Sobre os povos originários e a embaixada estadunidense

 Sobre os povos originários e a embaixada estadunidense

Tenho pautado minha vida, desde há décadas, a trazer para o debate a questão indígena. Minha proposta sempre foi buscar uma ponte entre o mundo indígena – tão desconhecido pela maioria – e os trabalhadores, visto que, tanto um quanto os outros estão submetidos ao tacão do capital. Tenho claro de que o que aconteceu aqui nesse espaço geográfico em 1500 não foi um encontro de mundos, foi uma invasão que provocou genocídio, etnocídio e memoricídio, e que permitiu a ascensão do capitalismo nos países dito centrais. Milhões de almas foram dizimadas para que pudesse assomar o que hoje conhecemos como nação brasileira, e ainda assim, apesar disso, muitas etnias conseguiram sobreviver e seguem resistindo ao genocídio sistemático que nunca parou. Sempre vale lembrar que ao final dos anos 1970 os indígenas contavam pouco mais de 190 mil almas, e dizia-se que estavam fadados ao desaparecimento.  

Os povos originários, donos dessa terra, foram perdendo seus territórios, empurrados para outros espaços, fugindo do ódio e dos assassinos. Os que conseguiram permanecer vivos hoje se reorganizam, buscam retomar seus territórios originais, e insistem para que haja reparação para tudo o que sofreram e perderam. Já são quase um milhão de almas, ocupam apenas 12% das terras brasileiras e ainda assim continuam sendo alvos de preconceito e de ódio racial. “Muita terra para pouco índio”, dizem as menos de 200 famílias de latifundiários que ocupam quase 80% das terras agricultáveis, e que não satisfeitas ainda querem abocanhar o território indígena, que é preservado e que contém riquezas minerais e biológicas de infinita importância para o equilíbrio da vida no planeta.  

Ao longo dos anos nesse trabalho de divulgar o modo de vida indígena junto aos não-índios temos feita a crítica aos companheiros e companheiras da esquerda eurocêntrica que não conseguem compreender em profundidade o tema indígena e que apenas se juntam às causas dos originários em momentos pontuais, não existindo dentro dos partidos políticos, por exemplo, um trabalho sistemático de acompanhamento das lutas indígenas e de parceira real. No geral, os povos originários tem travados suas batalhas de maneira solitária. Recebem apoio, é claro, mais ainda é um apoio ritualístico. É fato que tivemos no Brasil figuras como Darcy Ribeiro, um não-índio totalmente dedicado a compreender o mundo indígena, ou os irmãos Villas-Boas, também não-índios, absolutamente voltados ao universo indígena, bem como o Conselho Indígena Missionário, ligado à Igreja Católica, mas nas instituições partidárias, o tema não encontra morada. 

É justamente por isso que, ao longo dos anos, eles compreenderam que buscar apoio fora das fronteiras brasileiras ajudava em muito para que as suas causas fossem visibilizadas aqui dentro do país. Assim, as caminhadas das lideranças pela Europa, por exemplo, sempre renderam bons frutos por aqui. Uma política arriscada, buscar ajuda no centro do capital, mas era o que parecia surtir efeito. E assim tem sido por muito tempo com inegáveis ganhos em algumas lutas particulares.  

Entretanto, desde os anos 1990, o movimento indígena em todas as Américas tem assomado com novas táticas de luta. E uma delas é fortalecimento de suas próprias instituições e lutas renhidas dentro dos seus espaços geográficos. Organizações indígenas formadas por indígenas, desvinculadas das ONGs tradicionais ou esporádicas, apontando novos rumos para suas lutas em todo o continente. E assim os povos indígenas vão travando, por anos e anos, um grande combate pela recuperação de suas terras e pelo direito de manter seu modo de vida, que é totalmente oposto ao que prega o sistema capitalista de produção. As comunidades indígenas não se guiam pela produção em escala e muito menos pelo lucro. Sua cosmovivência se traduz no respeito à natureza e no equilíbrio entre o humano e o entorno. E é justamente aí que reside a possibilidade de uma aliança concreta com os trabalhadores explorados pelo capital. Unificar as lutas, batalhar em conjunto pelo fim do capitalismo e pela construção de outra forma de organizar a vida deveria ser objetivo de todos nós.  

