Rui Bebiano: As grandes revoluções são tão raras, como inevitáveis

 Rui Bebiano: As grandes revoluções são tão raras, como inevitáveis

Rui Bebiano.

Fala sempre num tom baixo e suave, quase confessional, entre o afetuoso e o estilo metódico do educador antigo que tem prazer em explicar os detalhes todos, os porquês do sucedido, suas causas e consequências. Às vezes, a meio de uma frase, larga um sorriso cúmplice, ilustra o que diz com a recordação de uma peripécia qualquer, inquieta-se com esta atualidade complexa e sobre a qual reflete, a partir das pontas da história que vai cerzindo, não para lhe disfarçar os defeitos de roupagem velha e gasta, mas para a perceber através das suas intricadas costuras. Rui Bebiano, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, olha para a História como um corpo vivo, dinâmico e com respiração própria, na certeza de que “saber algum é completamente objetivo, e muito o menos o são os saberes humanísticos, como a história, dado o razoável grau de subjetividade que existe no trabalho de pesquisa, de análise e de comunicação ou de divulgação de resultados que sempre os envolve.”

A História, com base nestas suas palavras que desenvolverá melhor daqui a pouco, não se estuda nem se esquarteja como um cadáver no anfiteatro de medicina legal. Acresce, ainda, como mais à frente nos vai explicar, que “as suas escolhas enquanto cidadão estão sempre presentes no trabalho que leva a cabo, em associação com o dever do rigor na exposição dos factos.”  Pois bem, “No labirinto de Outubro. Cem anos de revolução e dissidência”, a sua obra acabadinha de chegar aos escaparates e que serve de pretexto a este encontro, mostra essa atitude simbiótica entre historiador e cidadão, como se o primeiro fosse um alter ego do segundo.

Investigador de história contemporânea, cujos atuais interesses são a história do tempo presente, dos intelectuais e das representações da utopia, Rui Bebiano aproveita cada pergunta que lhe é colocada para percorrer as múltiplas e diversas paisagens que a Revolução de Outubro propiciou e desencadeou, sem nunca nos dar dela a visão naturalista e panfletária com que tantas vezes é pintada. Pelo seu olhar parece estarmos, em certos momentos, a ver pela primeira vez algo que nunca tínhamos vislumbrado. Ou estaremos apenas a pensar melhor acerca do que nos diz? Certo, é que nessa descoberta ficamos também a saber o que se perdeu e escondeu pelo caminho e cuja curiosidade vem de longe…

Em 1948, antes de partir para a grande viagem pela União Soviética, para escrever “Um diário russo”, John Steinbeck ruminava num final de tarde no bar do hotel Bedford, em Manhattan, a ideia de que as notícias se haviam transformado “em matéria de opinião especializada”. Daí, a necessidade de ir — acompanhado de Robert Capa — para contar o que visse e sentisse, com toda a dimensão da sua subjetividade. As reportagens então publicadas mostraram o pulsar dos campos da Ucrânia e do Cáucaso, de Moscovo e de Estalinegrado. Era a realidade à queima-roupa, feita de instantâneos e de fotos à la minuta.

Agora, o mergulho de Rui Bebiano nos “10 dias que abalaram o mundo”, como lhe chamou John Reed, serve também, no remanso de um diálogo sem pressas nem horas marcadas, para projetar o futuro imediato de um mundo confuso, discorrer sobre as ameaças dos populismos e o papel dos media no atual cenário de cacofonia comunicacional, numa palavra, para problematizar os perigos desta democracia tem-te não caias.  Tendo sempre presente, como terão oportunidade de confirmar uns parágrafos à frente, que “o projeto utópico alimentado pela Revolução de Outubro está a dar lugar a outras formas de contestar a injustiça e de propor novas configurações sociais”. É o Rui Bebiano a pensar alto e a partilhar connosco a sua visão contemporânea dos combates em prol de um mundo mais justo e mais respirável. A utopia a comandar a vida.

SinalAberto — Há neste seu “Labirinto de Outubro” alguma espécie de “Labirinto da saudade”?

