Tatuagem: uma profissão à média-rés da legalidade

 Tatuagem: uma profissão à média-rés da legalidade

Filipa Sequeira, na The Cave Tattoo Shop.

Uma forma de arte em tempos associada a “prostitutas, marinheiros e drogados”  é hoje vista e tratada como um produto de luxo. Mas quem dela depende para sobreviver sente-se de novo posto à margem. Seja por desconhecimento ou discriminação, os tatuadores continuam à média-rés da legalidade, especialmente em contexto de pandemia e calamidade, mas querem uma mudança urgente.

Eduardo Fernandes, na Exink Tattoo.

“Se não puder reabrir em Junho fecho a loja.”

“Se não puder voltar a trabalhar em Junho vou tatuar para fora.”

“Não sei. Não sei o que vou fazer.”

As respostas vão mudando face a uma mesma pergunta: “se não puderes voltar a tatuar em Junho, o que é que acontece?”

Após a passagem por cinco estúdios de tatuagem e bodypiercing a tensão, a par do receio e da incerteza, adensa-se. A renovação do estado de calamidade, face à resposta à pandemia do vírus Covid-19, deixou os proprietários dos estúdios de tatuagem e demais tatuadores com dúvidas profundas acerca do futuro. Após terem apontado todas as esperanças e expectativas para dia 17 de Maio, quando se saberia se poderiam reabrir ou não, sentem-se defraudados e esquecidos. Há argumentos e dúvidas que são transversais: “porque é que cabeleireiros e barbeiros e esteticistas puderam reabrir no dia 4 e nós continuamos sem previsão para reabrir?”

Esta citação não é atribuída a nenhum dos mais de 10 tatuadores com quem o SinalAberto falou porque ela é transversal a todos. São dezenas de estúdios pelo país que não sabem quando vão poder reabrir, centenas de tatuadores e outros profissionais da modificação corporal que estão pela linha da água da sobrevivência, e o desconhecimento acerca destas práticas por parte das entidades decisórias deixam muitas dúvidas sobre quando se poderá regressar ao trabalho.

Filipa Sequeira, na The Cave Tattoo Shop, em Matosinhos.

Solários, termas e tatuagem

No passado dia 17 de Maio é pela segunda vez prorrogado em Portugal o Estado de Calamidade exigido para dar resposta à pandemia do novo vírus SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome — Síndrome Respiratória Aguda Grave)  vulgo coronavírus ou Covid-19. Após quatro semanas em Estado de Emergência, o país entra em desconfinamento faseado. Dos primeiros negócios a terem autorização para reabrir foram os ligados à indústria estética, que, segundo Eduardo Fernandes da Exink Tattoo, em Braga, representa “3% do PIB português”.

Em 2018, dados do INE apontavam que as “actividades de tatuagem e similares” movimentavam quase 4,8 milhões de euros, com 593 empresas registadas nesta área. Mas há que ressalvar que só há 13 anos foi criado o código de actividade económica (CAE) ligado à actividade de tatuagem. Antes disso, os tatuadores trabalhavam sob o CAE de estética, e muitos continuam a fazê-lo. 

De facto, o que dita a prorrogação do Estado de Emergência, ainda que seja claro quando indica que “serviços de tatuagem e similares, designadamente implantação de piercings” estão proibidos de retomar pelo menos até dia 31 de Maio às 23:59, não é claro na lei portuguesa. Não há qualquer definição legal ou quaisquer directrizes acerca do que é um estúdio “de tatuagem e similares”. Os estúdios de tatuagem e respectivos donos procuram, na melhor das suas capacidades, corresponder ao que a lei lhes exige mas certo é que não há definições categóricas acerca do que determina os seus espaços enquanto estúdios de tatuagem e similares.


Marcos Martins, no Skinlab Tattoo, em Viana do Castelo.

O Anexo I do artigo 5º da prorrogação do Estado de Emergência lista extensivamente as actividades e espaços que ainda carecem de autorização para poderem voltar a abrir portas ao público. Os estúdios de tatuagem estão listados na alínea 7, a par de “termas e spas ou estabelecimentos afins, bem como solários”.

Algumas alíneas acima, listam-se também velódromos, circos e teatros, entre tantos outros espaços e actividades económicas. Eduardo Fernandes graceja: “somos nós e os circos”. Mas a dúvida permanece: porque é que os serviços de tatuagem estão equiparados a solários, termas e spas, quando as práticas são tão profundamente diferentes?