Não se trata mais de dividir o mundo entre indígenas e brancos, mas entre os que querem uma vida nova – em equilíbrio – e os que insistem em acumular riquezas a partir do roubo do trabalho e da destruição de tudo. Ou seja, a luta é contra o capital. Porque é ele que massacra os trabalhadores – a maioria das gentes – e também os povos originários. 

Pedindo ajuda ao monstro 

Por isso causou profundo pesar a carta enviada por mais de 200 entidades do movimento indígena, ambiental e social brasileiro, ao presidente Joe Biden, pedindo para conversar com ele sobre os destinos da Amazônia. O argumento é de que o presidente do Brasil está disposto a destruir tudo em nome dos seus aliados – latifúndio e empresários da fé. Assim, os movimentos pedem que Biden não discuta sobre a Amazônia com Bolsonaro, mas com eles.  

Biden, que não é bobo nem nada, aproveitou a bola levantada pelos movimentos brasileiros e já ordenou uma reunião deles com a Embaixada no Brasil. Óbvio que o presidente estadunidense não iria deixar passar a possibilidade de um aliança tão insólita: povos indígenas e o gerente maior do capital.  

Ora, qualquer pessoa que se dedicou a observar minimamente os movimentos do império capitalista sabe que os Estados Unidos não têm amigos, têm interesses, e que desde sempre esteve interessado em botar as garras sobre a nossa Amazônia. Assim que se reveste de profunda ingenuidade achar que esse governo dos EUA, inexplicavelmente visto como progressista (?), vai defender a Amazônia para garantir os interesses dos povos originários. Não vai. O único interesse que os EUA pode ter na Amazônia é o de explorá-la para seus interesses.  

Também vale lembrar que os Estados Unidos sempre se utilizaram dos grupos que lutam por mudanças no interior de seus países para invadir e destruir os espaços que se lhes apetecem. Foi assim no Panamá quando grupos “rebeldes” pediam a intervenção do “tio Sam” para salvá-los do narcotraficante Manuel Noriega. O resultado foi uma invasão que arrasou o país e matou milhares. O mesmo se passou no Afeganistão e no Iraque. Milhões de pessoas mortas por conta da “intervenção humanitária” dos Estados Unidos.  

A questão que se coloca aos movimentos sociais que assinam a carta é: estão cientes de que esse é o tipo de ajuda que os EUA oferecem? É o que querem para o Brasil? 

Não seria o caso de todos esses movimentos se unirem para lutar aqui dentro contra os inimigos que nos roubam a vida? Por que esperar por uma intervenção de um país que, desde o seu nascimento, só procura invadir e roubar as riquezas dos outros?  

O resultado deste desastrado movimento já deus frutos podres. A embaixada dos EUA no Brasil chamou os representantes da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) para uma conversa, mas, sem fazer caso do pedido dos movimentos, chamou também os representantes da Funai, ou seja, do governo. E lá estavam os indígenas cooptados pelo presidente, apoiando o agronegócio, os mineradores e os madeireiros, invocando o discurso do desenvolvimento capitalista como única saída para os povos originários, em contraposição aos que querem autonomia e equilíbrio.  

Ora, quem pode ganhar essa batalha dentro da embaixada dos EUA? O capital ou os indígenas raiz?  A resposta todos sabemos.  

Seja como for, o pedido de “diálogo” já foi feito e agora Casa Branca vai saber usar disso a seu favor. Apesar de ser parte da estratégia indígena buscar apoio forâneo para suas causas, considerando que dentro do país o apoio é pequeno, essa de buscar o ladino e violento Tio Sam para parceiro, no mínimo, não foi uma boa ideia. Joe Biden iniciou seu mandato bombardeando a Síria. Ele fez parte – como vice-presidente  – do governo de Barack Obama, que durante os seus seis anos de mandato ordenou sete guerras diferentes contra países muçulmanos, sendo responsável por milhões de mortes e pela destruição de espaços inteiros do planeta. 

Nem nos piores pesadelos poderíamos pensar em pedir “ajuda” aos EUA. Porque ela vem em forma de bomba e arrasta com ela tudo o que há de bom e bonito num país.  

Ainda é tempo de repensar e cair fora! 

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Elaine Tavares

Jornalista e educadora popular. Editora da «Revista Pobres e Nojentas», com Miriam Santini de Abreu. Integra o coletivo editorial da «Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos». Coordenadora de Comunicação no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil).

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