora, para tornar possível uma aprendizagem estimulante e com efeitos duráveis, sem ceder à tentação fácil, mas inútil, de “ensinar conteúdos”, é essencial clarificar os contextos e pedagogias a adoptar e inspirar nos professores a confiança de que necessitam para levar a bom termo essa delicada missão. Sem isso, a área curricular arrisca-se a não ter, junto dos seus atores do terreno, nem credibilidade, nem defensores, nem entusiastas. Será um estorvo curricular, aberto a degenerações, interpretações abusivas e, naturalmente, ataques.

O conflito tornou claras três questões que hoje se colocam nos sistemas escolares:

  • Como promover inovação curricular que contemple o desenvolvimento de competências, valores e atitudes?
  • Que pedagogias adoptar para o efeito?
  • Como formar os docentes para esta realidade?

Inovação curricular

Os desafios que hoje se colocam à inovação curricular nas escolas estão equacionados em grande variedade de recomendações internacionais, desde o pioneiro Relatório Faure (1972), da UNESCO, aos recentes quadros de referência da OCDE, como The Future of Education and Skills, ou o referencial de literacias fundacionais, competências e qualidades de caráter do World Economic Forum. O próprio Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, do nosso Ministério da Educação, se inscreve neste movimento. A principal dificuldade em passar estas recomendações à prática resulta da sua escassa relação com os paradigmas pedagógicos tradicionais em que assenta o nosso sistema escolar.

Desde logo, as novas recomendações não se prestam à fixação de currículos baseados em conteúdos rígidos, mas sim à exploração de currículos dinâmicos, abertos, orientados por objetivos de aprendizagem, assentes em grandes linhas estruturantes e aferidos por modelos de qualidade que permitam acompanhar a concretização no terreno, tanto do ponto de vista dos alunos como do sistema. Este conceito de currículo aberto, ou itinerante, como lhe chamava um colega da PUC-SP numa reflexão recente sobre a resiliência dos sistemas escolares face à pandemia, exigem professores solidamente formados, confiantes e capazes de se ajustarem com agilidade aos contextos deste tipo de aprendizagem.

Nos sistemas escolares atuais, seria impossível e imprudente tentar promover a inovação curricular pela transição de todas as disciplinas de um modelo curricular clássico, baseado em conteúdos estáticos e concebido para exploração formatada, para um paradigma flexível, de nova geração, como o acima mencionado. O que seria possível e desejável, numa perspetiva de inovação curricular que abrisse portas para evoluções futuras, seria explorar a nova modalidade numa só disciplina ou área curricular, com professores experientes e mobilizados para o desafio. A área de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento representa, sem sombra de dúvida, o espaço curricular ideal para pôr em prática este tipo de inovação, que, futuramente, e em função dos progressos conseguidos, poderia ser alargada a outras disciplinas.

Pedagogias de nova geração

O diagrama da figura representa um mapa-resumo das principais pedagogias da atualidade, classificadas em seis categorias, que se desdobram em subcategorias. Muitas delas não existiam há duas décadas, a não ser de forma embrionária. Hoje, todas se encontram amplamente descritas na literatura e são objeto de estudo científico. Apesar da diversidade e riqueza deste universo, muitos docentes dos nossos dias apenas se sentem à vontade com as pedagogias magistrais e desconhecem a maior parte das restantes.

Mapa das Pedagogias em 2020 (António Dias de Figueiredo)

É hoje reconhecido que só é possível aprender competências, valores e atitudes através da prática responsável em contextos de colaboração e convivência social ricos em desafios e dilemas. Torna-se assim indispensável habilitar os docentes da área curricular de Educação para a Cidadania para alternativas pedagógicas de nova geração, com destaque para as pedagogias da emancipação, as pedagogias de projeto e as pedagogias da socialização.

Este desafio não se limita, no entanto, à área curricular de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Os progressos das últimas décadas nas ciências da educação e nas neurociências apontam para uma desvalorização rápida das pedagogias magistrais, a favor das pedagogias de nova geração, que, por sua vez, se revelam adaptadas para serem exploradas tanto presencialmente como online. Num mundo onde a presença e a distância se confundem e as escolas iniciaram o seu prolongamento irreversível para a distância, tornou-se assim decisivo preparar os docentes, todos, para as pedagogias de nova geração.