Rui Bebiano — A pergunta é desafiante. Como escrevi no posfácio, a metáfora do labirinto não foi casual, nem visou apenas sublinhar a complexidade das escolhas e dos caminhos abordados, mas pretendeu significar algo mais. Algo que possui tanto de poético quanto de pragmático, relacionado com percursos, projetos e desejos, tivessem eles sido individuais ou coletivos, e também com acontecimentos que a partir da Revolução Russa de 1917 marcaram poderosamente a história da humanidade. Ao mesmo tempo, e recuperando, como sugere a pergunta, a expressão usada no conhecido ensaio de Eduardo Lourenço, há de facto nele um trabalho de arqueologia, de análise em profundidade, destinado a reconhecer algumas das origens e alguns dos destinos que nestes últimos cem anos, e a partir daquele acontecimento, tomou a busca humana de uma sociedade mais justa. O historiador Enzo Traverso fala de uma «melancolia de esquerda» como um olhar dinâmico sobre o passado dos ideais progressistas a partir de cujo trajeto, feito de vitórias e de derrotas, é possível projetar novas esperanças. Apesar de ser um ensaio histórico, situado no campo da história das ideias, e não um trabalho vinculado a um projeto político, este No Labirinto de Outubro. Cem Anos de Revolução e Dissidência não deixa de participar nesse esforço retrospetivo e prospetivo.

SA — O livro agora editado tem como pano de fundo um dos acontecimentos mais marcantes do século XX, de que se conhece, sobretudo, o que emergiu e vingou com a revolução de Outubro. Mas há também o outro lado, que o Rui aflora e de que normalmente pouco se fala e discute, e por isso lhe pergunto: que ideias, sonhos ou hipóteses foram esquecidas, face à narrativa do modelo vencedor?

RB — Logo a seguir à queda do Muro de Berlim e ao fim da antiga União Soviética, ocorridos entre 1989 e 1991, propagaram-se por todo o mundo duas ideias que tiveram tanto de precipitado quanto de incorreto, mas que na altura seduziram muitas pessoas, incluindo-se entre elas numerosos analistas políticos. A primeira falava de uma era «pós-comunista», como se por aqueles dias todo um projeto e todo um modelo abertos pela revolução bolchevique e depois disseminados sob diversas formas por vários continentes, tivesse sido morto e enterrado, relegado apenas para o passado. A segunda ideia referia-se ao propalado «fim das ideologias», sugerido na obra homónima publicada em 1960 pelo sociólogo Daniel Bell e ampliado com a afirmação de um hipotético «fim da História», proposta justamente no ano-charneira de 1989 pelo cientista político neoconservador norte-americano Francis Fukuyama, que remetia para o que se chegou a acreditar ser o fim das grandes narrativas progressistas do trajeto histórico desenvolvidas a partir dos meados do século XVIII e do legado do iluminismo, entre as quais se encontrava a marxista. A par da derrocada das experiências do «socialismo realmente existente», ou dos «Estados socialistas» de algum modo herdeiros da Revolução de Outubro, ambas as ideias contribuíram para disseminar a convicção segundo a qual o caminho para uma sociedade igualitária teria ficado inteiramente bloqueado.

(…)”Nem mesmo a história construída da forma mais rigorosa é 100% isenta. Nem de perto. No que respeita à experiência observada neste trabalho, o que vejo é a persistência de uma tendência humana para a construção de sociedades mais justas, capazes de superar as dinâmicas negativas do capitalismo e da sociedade de classes, mas que passaram por muitas peripécias, talvez mais pontuadas por derrotas e perversões do que por vitórias e conquistas, e sempre oscilando entre ortodoxias e dissidências”.

Todavia, as dificuldades rinham começado bem cedo e, desde logo, dentro do próprio campo político construído em nome desse caminho. A Revolução de Outubro e a sua influência na história geral do socialismo passaram por vias e propostas muito diversas, que em boa parte tento inventariar neste livro. Os acontecimentos revolucionários de fevereiro e de outubro de 1917, e depois as experiências desenvolvidas na Rússia bolchevique, foram objeto de muito improviso – a ideia de um Lenine com um plano «montado na cabeça» é completamente errada – e incluíram propostas muito diversas, por vezes contraditórias, que tiveram como traço comum a vontade de produzir uma sociedade nova, melhor do que qualquer outra que tivesse existido.

O modelo que neste Labirinto de Outubro considero dominante, imposto pelo grupo dirigido por Estaline a partir de 1928, e continuado, ainda que de forma um pouco menos rígida e violenta, mesmo depois da sua morte em 1953 e até à emergência da era de Gorbachev em março de 1985, e que foi replicado em todo o mundo por muitos partidos comunistas «oficiais», nunca conseguiu apagar a existência real de outras hipóteses progressistas e revolucionárias, muitas delas dissidências do próprio modelo dominante, formalmente voltadas para a construção de sociedades mais justas, igualitárias, livres e emancipadas. É também isto que procuro documentar neste livro.

SA — Estamos, portanto, diante de um dos acontecimentos mais ideologizados do último século, no qual até a grande imprensa estrangeira tomou partido. (O The New York Times, por exemplo, chegou a publicar 91 notícias sobre a queda iminente dos bolcheviques). Como historiador situado no lado esquerdo do espetro político, que sentimentos experimenta, quando olha e reflete acerca destes 100 anos de “dissidência e de revolução”?