Alguns tatuadores acreditam que é por a tatuagem ser um serviço de luxo. Outros acreditam que é pura e simplesmente uma acção discriminatória. Outros ainda estão convictos que se prende unicamente com o desconhecimento de quem redige estes documentos legais e toma estas decisões.

Agora, a possível reabertura dos estúdios de tatuagem é de novo empurrada para um futuro próximo, dia 1 de Junho. Mas ainda assim não é certo que a nova prorrogação do Estado de Calamidade, que pode durar até seis meses, já permita que esta indústria retome o seu trabalho no princípio do próximo mês.

O que é que se exige de um estúdio de tatuagens e bodypiercing? O mesmo que se exige de uma loja de roupa, explica Marcos Martins, dono de dois estúdios e tatuador há 23 anos. A nível de certificação, contratos exigidos, e cumprimento de regras de higiene e segurança no local de trabalho, as premissas são as mesmas que para um qualquer estabelecimento comercial.

No seu estúdio em Viana do Castelo, Skinlab Tattoo, aberto desde 2006, Marcos aponta para o chão: “investi oito mil euros num chão com certificação clínica”. Quem fez o projecto para o seu estúdio foi uma empresa especializada em projectos para clínicas e hospitais, e Marcos faz questão de ter o melhor espaço e equipamento possível no seu local de trabalho. Mantém o contrato que lhe é legalmente exigido com uma empresa de higiene e segurança no local de trabalho, que por sua vez é especializada em negócios ligados à saúde, e com uma empresa de recolh ok a e gestão de resíduos hospitalares. Mas a ASAE não está nem remotamente interessada nestas preocupações e garantias que o tatuador procura assegurar aos seus clientes.

Estúdios no vazio legal.

Não obstante ter fechado portas a 4 de Março – antes ainda do que era mandatado pelo governo -, continuou a pagar os contratos com estas empresas, como, aliás, continuou a pagar tudo o que já antes eram despesas fixas, não obstante a quebra a 100% dos seus rendimentos e do rendimento das suas duas lojas.

“Temos todas as medidas de segurança que se nos exige”, e mais ainda para lá do que a lei exige também, explica. Os procedimentos que Marcos e os seus colegas na Skinlab usam foram implementados pelos próprios, numa medida de auto-regulação, considerando a falta de legislação que há acerca da profissão e dos estabelecimentos.

Quando o CAE de tatuagem foi criado, não foi criada a legislação correspondente. Durante anos, Marcos trabalhou sob o CAE de estética – “se neste momento fosse assim poderia estar a trabalhar”. Desde sempre, que são os estúdios e os tatuadores que indicam às entidades legisladoras e fiscalizadoras quais são os procedimentos e as regras sanitárias exigíveis nesta actividade.

E não havendo legislação, como é que as fiscalizações funcionam?

O estúdio está registado como estabelecimento comercial, e tem a mesma fiscalização que teria se vendesse aqui calças e meias. Há muito tempo que pedimos para ser fiscalizados não pela ASAE mas pela mesma entidade que fiscaliza os dentistas

Sobre as condições sanitárias, Marcos assegura que tem “colegas dentistas e de estética a referirem-se aos nossos fornecedores”. E mais, que todos os procedimentos a nível de segurança e higiene são estabelecidos pelo “máximo standard possível”: “se nos dizem que temos de usar luvas em tal procedimento, nós usamos nesse e em mais três”. 

Tanto a empresa de higiene e segurança no local de trabalho que tem contratada como a própria ASAE, assegura, estavam sob a convicção de Marcos poderia ter reaberto os seus estabelecimentos no passado dia 4, juntamente com os restantes serviços de estética. Em ambos os casos, teve de ser Marcos a fazer a correcção e repetir o que está decretado em Diário da República.

Os equipamentos e procedimentos de segurança dos estúdios extravasam as recomendações das autoridades.

Higiene, segurança e desconhecimento

Uns e outros tatuadores explicam-nos os processos a que já se obrigavam antes da pandemia, e quão pouco os seus procedimentos terão de se alterar quando os seus estúdios puderem reabrir. Luvas, máscaras, aventais, material descartável, isolamento e esterilização, campos cirúrgicos, autoclave, salas de esterilização, desinfecção antes e depois de tocarem no cliente,… A lista é infindável.