Que ambientes curriculares delimitados poderão ser usados como oficinas de formação para, numa primeira fase, promover e consolidar esta preparação? A área curricular de Educação para a Cidadania representa certamente um tal ambiente. Vemos assim que, tal como acontece para a inovação curricular, também para a inovação pedagógica a área curricular de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento oferece um contexto a partir do qual se poderá, posteriormente, promover a propagação da inovação para outras disciplinas.

Formação dos docentes

A docência é uma profissão da prática, como a medicina. Nenhum doente entregaria a sua saúde a um médico que não tivesse longa prática clínica, por muita teoria que ele soubesse. As profissões da prática assentam em muita teoria, mas o que as distingue das profissões da teoria é a imensidão de conhecimento que nelas se constrói, todos os dias, pela prática. Esse conhecimento é maioritariamente tácito. Por vezes, usamo-lo sem notar. Outras vezes, trazemo-lo à consciência, mas não sabemos explicitá-lo, como quando ensinamos alguém a andar de bicicleta. A aprendizagem da linguagem pelas crianças é igualmente tácita, tal como é tácito quase tudo o que aprendemos no relacionamento social. Muito do conhecimento construído e usado pelos professores na sua prática diária é tácito.

O pioneiro do estudo do conhecimento tácito, Mihály Polanyi (1958), distinguia entre conhecimento explícito e conhecimento tácito. O conhecimento explícito é o que pode ser descrito objetivamente, explicado, sistematizado, codificado e comunicado. O conhecimento tácito é intuitivo, contextual e radicado na experiência. Como surge na dinâmica do uso, é praticamente impossível explicitá-lo, organizá-lo e comunicá-lo. Por vezes, nem reside na mente de quem o usa, mas na mente coletiva do grupo onde é levado à prática. Esta realidade é hoje estudada nas epistemologias da prática e fundamenta visões muito inovadoras, tanto da aprendizagem como da sociologia das profissões da prática, onde se destaca a docência.

Alguns autores sugerem que o conhecimento explicito é a ponta do iceberg do conhecimento total, onde a componente submersa, incomparavelmente maior, é a tácita. Se assim for, a formação tradicional de docentes, que hoje se centra largamente em conhecimento explícito, cobre uma proporção ínfima do conhecimento que se pode adquirir pela prática. O investigador japonês Ikujiro Nonaka (1994), que estudou as relações entre os dois tipos de conhecimento, confirma a dificuldade de converter conhecimento tácito em explícito, ou externalização, e insiste em que a única forma viável de adquirir conhecimento tácito, esse imenso espaço de saber, é pela socialização.

Linus Nylund (Unsplash)

Antes de existirem espaços online, e apesar do sucesso das teorias socioculturais da aprendizagem, a socialização estava sujeita às limitações da interação presencial. Com a eclosão dos espaços online, a socialização expandiu-se, enriqueceu e tornou possível a aquisição de conhecimento tácito em larga escala através da comunicação online. Os MOOCS contextuais, as comunidades de prática e os processos de coaprendizagem e inteligência coletiva são exemplos desta realidade. Em Portugal, tivemos um exemplo admirável deste fenómeno quando, na véspera do fecho das escolas, em 13 de Março de 2020, um escasso grupo de professores lançou o espaço online Somos Solução / eLearning – Apoio, de ajuda mútua para o ensino à distância e, três meses depois, esse espaço, que continua a crescer, já envolvia ativamente cerca de 30.000 membros.

Este exemplo nacional de formação dos docentes para a prática, e pela prática, com dezenas de milhares de participantes, que aderiram por sua própria iniciativa, representa uma inovação enorme, mesmo a nível mundial, e confirma o mérito das modalidades de formação de professores que se distanciam das rotinas tradicionais de treino para audiências passivas e abraçam a aprendizagem social em larga escala e as comunidades de prática. Conjugadas com as abordagens, mais tradicionais, de formação teórica para as pedagogias de nova geração, têm um potencial muito elevado, que seria uma pena que desperdiçássemos.

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António Dias Figueiredo

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