RB — Saber algum é completamente objetivo, e muito o menos o são os saberes humanísticos, como a história, dado o razoável grau de subjetividade que existe no trabalho de pesquisa, de análise e de comunicação ou de divulgação de resultados que sempre os envolve. Mas neste domínio existe igualmente uma forte dose de objetividade, pois o historiador não cria, efabula ou inventa, apenas inventaria, interpreta e mostra. Ao mesmo tempo, as suas escolhas enquanto cidadão estão sempre presentes no trabalho que leva a cabo, em associação com o dever do rigor na exposição dos factos. Não escapo a esta condição e no que escrevo neste domínio procuro sempre conjugar os meus interesses, angústias e escolhas como historiador com aqueles que mantenho como cidadão. Nunca escondo esta aproximação e considero que tentar negá-la, como faz ainda alguma historiografia neopositivista, será sempre uma fraude, pois nem mesmo a história construída da forma mais rigorosa é 100% isenta. Nem de perto. No que respeita à experiência observada neste trabalho, o que vejo é a persistência de uma tendência humana para a construção de sociedades mais justas, capazes de superar as dinâmicas negativas do capitalismo e da sociedade de classes, mas que passaram por muitas peripécias, talvez mais pontuadas por derrotas e perversões do que por vitórias e conquistas, e sempre oscilando entre ortodoxias e dissidências. Talvez este livro possa ajudar a mostrar que esse é um caminho longo e que continua para além delas. Neste sentido, é claro que, como seu autor, tomo posição, partilhando algumas das esperanças e muitas das deceções nele referidas.

“É claro que, como seu autor, tomo posição, partilhando algumas das esperanças e muitas das deceções nele referidas.”.

SA — É correto dizer-se que esta obra, além do envolvimento e da investigação que o Rui lhe dedica como historiador, é também uma espécie de ajuste de contas pessoal?

RB — A dimensão e o valor do pessoal na atividade do historiador não são consensuais, desde logo entre os próprios historiadores. Isto acontece desde o instante em que escolhe um tema e, dentro deste, opta por um ou outro ângulo. Isto acontece sobretudo com o historiador do mundo contemporâneo, e mais ainda o do tempo mais próximo, o do «tempo presente», pois este lida com factos e situações «quentes», com uma ligação ativa à realidade que flui. No meu caso, por ter uma vida em boa parte  dedicada, desde a adolescência, à militância cívica por um ideal de sociedade que partilha de muitas das propostas e das utopias que este trabalho refere, é claro que há também um trabalho de reflexão sobre opções, experiências e possibilidades que, neste campo, com outras pessoas fui partilhando. Seria totalmente artificial, para além de inglório, procurar separar inteiramente uma coisa da outra. Todavia não lhe chamaria «ajuste de contas», expressão que me parece um pouco dramática…

“Com toda a probabilidade, a emergência de transformações políticas repentinas continuará a acompanhar o percurso da humanidade.”

SA — Olhemos, mesmo assim, para a ideia de revolução. Todas as revoluções, independentemente do seu sentido e para se autolegitimarem, são sempre feitas em nome de valores coletivos. Que tipo de revolução faria sentido hoje, diante do quadro de desigualdades existente?

RB — A principal lição que ofereceu a Revolução de Outubro de 1917, e aquela que logo na época a tornou muito perturbante, tanto para os que a combatiam, como para aqueles que a apoiavam, foi a de que outro mundo era possível. A ideia de que a sociedade existente não é uma inevitabilidade, mas resulta de uma escolha, sendo por isso possível projetar e pôr em prática uma outra escolha, outras possibilidades, construindo uma sociedade radicalmente nova. É a essa força que em Grandeza de Marx, um livro já de 2011 que merecia maior atenção, o filósofo Sousa Dias chama «a política do impossível», capaz de fazer com que o sonho se materialize, «desça à terra».

No último capítulo deste trabalho, procurei precisamente falar de «novos horizontes», projetados, tantos anos depois, num tempo histórico e sob condições completamente diferentes dos de há cem ou mesmo de há trinta anos. Nele não faço qualquer proposta, pois, como disse, é um livro de história das ideias, e não um ensaio de filosofia política, procurando sobretudo mostrar de que modo, no mundo contemporâneo, o projeto utópico alimentado pela Revolução de Outubro está a dar lugar a outras formas de contestar a injustiça e de propor novas configurações sociais. Tendo como objetivo último o mesmo daquele acontecimento fundador, que foi a produção de uma sociedade ao mesmo tempo outra e mais perfeita. Uma sociedade na qual o poder não se limitasse a gerir danos, procurando antes novas formas de organização da vida coletiva e das relações sociais, bem como outros modos de emancipação do sujeito individual. Na senda da imagem, proposta por Marx, do Prometeu agrilhoado, o titã, evocado por Ésquilo, que foi capaz de se libertar partindo as próprias cadeias.