Ao entrar em qualquer destes estúdios, o cheiro que permeia o ar é próximo do que associamos ao “cheiro a hospital”. Em cada prateleira, frascos de álcool e de desinfectante hospitalar, rolos de filme, para embrulhar todas as superfícies onde o tatuador ou o cliente toquem. Todos os espaços são limpos antes e depois de um cliente os ocupar. Os desinfectantes utilizados são de maior eficácia do que os recomendados pela Direcção-Geral de Saúde.

Estas práticas não são novas para nenhum tatuador. Elas fazem parte da sua formação e do seu trabalho diário.

“Não há formações obrigatórias para o nosso trabalho”, explica Eduardo Fernandes, ao lado da sua companheira, Raquel Pereira, também ela funcionária do estúdio Exink. “Todos nós tiramos certificações específicas para a contenção do Covid-19, mas não aprendemos nada de novo com elas.”

Raquel Pereira, na Exink Tattoo, faz remoção de tatuagens e é gerente da loja.

Estas formações, facultadas gratuitamente pela Organização Mundial de Saúde, visam providenciar recursos e técnicas que vão desde a higienização das mãos à remoção dos equipamentos de protecção individual, numa perspectiva de prevenção e controlo da infecção pelo novo coronavírus. Marcos, da Skinlab Tattoo, assegura peremptoriamente: “temos todas as medidas de segurança”. E acrescenta: “de todos os negócios que estão abertos, nós somos os que estamos no topo da não-transmissão. E sabendo que podes fazer outras coisas como remoção de tatuagens, ou pôr Botox, ou fazer microblading (que é no fundo uma técnica de tatuagem), mas não podes fazer tatuagens, não me parece constitucional e parece-me discriminatório”.

Na Tattoo Gallery Espinho, Filipa Silva fala sobre o muito que aprendeu nas suas viagens em “guest spot” ao estrangeiro. Aquando do princípio da sua formação enquanto tatuadora, foi o irmão (também ele tatuador) que lhe recomendou ir fazer uma formação a Espanha, onde tudo está contemplado e regulamentado. Mas a sua aprendizagem não se ficou por aqueles dias de treino intensivo.

Cada ano, dos seus 14 de trabalho enquanto tatuadora, significava novas aprendizagens e manter-se sempre a par das novas técnicas e produtos. Como a maioria dos tatuadores, Filipa aprendeu as técnicas e procedimentos de assépsia e higiene pela sua prática profissional. E sublinha: “tenho clientes de múltiplas áreas que ficam sempre surpreendídissimos com a quantidade de tempo que demoro, material que uso e procedimentos que tenho antes, durante e depois de tatuar. Nada disto é novo para mim.”

Acrescenta: “Antes de poder viajar para a América do Norte para trabalhar em tatuagem, tenho de fazer um exame online sobre contaminação cruzada, chamado “Bloodborne Pathogens” (patógenos transmitidos pelo sangue) que demora algumas horas.”

Pela sua parte, Filipa Silva não identifica grandes gastos com mais material de protecção que tenha que comprar: “não vou fazer grandes investimentos porque já tenho tudo, uso tudo descartável. Esta é uma questão de saúde pública e muita gente não tem noção dos riscos.”

Filipa Silva, na Tattoo Gallery Espinho.

Filipa Sequeira, dona da The Cave Tattoo Shop em Matosinhos e tatuadora há cerca de 5 anos e meio, fala acerca dos standards pelos quais se regeu aquando da abertura do seu estúdio, e explica que foi aos gabinetes de dentista que foi buscar informação e inspiração para desenhar o seu espaço de trabalho – a nível de higiene e separação das áreas de trabalho. No primeiro andar, está o local de desenho e a recepção, com um espaço de barbearia, e na cave têm o espaço de tatuagem e a sala de esterilização.

Investi 500 euros em material de protecção, acrescido ao que já tínhamos, sem ter qualquer previsão acerca de quando vou poder reabrir a loja

O seu processo de formação enquanto tatuadora foi extenuante, assegura. “Nas primeiras semanas, se não meses, eu não podia pegar numa máquina de tatuar. Porque as minhas primeiras semanas lá foram higiene e limpeza. Eu não ia passar de um patamar para o outro sem dominar a área. Limpeza do estúdio, esterilização, preparação das workstations, limpeza das marquesas e de todos os materiais que possam ter algum tipo de contaminação, material de piercing. A base disto tudo é a higiene, e sempre foi, isto não é novidade nenhuma para nós.”

