Tú ou usted, senhores e doutores

 Tú ou usted, senhores e doutores

Espanha é o país onde um português pode ser emigrante mais perto de casa, e não só por motivos geográficos. A língua é diferente, a comida e a cultura também, mas não deixam de haver semelhanças e pontos de contacto — em particular desde que o supermercado Mercadona começou a traduzir o nome das especiarias (assim se descobre que salsa é perejil e romero alecrim). Não é um “vá para fora cá dentro”, mas não está muito longe.

Contudo, viver noutro país requer sempre alguns ajustes mentais. Um desses é o uso (mais ou menos) indiscriminado da segunda pessoa do singular (“tu”), em Espanha. Portugal é um país onde se fala baixo e com muito respeito, é uma questão de educação. Num supermercado em Portugal, trataríamos o trabalhador da caixa por “você”. Por comparação, em Espanha seria por “tú”, um estilo de comunicação mais direto. Isto acontece em vários cenários: eu trato o meu dentista por tu e também salto a parte do doutor. Num bar, o camarero também é um “tu”.

Claro que há exceções. O “usted” (“você”) pode ser utilizado como em português e continua a ser a norma em contextos formais e documentos oficiais, mas até pessoas idosas podem preferir ser tratadas de maneira mais informal, o que seria fora do comum em Portugal. A diferença é tão grande que em Espanhol até existe um verbo dedicado ao tratamento: “tutear”.

Questionar se “nos tuteamos” é perguntar a outra pessoa se a podemos tratar por tu e, em simultâneo, um convite para ela nos trate também de maneira mais informal. As palavras são mágicas, mas não aparecem por magia: a consagração em verbo do “tutear” é a resposta a uma necessidade bem clara de deixar cair a formalidade e ser mais direto.

Para mim, nascido e criado em Portugal, esta atitude é refrescante. Lembro-me de uma história do início da minha (curta) carreira jornalística em que ligo a um possível entrevistado e atende a secretária. Ao bom estilo português, pergunto se o “doutor X está”. Responde a senhora, como se eu tivesse arremessado um insulto ao seu empregador, “Doutor não. Engenheiro!”.

Chocado não fiquei, mas é uma dessas situações em que as palavras contribuem para uma certa ideia de ordem social, em particular quando são impostas por pessoas que nem usufruem das vantagens que vêm com elas (embora possam sempre dizer que trabalham para o engenheiro ou para o doutor).

Outra variante deste sentimento apareceu nos Estados Unidos, em dezembro, quando um colunista decidiu que Jill Biden não merecia usar o título de doutor. Um op-ed no Wall Street Journal atacava a nova primeira dama do país por atrever-se a utilizar o título de “Dr.” quando não é médica (Jill Biden tem “apenas” um doutorado em Educação). Sendo um artigo escrito por um homem — que admite alegremente só ter uma licenciatura embora lhe tenham chamado Dr. muitos anos — a mensagem é clara: como é que ela se atreve a querer estar ao nível que o título implica?

Os títulos, bem como os tratamentos mais formais, têm o seu lugar e utilidade. Ninguém pode (nem deve) impedir Jill Biden ou outra pessoa de utilizar o título onde bem entender. Contudo, convém recordar que esta é uma opção pessoal e a utilização de títulos nos media é uma prerrogativa dos livros de estilo dos meios de comunicação.

É bom ter a possibilidade de mostrar respeito e, até, reverência por outras pessoas no contexto adequado. No entanto, este tipo de atitude por definição ajuda a criar barreiras e, honestamente, tratar alguém por doutor é dessas coisas que cheira a mofo. Apesar disso, tenho de admitir que me custa um pouco ver entrevistas onde o entrevistado é tratado por tu (não deixo de ser português). Aí, quando vejo um “tu”, penso: “isto é uma conversa entre amigos ou uma entrevista?”. Há espaço para os dois, mas cuidado com a mensagem que se envia, deve ser uma escolha consciente.

A um nível pessoal, eu vejo o “tutear” como uma ponte. De uma só tirada, está a deitar-se fora todas as barreiras de trato e abrir o caminho a uma relação mais direta, sem dar muitas voltas e que põe as duas pessoas ao mesmo nível.

Como sempre, nem oito, nem 80. Há muito a ganhar ao importar parte desta atitude e, porque não, tutear mais no dia a dia… sem perder o respeito a ninguém. Tudo o que ajude pessoas a comunicar melhor será bem-vindo em 2021.

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P.S.: Esta crónica utiliza termos de Português de Portugal e Espanhol de Espanha. Se alguém me está a ler e fala Português do Brasil ou Espanhol da América Latina sabe que a realidade é diferente (no Brasil, “você” é o termo dominante e na América Latina o “vos/ustedes” tem predominância).

02/01/2021

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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