SA — Essa ideia de libertação contrasta com o que dois conhecidos historiadores norte-americanos, em “Como morrem as democracias”, escrevem a dado passo: “hoje o retrocesso democrático começa nas urnas”, em consequência do florescimento do populismo. Corremos o risco de as grandes transformações, agora, já não serem por via revolucionária, mas através de processos eleitorais?

RB — Não por uma questão de fé, mas devido às lições oferecidas pela História, sou dos que acreditam que as grandes revoluções são tão raras, como inevitáveis, e são tão rápidas, como demorado é sempre o processo que a elas acaba por conduzir. Com toda a probabilidade, a emergência de transformações políticas repentinas continuará a acompanhar o percurso da humanidade. Todavia, esse livro de Levisky e Ziblatt levanta um problema pertinente: é, de facto, bem grande a possibilidade de a democracia representativa se tornar responsável pelo seu próprio colapso. É claro que esta não se trata de uma novidade histórica, bastando-nos recordar a forma como, em 1933, foi através de eleições que os nazis chegaram ao poder, ou o modo como ao longo do século XX eleições e referendos serviram para legitimar ditaduras de diferentes tipos. A verdade é que quem desses processos beneficiou se manifestou abertamente contra a democracia, enquanto nos tempos mais recentes tendências políticas autoritárias usam a própria democracia como forma de se legitimarem e de alcançarem o poder. O populismo, a par da manipulação da informação, é em larga medida responsável por esta situação, que coloca às forças progressistas e democráticas novos e grandes desafios.

SA — Quer dizer, então, que no meio do atual discurso dominante em torno da santificação do saber tecnológico importa revalorizar o conhecimento da História…

RB — Sem dúvida. É natural que como historiador o diga, ao procurar valorizar o meu próprio trabalho, mas faço-o ainda mais como cidadão. Esclareço isto melhor: o conhecimento do passado procura-se, desde logo, pelo simples prazer de conhecer, mas serve ainda para que o passado nos forneça lições e testemunhos, evitando a repetição de erros e desvios. E serve sobretudo para que consigamos compreender de que forma o presente, nas suas formas e dinâmicas, se formou e se compõe, servindo este trabalho de conhecimento do passado como ferramenta para interpretarmos o nosso próprio mundo, melhor sabendo como nele nos comportarmos. Dou três exemplos do mundo de hoje: em primeiro lugar, a grande, decisiva e perigosa importância recuperada pela religião; em segundo, o regresso dos nacionalismos, sempre uma fonte de perigosos conflitos; e em terceiro, alguns dos fundamentos utilizados pelos diferentes populismos em fase de ascensão. Qualquer deles será inteiramente inteligível apenas se pudermos fazer uma arqueologia das suas manifestações no presente. Na verdade, o presente jamais tem uma chave de leitura de si próprio, precisando do passado para se autoreconhecer.

“O que acontece hoje com intérpretes políticos como Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Vladimir Putin é, justamente, a produção de um discurso primitivo, autoritário, agressivo e securitário com o qual, em larga medida, importantes setores da população se identificam, no sentido de considerarem que «eles dizem o que eu penso». Por isso tão facilmente os plebiscitam”.

SA — Como observa, então, a emergência — e afirmação, em alguns casos — dos atuais populismos?

RB — A pergunta aponta no sentido que me parece certo: o populismo é realmente plural, pois de modo algum possui um rosto único. Há mesmo, para além de outras variantes, um populismo de direita, sem dúvida o dominante, mas também um populismo de esquerda. Todos os seus modelos assentam numa estratégia comum: a tentativa de associar as propostas políticas que pretendem levar a cabo com o que consideram ser e identificam como «os interesses do povo». Chantal Mouffe fala, aliás, de um «populismo de esquerda» no qual esse «povo» é apresentado como um sujeito político, ou um sujeito histórico, dinâmico, sucedendo de certo modo ao que até há poucas décadas, e para alguns setores ideológicos ainda hoje assim acontece, representou a classe operária.

“Em todas as sociedades o grau de satisfação com a democracia e a valorização da liberdade relaciona-se estreitamente com as condições da vida real.”