Com os seus dois aprendizes, Filipa está a fazer o mesmo processo que o seu mestre fez com ela, mas levando-o “ainda mais longe”, sendo “ainda mais meticulosa”. A tatuadora sabe a responsabilidade imensa que vem com o seu trabalho e a sua prática, e portanto não a descura em momento algum.

E então, se tanta segurança há, e que é assegurada por todos com quem o Sinal Aberto falou, o que é que pode justificar não haver autorização para a reabertura? A resposta foi fundamentalmente a mesma vinda de toda a gente:

“Desconhecimento dos procedimentos.”

Profissionalização e regulamentação

A Associação Portuguesa de Profissionais de Tatuagem e Bodypiercing já estava em processo de idealização há dois anos e meio, explica Nuno Feio, dono da Graveyart Tattoo em Lisboa. Numa reunião realizada com urgência no Pedrada Tattoo Palace, na Costa da Caparica, juntaram-se alguns dos tatuadores ideólogos e fundadores da Associação, de vários pontos do país.

Este era um projecto que já estava a ser discutido muito antes da urgência do Covid-19. Mas pela precipitação da situação em que ficaram os tatuadores e demais profissionais da modificação corporal, a Associação vem a público – não só para preparar uma resposta para a classe profissional, mas acima de tudo para o “reconhecimento como profissionais com direitos e deveres”.

Nuno Feio sublinha uma e outra vez que a missão da Associação extravasa a necessidade criada pela pandemia, e que este é um trabalho para definir e cuidar o futuro da tatuagem em Portugal.

Os braços envoltos em película de Filipa Silva, membro integrante da Associação.

Nestes dois meses desde que a Associação veio a público, já foram estabelecidos contactos com a Direcção-Geral de Saúde, o Ministério da Saúde e até o Ministério da Economia, na perspectiva de dar aos decisores uma dimensão da segurança com que os tatuadores trabalham. Foi realizada uma petição, não pela mão da Associação mas de um tatuador a título individual, que pedia a reabertura urgente dos estúdios e reuniu mais de 4000 assinaturas. Já foi apresentada à Assembleia da República, mas ainda não há previsão de quando será avaliada nem muito menos levada a plenário para discussão.

A Associação tem tentado articular-se com as entidades decisórias e fiscalizadoras no sentido de agilizar o processo de reabertura da indústria, mas é confrontada não só com o enorme desconhecimento acerca dos procedimentos inerentes à prática de tatuagem mas também com a falta de legislação existente. É esse gap que a Associação se propõe a tentar colmatar.

São situações humanas absolutamente dramáticas, as que se vão contando naquela reunião. Ali estavam proprietários de estúdios, que não só como comerciantes e empresários mas também como artistas, estão a passar por um momento atroz e vêem os seus colegas de trabalho e profissão também a passarem por situações limite.

Ricardo Morais, dono da Black Pearl Tattoo em Lisboa diz que tem artistas na sua loja com a corda ao pescoço. E Ricardo Pires, da Heart of Buda Tattoo Shop, sintetiza o drama: “Quem tinha poupanças, espremeu-as. Quem não as tinha, acabou.”

Mas há uma noção que fica muito clara ao longo da conversa: se nenhum deles retomou o trabalho até este momento não é porque não possam ou não queiram. Todos falam sobre como continuam a receber contactos de clientela fixa ou nova que querem tatuar ou fazer piercings novos, e adiam todos esses potenciais clientes para um futuro indeterminado. E se o fazem é por dois motivos, que se repetem de tatuador para tatuador, de estúdio para estúdio: respeito e solidariedade.

Solidariedade para com os que não podem ou não conseguem retomar a sua actividade, e respeito para com os clientes, as autoridades e acima de tudo para quem, ao longo das últimas décadas, tem lutado por um adequado reconhecimento da profissão.

Fechámos portas por iniciativa própria antes ainda de nos mandarem. Antes de fecharmos criámos protocolos de segurança acrescidos

A Associação quer a regulamentação necessária para a prática profissional da profissão de tatuador. Após décadas a existirem à margem da sociedade, os tatuadores exigem cada vez mais um reconhecimento legal e governamental do que são os procedimentos, as práticas, as obrigações, e acima de tudo, o trabalho que desenvolvem, que exige anos de prática e conhecimentos.

Para lá do dinheiro, são vidas em causa

Eduardo Fernandes, na Exink Tattoo, em Braga.

É difícil escrever em poucas linhas as histórias que recolhemos durante estas conversas. Elas são, acima de tudo, de resiliência. Sem qualquer perspectiva sobre o que o futuro lhes reserva, estes artistas e empresários mantêm-se de pé fincado nos estúdios que tanto suor lhes exigiram e na arte que tantas pestanas lhes queima.

