Territórios de espera e velocidade – a tecnologia Just Walk Out no quotidiano pós-moderno

 Territórios de espera e velocidade – a tecnologia Just Walk Out no quotidiano pós-moderno

Ruipixen (Unsplash)

A gigante digital Amazon tem desenvolvido sistemas como o Just Walk Out, uma inovação que permite a entrada do comprador num espaço comercial e, após a identificação rápida por meio de um smartphone, o levantamento de objetos que se retiram das prateleiras e se transportam para o exterior sem qualquer interação com o ser humano ou com a máquina. Já ensaiada em 2016, esta tecnologia foi disponibilizada para uso público em 2018. Desde então, foram inauguradas 26 lojas nos Estados Unidos da América. Há poucos dias, abriu um espaço semelhante em Londres.

Nesta deriva tecnológica acelerada, algumas das mudanças aparentam ser disruptivas, muitas outras entram de modo silencioso e discreto nos quotidianos das sociedades mais inovadoras, para logo depois, impulsionadas por ciclos curtos, se difundirem para espaços e grupos mais alargados. Umas e outras, as inovações mais exuberantes e as mais reservadas, devem ser acompanhadas em perspetiva e os seus significados discutidos. Mais do que avanços no domínio da domótica e da celebrizada, e por vezes vazia, smartcity, essas novidades fazem parte de uma deriva estrutural com destino incerto.

Neste caso em particular, comecemos por uma ilusão. O fim dos limites, a criação de um espaço geográfico plano e de mobilidade rápida, sem barreiras. Enquanto sinal dos tempos, estes estabelecimentos comerciais refletem uma tendência: crescem os muros digitais e multiplicam-se os sistemas sofisticados de controlo pormenorizado dos gestos, dos comportamentos e das preferências. Atravessando estas geofences, o comprador deixa uma impressão registada por redes eficientes de sensores que vigiam os movimentos. Para além de consumidores, somos aqui produtores de dados que, apesar de pessoais, deixam de nos pertencer. Nada de novo em relação ao que já agora acontece com o pagamento que se faz por meio de um cartão multibanco.

A juntar ao debate sobre a previsível perda de empregos, neste caso em particular colocam-se outras questões. Centremo-nos na velocidade e na aparente diminuição do efeito de atrito no ato da compra, que implica a entrada, o percurso e a recolha dos bens a adquirir e a operação de pagamento, no geral implicando algum tempo de espera. É nesta última etapa do processo que o Just Walk Out (de modo literal e numa tradução livre, ‘simplesmente saia’) mais interfere. Contudo, também aqui se assiste apenas à aceleração de uma tendência.

Em conjunto com a expansão do comércio à distância, também as trocas comerciais in situ se alteraram. A mudança progressiva do modo de pagar, a transição do dinheiro material para o cartão magnético com código e depois para o cartão contactless, tudo reverteu para o aumento da velocidade e da fluidez da compra.

Será necessário acompanhar os processos e desenvolver investigação mais apurada que possa validar algumas hipóteses como, em termos de perceção, o progressivo afastamento do produto comprado em relação ao valor de venda. Dito por outras palavras, o desencontro entre a sobrevalorização do desejo de compra e a crescente invisibilidade imediata da quantia necessária para aquisição desse objeto.

Nestes meios inovadores, deslocalizou-se a geografia do pagamento- este não se faz no ato da compra, à vista da mão e dos olhos, mas algures no difuso ciberespaço, quase sempre desfasado no tempo. São evidentes as vantagens em termos de conforto e eficiência. Contudo, estas novas cartografias promovem-nos enquanto consumidores e fazem-nos baixar os filtros de autorregulação numa economia comportamental agora com outras espacialidades e temporalidades. O Just Walk Out significará velocidade, mas poderá tornar-nos menos atentos ao valor a pagar.

Noutro sentido, e também aqui não existe nenhuma novidade, dilui-se o limite entre o espaço doméstico e estes territórios comerciais- ir ao supermercado será uma experiência muito próxima da procura de um produto numa dispensa familiar. Consumir tornar-se-á um ato mais banal e não excecional.

Como num rio, é o movimento das águas de fundo do leito que definem o sentido. A compressão do espaço-tempo que lemos em David Harvey, assim como a aceleração e difusão espacial do capital, que o mesmo geógrafo também teorizou, têm aqui uma das suas expressões, neste ato de pegar e levar, sem obstáculos visíveis (e sublinha-se o ‘visível).

O mesmo ocorre com a aceleração dos transportes; o aumento da velocidade das operações informáticas; a progressiva ampliação das redes digitais; o alargamento do turismo e dos mercados imobiliários; ou com a expansão da cartografia dos eventos globais, por vezes para geografias estranhas ao conteúdo dos mesmos (veja-se, a título de exemplo, o mundial de futebol no Qatar em 2022, planificado num território climaticamente desajustado a esta modalidade).

Na aparência tudo parece separado. Na verdade, tudo se agrega e interrelaciona. Nestas tendências, procura-se mais espaço e mais consumidores, mas encolhe-se o tempo. Os ciclos devem ser curtos e a paragem é penalizada. É também Harvey quem nos mostra que, quando esta desaceleração acontece e o ritmo abranda, se instala uma crise. Talvez também por isso, quando o tempo está em excesso, este deve ser ocupado e consumido. Para Bruno Patino, todo o tempo é pouco para estarmos conetados, sem interferências, sob controlo. O tempo individual será, na ótica das empresas digitais, o ouro do século XXI.

Regressando às compras no supermercado e ao Just Walk Out, é possível que a duração da experiência encurte, que a perda de tempo se reduza ao mínimo. Numa sociedade produtiva, a espera será inútil e a lentidão ineficiente. Com isto não se duvida que a suspensão do tempo possa ser paralisante, nem se coloca em causa que os territórios de espera se possam tornar agressivos e violentos. Do mesmo modo não se discute o contrário: que a espera pode ser construtiva e criativa, que a sociedade se estrutura também em função de tempos e de espaços de paragem, sem a obsessão do fazer contínuo, sem pausas nem interrupções.

Longe de saudosismos anacrónicos nem querendo antecipar medos injustificados, as inovações são essenciais e projetam-nos no futuro. No entanto, também estas são performativas, alteram comportamentos e moldam valores. Sem levantar trincheiras maniqueístas entre o otimismo e o pessimismo, reserva-se às ciências sociais e humanas um papel relevante no acompanhamento crítico destas novidades tecnológicas.

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12/03/2021

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João Luís Fernandes

Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

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