No entanto, verdadeiramente perigoso, e a meu ver a precisar de um rápido antídoto por parte da democracia, são os «populismos de direita», dado estes apelarem aos instintos mais primários do «homem comum», ao qual, em regra, o líder populista pretende aparentemente «dar voz». O que acontece hoje com intérpretes políticos como Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Vladimir Putin é, justamente, a produção de um discurso primitivo, autoritário, agressivo e securitário com o qual, em larga medida, importantes setores da população se identificam, no sentido de considerarem que «eles dizem o que eu penso». Por isso tão facilmente os plebiscitam. O filósofo brasileiro Fernando Schüler lembra que, numa sociedade complexa onde um cada vez maior número de indivíduos não dispõe de tempo ou interesse para se debruçar sobre a maioria dos assuntos, o líder populista é, afinal, o sujeito que aprendeu mais rápido a lidar com este universo caótico e sem projetos políticos efetivamente mobilizadores, aproveitando-se disso para construir e fazer vingar a sua própria agenda.

SA — Qual a forma mais eficaz, na sua perspetiva, em os combater: melhores e mais justas práticas políticas, ou um melhor conhecimento da História?

RB — Ambos os aspetos são importantes, embora a qualidade e a justeza das práticas políticas sejam sempre os fatores determinantes. Em todas as sociedades o grau de satisfação com a democracia e a valorização da liberdade relaciona-se estreitamente com as condições da vida real, com aquilo que Sérgio Godinho proclamava no refrão da canção Liberdade: que «só há liberdade a sério quando houver / a paz, o pão, habitação, saúde, educação», e este é um princípio válido para todas as sociedades. Na verdade, por muito bela e romântica que pudesse ser essa hipótese, os valores e as práticas da liberdade e da democracia dificilmente funcionam em estômagos vazios, no meio da pobreza ou em sociedades instáveis, pelo que são de facto as práticas políticas a determinar a possibilidade da existência de uma sociedade mais justa e melhor, por isso com um maior grau de satisfação daqueles que a habitam. O conhecimento da História, em articulação com o reconhecimento dos processos de organização, de funcionamento e de elaboração da memória, ajudará sempre a desenvolver os processos de reconhecimento do valor da democracia e o grau de desenvolvimento da cidadania, pois permite identificar os fundamentos e origens da sociedade presente e de algum modo preparar o que será o futuro, mas será sempre um complemento. Ainda que um complemento imprescindível. Na medida do que seja capaz de fazer, parte do meu trabalho tem sido aplicada neste esforço.

“Quem poderá pensar para além do imediato? Não parece possível que sejam os técnicos, os gestores, ou mesmo os políticos profissionais, a fazê-lo. O intelectual «fora da caixa», mobilizador e prospetivo, permanece imprescindível, se bem que o seu rosto e a sua forma de agir vão necessariamente mudando, acompanhando as mudanças do mundo que habita”.

Rui Bebiano, no lançamento do seu livro sobre Tony Judt, em Lisboa, com Irene Pimentel e José Vitor Malheiros.

SA — Um dos tópicos a que regressa no seu livro é ao papel do “intelectual público”. Ainda podemos falar hoje da importância desse ator, num contexto de quase cacofonia comunicacional?

RB — Por volta dos anos oitenta, sensivelmente na mesma altura em que o mundo bipolar que tinha sido desenhado pela Guerra Fria se aproximava do seu termo, começavam a circular com grande impacto as teorias sobre o suposto desaparecimento das ideologias, ou sobre o presuntivo fim da História, que já atrás referi, tendo igualmente sido decretada a «morte dos intelectuais». O presente deveria ser apenas bem gerido, não precisando mais de admiráveis utopias ou de grandes projetos políticos assentes em hipóteses políticas e filosóficas, ou ainda da mobilização dos cidadãos para grandes causas e ideais de transformação. Se, como afirmava o slogã da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, «there is no alternative», «não há alternativa», para quê dar voz a alguém preocupado com o pensar de outras possibilidades?

Nas atuais circunstâncias, a intervenção e o papel desempenhado pelo «intelectual público» são sem dúvida diferentes e terão um menor impacto público, por comparação com aqueles que ocorreram sobretudo ao longo da primeira metade do século XX. A sua voz, perdida no meio de uma polifonia por vezes transformada nessa cacofonia, não será escutada com a mesma atenção, mas continua a ser absolutamente necessária como instrumento dinamizador da reflexão e como voz capaz de proclamar, como acontecia no conhecido conto de Hans Christian Andersen, «que o rei vai nu». De outra forma, quem poderá pensar para além do imediato? Não parece possível que sejam os técnicos, os gestores, ou mesmo os políticos profissionais, a fazê-lo. O intelectual «fora da caixa», mobilizador e prospetivo, permanece imprescindível, se bem que o seu rosto e a sua forma de agir vão necessariamente mudando, acompanhando as mudanças do mundo que habita.