Eduardo Fernandes fala sobre como não parou durante os últimos seis anos – tantos quantos tatua. Frequentemente, trabalha 80 horas por semana. Depois da formação de base em artes e alguns anos de trabalho como webdesigner, foi parar ao mundo da tatuagem e não quis voltar atrás. Mas isso implicou ter de deixar para trás algumas outras práticas artísticas que lhe davam prazer, como o vídeo e a pintura. E o seu trabalho como tatuador começava a fazer-se sentir na sua saúde mental e física: “o corpo começa a ter desgaste”. Portanto, as semanas em que foi obrigado a estar parado não lhe foram atrozes como foram para outros, mas revela-se algo inquieto quanto ao futuro.

No caso da Exink, em Braga, são três de uma mesma família que dependem da loja: ele, a sua companheira Raquel, e o seu irmão, o bodypiercer do estúdio. É uma família que depende daquele estúdio e que viu os seus rendimentos quebrar a 100%. No caso de Raquel, a situação é mais bizarra ainda: Raquel trabalha sob o CAE de esteticista porque faz remoção de tatuagens. Teoricamente, já poderia estar a trabalhar desde o dia 4 de Maio. Na prática, não pode, porque o seu local de trabalho é dentro de um estúdio a que não se permite a reabertura.

Filipa Silva, na Tattoo Gallery Espinho.

Já Filipa Silva, na Tattoo Gallery de Espinho, deposita alguma esperança na articulação com a Associação Comercial de Espinho, para que seja feita pressão sobre a autarquia para determinar se os dois estúdios da cidade podem ou não abrir, não obstante a prevalência da legislação geral sobre os regulamentos municipais. É tatuadora há 14 anos, e tinha grandes projectos pessoais e profissionais planeados para este ano de 2020, que agora estão on hold até data incerta. 

Sendo mãe e tatuadora, às vezes é muito complicado de gerir psicologicamente

Pode passar mais tempo em casa com o filho de seis anos, mas sente-se criativamente debilitada. E sabe que os meses que se avizinham serão de gestão complicada. Especializada em tatuagem realista, as tatuagens que Filipa realiza obrigam a muitas horas de trabalho, que ela irá agora começar a dividir em mais sessões para se proteger a si própria e aos seus clientes. Isto irá implicar um custo agravado para si, mas não irá alterar o preço final que apresenta ao cliente. Isto significará o dobro ou o triplo do material utilizado, e há ainda que contar com a inflação que os materiais de protecção individual já verificam – se uma caixa de máscaras antes custava 5€, agora está na ordem dos 50€.

Filipa não teve apoio da Segurança Social, mas manteve o pagamento das contribuições obrigatórias, e sublinha: “tive dias de muito stress, em que não sabia como ia conseguir dar resposta aos meus gastos”.

Marcos Martins, na Skinlab Tattoo., em Viana do Castelo

Já Marcos, em Viana do Castelo, fala sobre as questões que as suas filhas – e os filhos dos restantes tatuadores que trabalham nos seus estúdios – levantam. Explica o veterano que durante anos educaram as suas crianças para percepcionarem o trabalho dos pais como um emprego normal, indo contra as convenções sociais e a percepção que muitos ainda têm acerca do mundo das tatuagens e dos tatuadores.

Nesta fase, os pequenos perguntam: “se o vosso trabalho é como o dos outros, porque é que vocês ainda não podem trabalhar?”.

Uma e outra vez fala sobre ética e respeito, acima de tudo. “Queremos que a nossa actividade seja respeitada.” E reitera que a discussão económica não deve ser a mais premente quando se discute a reabertura dos seus negócios, porque como os estúdios de tatuagem há dezenas de outros negócios que ainda carecem de autorização para reabrir. Se o argumento é acerca da saúde pública, Marcos deita isso por terra. Não há qualquer argumento plausível, acredita, que justifique não poder reabrir.

E sobre a hipótese de fazer qualquer outra função enquanto não pode retomar o trabalho de tatuagem, é peremptório: “Esta não é a única coisa que sei fazer, mas é a única coisa que quero fazer.”