SA — Qual o papel desse intelectual na incerteza da complexidade que carateriza as sociedades contemporâneas?

RB — Ao meu ver, ele é absolutamente crucial. O «intelectual público», no sentido que a palavra tomou na viragem para o século XX, quando do «caso Dreyfus» que envolveu uma tomada de posição de Émile Zola publicitada no diário L’Aurore, à qual se seguiu a adesão de um grande número de personalidades e a transformação deste tipo de gesto numa prática regular de compromisso militante em favor de uma ideia de ética e de justiça, é definido por um conjunto de caraterísticas próprias. Destaco quatro: é o «transmissor» de uma determinada verdade ou convicção, atua como um «pensador» que organiza e propõe uma dimensão de crítica e de reflexão, funciona como «especialista» com reconhecimento público nas áreas dentro das quais se pronuncia, e é necessariamente um «dissidente», ao pensar de forma livre e autónoma, sempre que necessário contra a ordem política e cultural dominante no seu universo e no seu tempo.

“O intelectual «fora da caixa», mobilizador e prospetivo, permanece imprescindível, se bem que o seu rosto e a sua forma de agir vão necessariamente mudando, acompanhando as mudanças do mundo que habita.”

No mundo atual, onde a polifonia das vozes e dos instrumentos de comunicação se ampliou a uma escala sem precedentes, e onde o peso da comunicação social e da publicidade expandiu também o volume de opinião e de interpretações do mundo, o seu papel foi de facto reduzido. Muito menos pessoas se dispõem a tomar como exemplo, como inspiração, uma ideia, uma voz ou um perfil moral, quando existem milhares de leituras, e quase todos podem também emitir as suas próprias recorrendo às redes sociais. Além de que muitas das vozes singulares são de defensores da ordem estabelecida ou de meros publicistas, que aplicam o seu esforço a impor pontos de vista determinados pelos vários poderes. Mas é precisamente por isto que torna ainda mais necessária a presença de vozes singulares, destemidas, criadoras e autónomas, capazes de aplicar a sua reflexão e a sua comunicação com os diferentes públicos em prol da cidadania.

“As várias formas do pensamento de esquerda têm, elas próprias, uma origem intelectual. De Marx a Lenine, de Trotsky a Mao ou a Fidel, de Bernstein a Olof Palme, de Golda Meir a Willy Brandt, de Álvaro Cunhal a Mário Soares, de Toni Negri a Slavoj Zizek, praticamente todas as figuras importantes da história das esquerdas tiveram essa origem, sendo justamente ela a conferir identidade e capacidade dinâmica à sua intervenção nos momentos históricos nos quais participaram”.

SA — Considera que o poder político presta alguma atenção ao hipotético “intelectual público”, ou apenas se interessa por ele se as suas ideias forem convergentes com os interesses da política em causa?

RB — A relação do poder político com o que habitualmente se chama «intelectual público» tem, ela também, a sua história. Ela foi sempre difícil, dado que, mais do que outra coisa, ele sempre foi, acima de tudo, uma fonte ou a expressão de um contrapoder. Como disse atrás, de uma ou de outra forma um dissidente. Não foi hoje que a sua vida e a sua missão se tornaram difíceis e passaram a enfrentar os grandes e os pequenos poderes. O que acontece hoje é que os grandes meios de comunicação tendem a rejeitar a sua dimensão de irreverência, acabando por dar espaço sobretudo a vozes mais cómodas e previsíveis. Isto acaba por ter um efeito de eco e de habituação junto do público, de quem lê, vê ou escuta as vozes que têm maior disseminação, provocando um efeito de estranheza em relação ao pensamento autónomo e às suas vozes. Estas têm de lidar com este cerco e de procurar outras estratégias. Todavia, permanecem insubstituíveis.

SA — A propaganda, outro dos tópicos que aborda, é um elemento estruturante na difusão dos princípios fundadores do comunismo e da sua ação mobilizadora. Como explica a aparente inépcia dos partidos de esquerda lidarem com as redes sociais no atual contexto comunicacional?

Abril de 1974, junto da PIDE, em Coimbra (Foto: “Formidável”).

RB — As várias formas do pensamento de esquerda têm, elas próprias, uma origem intelectual. De Marx a Lenine, de Trotsky a Mao ou a Fidel, de Bernstein a Olof Palme, de Golda Meir a Willy Brandt, de Álvaro Cunhal a Mário Soares, de Toni Negri a Slavoj Zizek, praticamente todas as figuras importantes da história das esquerdas tiveram essa origem, sendo justamente ela a conferir identidade e capacidade dinâmica à sua intervenção nos momentos históricos nos quais participaram. As várias correntes políticas acabaram, em parte por isso, por conferir uma grande importância à disseminação de um grau de consciência substantivo, assente sobre uma argumentação fortemente ancorada na ideologia, que se torna aparentemente impossível de manter no presente campo comunicacional, onde tudo é fugaz e simplificado. Até os artigos de opinião são cada vez mais curtos e as intervenções orais nos média forçadas à maior brevidade e concisão. Por isso a direita, em particular a populista, que muito raramente se preocupou e se preocupa com a fundamentação teórica ou ética das suas propostas, lida bastante melhor com esse universo, onde se movimenta com grande à vontade. No ensaio Ecosocialism, de 2015, o filósofo neocomunista franco-brasileiro Michael Löwy propõe hoje um curioso antídoto para esta situação, ao falar nas virtualidades de um «romantismo revolucionário» mais assente na mobilização obtida através da emoção do que num esforço de elaboração teórica que, nas atuais circunstâncias, a poucos cidadãos estará em condições de mobilizar. Independentemente de tudo isto, julgo que os partidos e movimentos de esquerda deveriam ter uma atitude mais proactiva neste campo, em vez de muitas vezes deixarem o campo aberto à direita.

“A experiência do estalinismo, por exemplo, não pode, nem deve ser varrida para debaixo do tapete, como se não tivesse existido ou detido reduzida importância, quando ao longo de gerações afetou as vidas de centenas de milhões de pessoas distribuídas por várias gerações e por lugares muito diversos”.

SA — Vê alguma relação entre o panorama mediático atual e o crescimento generalizado dos populismos de direita?

RB — Infelizmente, para quem observa a atividade mediática como fator essencial à vida das sociedades, vejo com apreensão essa forte ligação. Grande parte da comunicação mediática, dos jornais em papel à Internet, passado por outros meios, como a televisão, o mais popular e influente de todos, tende numerosas vezes, seja em nome do caráter incomum das iniciativas dos líderes populistas, ou devido ao caráter sensacionalista de muitas das suas palavras e iniciativas, tomado como um instrumento para a captação de crescentes audiências, a favorecer a divulgação da sua existência e das suas propostas. Aliás, uma boa parte dos líderes populistas são criados e redimensionados por esse processo. O caso de Jair Bolsonaro é um triste exemplo da eficácia dessa articulação. E mesmo quando alguns dos responsáveis por ela se acabam por mostrar arrependidos do monstro que ajudaram a criar – como parece ter acontecido, também no Brasil, com a rede Globo – já é tarde demais, pois entretanto ele ganhou uma vida própria, com apoios, alianças, financiamentos e uma rede de expetativas que lhe permitem organizar a sua própria máquina política e seguir o seu caminho de assalto ao poder.

SA — Que tipo de discurso, de respostas tem faltado às esquerdas (herdeiras da Revolução de Outubro) para serem mais eficazes, quer nas mensagens que transmitem, quer nos respetivos resultados eleitorais — e não se me refiro apenas ao caso português.

RB — A herança da Revolução de Outubro no que genericamente designamos «esquerdas» é já de si um problema bastante complexo, uma vez, como também procurei mostrar neste meu último livro, ela seguiu vias muito diversas, com estratégias diferenciadas, assim como projetos de futuro também eles díspares. Julgo que é essencial a consciência da existência desta diversidade, como o é também a perceção de erros e bloqueios cometidos no passado e no presente pelas diferentes esquerdas, na construção de novos caminhos para a esquerda e nos seus processos de combate político para a obtenção ou a manutenção do poder político. A experiência do estalinismo, por exemplo, não pode, nem deve ser varrida para debaixo do tapete, como se não tivesse existido ou detido reduzida importância, quando ao longo de gerações afetou as vidas de centenas de milhões de pessoas distribuídas por várias gerações e por lugares muito diversos. A mesma coisa em relação à social-democracia da Terceira Via, protagonizada por Tony Blair, que conduziu este campo político para um beco sem saída, como derrotas por todo o lado e uma submissão completa aos ditames do neoliberalismo. Não tenho, obviamente, uma solução para este dificuldade – o que faria desta pergunta a tal de «um milhão de dólares» – mas tenho a perceção que a recuperação, por parte da esquerda, de eleitorados que lhe devolvam a ligação matricial com a maioria da população e dos eleitores, terá sempre de estar associada à conjugação de princípios de solidariedade, igualdade e justiça, com um forte pragmatismo na elaboração de políticas e ainda com um profundo respeito pela democracia, que não pode limitar-se à vida regulamentar dos governos, dos parlamentos e das instituições locais, podendo e devendo ser ampliada a outras instâncias e processos, onde a proximidade com os cidadãos possa ser aprofundada.