Mais ainda, Marcos fala acerca de amigos seus especializados em tatuagem estética. Tatuagem estética é a que se faz quando se faz maquilhagem permanente, ou tatuagens de reconstrução, nomeadamente a mulheres mastectomizadas e que perderam o mamilo. Também se fala acerca de pessoas com alopécia, que recorrem à maquilhagem permanente quando ficam sem sobrancelhas e cabelo. E conta que já teve clientes que recorreram a ele após a recomendação dos seus médicos, psiquiatras ou psicólogos para que fizessem uma tatuagem com uma dimensão terapêutica ou de cura.

E numa sala renovada no andar de baixo da The Cave, Filipa Sequeira fala sobre a terrível frustração que vive por não poder exercer o seu trabalho criativo. “Quando comecei a tatuar foi um encontro comigo mesma, com a minha própria identidade. Não poder exercer por uma situação que está errada é frustrante. Nós queremos trabalhar, e não é só pelo dinheiro, é pela realização pessoal.”

Fala sobre como criou um ambiente familiar no seu estúdio, quase caseiro, porque de facto passa mais tempo naquele espaço em Matosinhos do que na sua casa em Vila do Conde. Fala sobre a tatuadora, a bodypiercer e o barbeiro com quem trabalha, para além dos seus dois aprendizes, como se de uma pequena família que ali se construiu se tratasse.

Antes do surgimento do vírus e da pandemia, Filipa e o seu companheiro estavam a começar a planear constituir família. O dinheiro que a tatuadora tinha posto de lado para uma possível fertilização in vitro teve de ser utilizado para a manutenção da loja durante os meses que não pode reabrir.

Filipa Sequeira: Tive de escolher: ou a loja ou os filhos

E no fim desta reportagem, com as mãos como lixa de água de tantas vezes que foram desinfectadas com desinfectante hospitalar, coloca-se a pergunta: porque não podem os tatuadores trabalhar?

À espera de Godot

O primeiro-ministro, António Costa, declarava a 30 de Abril que “a 4 de Maio, próxima segunda-feira, iremos permitir a reabertura de todas as lojas de rua até 200m2”, incluindo “os estabelecimentos de prestação de serviços de higiene pessoal como cabeleireiros, barbeiros, manicures, pedicures, e outros serviços desta natureza, cumprindo as medidas de higiene e protecção individual que já foram trabalhadas entre as respectivas associações profissionais e a DGS”.

Sobre a autonomia que foi parcialmente reposta aos municípios com a passagem de estado de calamidade para estado de emergência, Noémia Novais, da Associação Nacional de Municípios Portugueses, esclarece que os regulamentos municipais nunca podem sobrepôr-se ao quadro legislativo geral.

Apesar da ressalva contemplada no plano de desconfinamento do Governo, que estabelecia que a partir de 18 de Maio podiam abrir as lojas de rua com área igual ou inferior a 400m2, ou superiores, por decisão da autarquia, volta a surgir um choque acerca do quadro jurídico. Porque as decisões municipais nunca se podem sobrepor ao estado de excepção que impõe um estado de calamidade. 

SinalAberto procurou esclarecimentos junto da Secretaria de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor, a entidade que tutela os estabelecimentos comerciais, a respeito do enquadramento dos estúdios de tatuagem e da proibição da sua reabertura. Para tal, enviamos as seguintes perguntas:

1. – Sendo que os estúdios de tatuagem e bodypiercing não têm um enquadramento jurídico específico, estes negócios estão registados como estabelecimentos comerciais “normais”, porque para além dos serviços específicos de modificação corporal, frequentemente vendem outros produtos ao público. Assim sendo, como é que se explica que a reabertura lhes seja interditada, quando os restantes negócios de atendimento ao público já estão a reabrir?

2. – Alguns dos primeiros negócios a terem luz verde para a reabertura foram os associados à estética – cabeleireiros, barbeiros, esteticistas, etc.. Sendo que a indústria da tatuagem representa uma movimentação de quase 5 milhões de euros anuais, e está também ela ligada à estética, porque é que os primeiros puderam reabrir mas os segundos não?

3. – Há alguma previsão por parte do Secretariado de Estado ou do Ministério da Economia quanto à data de reabertura dos estúdios de tatuagem? Poderá surgir com a nova prorrogação do estado de calamidade?

A resposta do Ministério da Economia, recebida uma hora após a publicação desta reportagem, foi a seguinte: “Informações sobre o levantamento da suspensão de atividades económicas no âmbito do plano de desconfinamento e de acordo com as recomendações das autoridades de saúde serão anunciadas em momento oportuno.”

Fotografias de Marco Duarte

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Zita Bacelar Moura

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