“É claro que o cidadão, também historiador, que eu sou, vislumbra no presente sinais preocupantes, sobretudo aqueles associados à fragilidade da democracia, à desigualdade social e ao desequilíbrio entre diferentes áreas do planeta, que podem a qualquer momento, como aconteceu num passado pouco distante, soltar os piores demónios e dar lugar às maiores catástrofes”.

“O historiador não é um ser omnisciente, nem profeta.

SA — O “oficiante do passado”, para usar uma expressão sua quando se refere ao historiador, será alguém especialmente preparado para entender precocemente os sinais do futuro. Em que o preocupam os sinais que vislumbra?

RB — Devo dizer, aqui sobretudo como historiador, que rejeito em absoluto essa designação, tantas vezes invocada, dado ela conferir ao profissional da história um lugar «sacerdotal», que de facto por vezes ocupa, ou que ocupou, mas que me parece socialmente prejudicial e perigoso. Tive alguns professores, quando tirei o meu curso de História, que nos diziam nas aulas que os historiadores eram as pessoas melhor preparadas para governar, pois «tinham consigo as lições do passado». Recordo que já então os ouvia com algum humor, costumando brincar com os meus colegas sobre como o professor X ou Y funcionaria se por um passe de mágica (e provável desgraça do país) se tornasse ministro fosse do que fosse… O conhecimento do passado pode ajudar, sem dúvida, mas não torna seja quem for forçosamente melhor, seja como político ou cidadão. Aliás, o passado não tem leituras únicas nem à prova de manipulação, podendo servir para legitimar realidades e decisões muito diferentes, por vezes contraditórias. O historiador não é, felizmente, nem um ser omnisciente, nem um profeta ou um adivinho. E muito menos um desses «tudólogos» que se julga preparado para emitir com elevado nível de certeza posições sobre seja o que for. Mas é claro que o cidadão, também historiador, que eu sou, vislumbra no presente sinais preocupantes, sobretudo aqueles associados à fragilidade da democracia, à desigualdade social e ao desequilíbrio entre diferentes áreas do planeta, que podem a qualquer momento, como aconteceu num passado pouco distante, soltar os piores demónios e dar lugar às maiores catástrofes. Compete, julgo, a quem tenha consciência destes processos, antecipá-los e impedir que ocorram. Se possuir algum grau de consciência cívica, um historiador tem ao seu dispor meios para colaborar nesta missão.

SA — Que acontecimentos históricos ocorridos nos últimos 100 anos qualquer jovem deveria conhecer bem?

RB — Há já alguns anos que tenho feito com os alunos de história do mundo contemporâneo um exercício pedagógico que passa por essa identificação, pelo que, correndo sempre o risco de esquecer alguns momentos também importantes, penso poder fazer uma pequena lista de datas-chave associadas e diversos factos. 1914-1918 e 1939-1945, as duas Guerras Mundiais, são, por motivos mais que evidentes, duas dessas marcas. O ano de 1917, que trato no meu último livro precisamente na perspetiva que me parece mais importante, como data da Revolução bolchevique que inaugurou uma tradição de procura de transformações voltadas para a produção de sociedades renovadas e melhores. 1968, o ano-charneira que produziu o Maio parisiense e a Primavera de Praga, dando embora lugar, em ambos os casos, à afirmação do reverso dos ideais neles propalados, serviu para abrir de Leste a Oeste novos mundos possíveis. 1989-1991, com a Queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, assistiu à implosão do mundo que muitos de nós julgava em boa parte imutável, produzindo um novo e radicalmente diverso equilíbrio internacional. 2001, quando o ataque às Torres Gémeas do World Trade Center abriu uma nova fase global de medo, tensão e tendência para o securatismo. Finalmente, em 2008 a crise financeira global, associada ao desabamento dos mercados financeiros, tornou explícita a natureza ao mesmo tempo frágil e contraditória do sistema mundial do neoliberalismo capitalista, determinando a necessidade de passar a olhar, na organização das sociedades, para algo mais do que o simples acumular de riqueza, mostrando o caráter imperativo dos mecanismos de regulação. É claro que, para Portugal, o biénio revolucionário de 1974-1975 permanece também um tempo fundador, cuja compreensão dinâmica e substantiva é indispensável para a formação democrática das novas gerações. Todos carregamos connosco uma dose de memória que se funda na experiência pessoal e coletiva, mas também nas lições que a História pode oferecer.

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João Figueira

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